Clones - Parte 5 - Final

(continuação de Clones - Parte 4)

Passos se fizeram ouvir.

Alguém entrou na sala. Uma, duas, três pessoas.

- Tudo bem com você? - alguém perguntou, com uma voz igual a da mulher que olhava o próprio reflexo no espelho.

- Sim... - respondeu a Raiz, maquinalmente.

Passos atravessando o aposento.

- Não tem pulso. Está morta - disse outra voz igual à sua, vinda de um outro local da sala escura. - Você, venha aqui e ajude-me a remover o uniforme.

- Certo - respondeu a voz da terceira pessoa, que também era igual à voz da mulher que era conhecida como Raiz.

- Os equipamentos da policial foram corretamente desligados?

- perguntou a segunda voz. - Você disse os comandos certos ao capacete?

- Sim... - respondeu a mulher que continuava a olhar seu próprio reflexo no espelho. - Os comandos... certos.

Tiras de couro foram afrouxadas; presilhas e fivelas de metal abriram suas mandíbulas, soltando o couro. Dispositivos foram desativados. Zíperes eram puxados juntos. Botões de pressão estalando em um só clique ao serem soltos praticamente todos juntos. Cordões foram desamarrados de modo idêntico por dois pares de mãos revestidas por luvas também idênticas, escuras com linhas claras.

- Ela não parece estar muito bem - a primeira das três vozes declarou, e uma mão tocou seu pescoço. - A pulsação... parece lenta.

- É óbvio que ela não está muito bem - disse a segunda voz. - Dez doses da pasta podem derrubar qualquer um, mesmo com o antídoto.

- Você não quer descansar... sentar um pouco? - perguntou a primeira voz, a mais gentil das três vozes.

A mulher conhecida como Raiz elevou a mão em resposta, fazendo sinal que estava tudo bem, e que ela poderia se virar sozinha.

- Não deveríamos remover a pasta desta sala? - inquiriu a terceira voz, que parecia ser a voz mais calma de todas.

- Faremos isso. Mas antes temos outras prioridades - declarou a segunda das três vozes, que era também a mais autoritária; uma voz de comando. - Obter o uniforme é o objetivo principal de nossa missão. Ei, você! Leve-a para fora, e depois volte aqui e comece a recolher e embalar a pasta.

- Sim, senhora! - disse a primeira voz.

Mãos gentis voltaram a tocar os ombros da mulher conhecida como Raiz.

Virando-se, ela deixou de olhar seu reflexo no espelho, e acabou vendo seu reflexo outra vez, em formato mais real, vivo, diante de si.

Seus olhos lacrimejavam sem parar.

- Meu Deus... Você não está nada bem - disse-lhe a mulher que a amparava, segurando-a gentilmente pelos ombros. - Vamos lá fora... Você precisa de ar puro.

- Ela... ela... ela era uma de nós... a policial...

- Não, não - a mulher de voz gentil e cabelos um pouco mais escuros que os seus abraçou-a. - Você está enganada.

- NÃO! Eu NÃO estou... Essas pessoas, as policiais... elas são TODAS iguais a nós!

- Mas que MERDA! - berrou a mulher de voz autoritária e cabelo curto, raspado, cor-de-palha. - Leve-a para fora de uma vez! Ainda não consigo entender por que uma múmia feito ela foi escolhida para levar a cabo esta missão...

- Eu tenho certeza que, se tivesse sido outra de nós, os resultados não teriam sido tão positivos - comentou a terceira mulher, que possuía uma voz calma e longos cabelos ondulados, castanho-escuros. - Você sabe muito bem que ela é a mais humana de todas nós...

- Sei... "a única que seria capaz de se passar por uma pessoa normal"... e toda aquela ladainha de sempre. Você sabe muito bem o que eu penso a respeito disso tudo.

- Sim, sei... Eu sei muito bem que você adoraria entrar na delegacia mais próxima e mandar tudo pelos ares...

- E duvido que isso não seja o melhor a ser feito.

- Seria o melhor a ser feito caso não houvesse cem mil policiais para cada uma de nós...

E a conversa prosseguiu entre as donas da segunda e da terceira vozes.

- Vamos, querida... - disse a dona da primeira voz, gentil, afrouxando o abraço em torno de sua irmã gêmea. - Você sempre foi mesmo a mais humana de todas nós.

E as duas mulheres saíram.

Do lado de fora da casa, o ar puro chegava ao ponto de ser palpável, e o verde radiante das plantas iluminava a vista.

As duas mulheres de faces iguais respiraram fundo.

- Ah, ar puro! - disse a mulher de voz gentil. - Tenho certeza que você ficará bem.

A mulher conhecida como Raiz enxugou as últimas lágrimas, e virou-se para a outra.

- Obrigada.

- Viu! Já está recuperada - sorriu a outra.

- A-acho que... sim.

- Bem. É melhor que eu volte e recolha a pasta... - a mulher de voz gentil fez menção de retornar ao interior da casa, mas a outra a deteve, segurando-a pelo braço.

- Espere... espere um pouco. Quero saber... por que eu tive de ser a escolhida? Por que justo eu sou "a mais humana de todas nós"? Não somos todas... humanas?

A mulher de voz gentil virou-se de volta, e tornou a abraçar sua irmã gêmea.

- Você sabe... que não somos... exatamente... humanas - foi dizendo ela, devagar.

- É mentira! - protestou a outra. - Mesmo as policiais, são todas humanas! Você não... não viu ela, lá dentro? Era uma pessoa normal...

- Calma, querida. Vamos sentar.

A mulher de voz gentil afrouxou de novo o abraço, e ambas sentaram-se no único degrau da pequena sacada.

- Somos humanas, mas não exatamente como os humanos. Não... nascemos como os humanos normais nascem. Você sabe disso, não sabe?

- Mas, por que tem que ser assim? Por que não nascemos como as pessoas normais? Por que temos de sair... de tubos de ensaio e máquinas... em laboratórios?

A mulher conhecida como Raiz começou a chorar de novo.

- Eu tenho certeza que você também conhece a resposta para essa pergunta.

- Sim. Eu sei que... que somos clones uma da outra, e as policiais também são clones, e por isso somos todas idênticas. E eu sei também que muitas de nós já nascem adultas, e que há milhares... centenas de milhares de pessoas como nós, e que existem até mesmo versões masculinas... Mas, não é isso o que eu queria saber...

- Sim.

- Eu... eu não entendo por que tem que ser assim. Por que tem que ser... tão injusto?

A mulher de voz gentil permaneceu em silêncio por algum tempo.

- Eu não sei responder esta pergunta... - disse, olhando para longe. - Mas eu sei que, de todas nós, você foi a primeira a ser concebida. Você é a única de nós que teve a chance de conviver com a verdadeira Raiz, décadas atrás...

Uma pausa.

- Acho que é por isso que você é tão importante. Apesar de ser tão velha, você continua agindo como foi ensinada a agir pela nossa Raiz humana. As mutações e experiências feitas em seu corpo e nos corpos das outras cópias originais de nossa mãe humana nos transformaram em criaturas quase imortais. Destas cópias originais, viemos todas nós... Eu... eu não sei explicar... Sou uma confortadora, uma enfermeira, e não sei explicar muita coisa. Fui criada para curar outras pessoas, e dizer coisas agradáveis, transmitir ânimo e empatia aos outros, enquanto outras de nós foram criadas para se manterem impassíveis, ou para comandar, ou mesmo para obedecer e se sacrificar cegamente em nome de um objetivo... As próprias policiais foram criadas dessa maneira. E agora que temos mais um uniforme, conseguiremos infiltrar mais uma de nós nas forças policiais, para descobrir mais informações e tentar impedir que a destruição da raça humana prossiga, como fomos ensinadas a fazer.

A mulher de voz gentil deu de ombros.

- Eu acho, tentando responder à sua primeira pergunta, que você é a única das cópias originais que restou, e por ser praticamente humana e possuir os genes certos é que foi escolhida para ser a nova Raiz. Porém, eu não sei explicar se as coisas...

- Sua IMPRESTÁVEL! - disse um vulto furioso junto à porta. A mulher forte, de cabelo curto e voz de comando... - Eu lembro de ter ORDENADO que as pastas fossem removidas! Quer que a gente morra que nem aquela MALDITA policial?

A mulher de voz gentil levantou-se de imediato. - Sim, senhora!

- Porcaria! Médicas e civis... Eu fico imaginando QUEM são as miseráveis que destacam inúteis desse tipo para missões militares sérias...

A mulher de voz autoritária voltou para o interior da casa, fazendo sinais negativos com a cabeça e gesticulando muito.

A mulher conhecida como a Raiz observou enquanto sua irmã de voz gentil caminhava para dentro da casa, virando-se para ela antes de entrar.

- Não sei explicar se as coisas são justas ou não. Acho que quem tem as explicações são os humanos... e você, que é quase humana.

Dito isto, ela sorriu como sempre fazia, deu de ombros outra vez, e sumiu dentro da casa.

O tempo passava. Uma brisa agradável soprava, movimentando as folhas das plantas, muitas das quais versões clonadas, melhorias genéticas extraídas de si mesmas.

Casas de tijolos se viam por perto, e prédios de concreto e vidro, e clones de prédios de concreto e vidro, e clones de clones de prédios de concreto e vidro surgiam imponentes ao longe.

A mulher conhecida como Raiz, a nova Raiz... a criatura criada em laboratório que estava mais próxima do que poderia ser considerado uma pessoa humana verdadeira, criada por Deus ou pela evolução... A mais humana de todas as clones pensava, e refletia, e respirava, sentindo os efeitos atordoantes de veneno e antídoto, somados, se desfazendo.

Lembrava-se de coisas que tinham acontecido em seu passado.

Lembrava-se da verdadeira Raiz. A mulher humana, que há mais de uma centena de anos havia ingenuamente se voluntariado e servido como cobaia para que os primeiros estudos visando produzir seres humanos artificiais em escala tivessem andamento.

A bela mulher, dita por uns a mais bela entre as mulheres, que servira de matriz para que tantas outras belas mulheres fossem produzidas. Tantas, centenas de milhares de belíssimas mulheres, desenvolvidas umas para curar e confortar, outras para descobrir e espionar, algumas para colocar as coisas em ordem, ou para cumprir ordens cegamente... para dar a vida por uma causa, ou para tirar a vida de quem quer que se aproxime.

E ela própria, que parecia ter sido criada tão somente para ser humana.

Uma humana artificial em um mundo onde a tendência era que houvesse cada vez menos humanos naturais.

Quis chorar de novo, por não se considerar humana suficiente. A verdadeira Raiz, falecida há décadas, esta sim era uma humana de verdade, em um tempo em que o mundo era um mundo de verdade, e que vidas artificiais não eram vistas corriqueiramente nas ruas.

A nova Raiz lembrou-se da missão que movia todas as suas irmãs, poucas se em comparação aos infinitos contingentes de outras suas irmãs, policiais de olhar fixo e soldados de mente vazia:

Restaurar o mundo.

Purificar o mundo da maldição dos artífices do governo, que estavam substituindo em larga escala a humanidade por seus clones de olhos fixos e mentes vazias.

Tornar o mundo novamente em um mundo humano.

Essa era a missão que humanos, seus criadores no passado, e agora seus tutores, seus mestres, tinham lhe confiado.

Os poucos humanos geniais que tinham restado. Os poucos que lutavam em prol da manutenção da cultura, da ciência, da vida humana.

Os poucos rebeldes que não tinham sido sufocados pela política repressora de um governo centenário, que usava fôrmas e tecnologia para recriar continuamente a si mesmo. Um governo de zumbis, que lutava contra todas as outras nações da Terra para implantar sua política de vida artificial total... de paz artificial pelo mundo inteiro.

Os rebeldes eram a última luz que restava para a humanidade.

E ela, uma clone, queria ser um deles. Estava escrito em seus genes que devia ajudá-los.

...

E ERA O QUE FARIA!

Levantou-se.

Respirou fundo. Uma, duas, três vezes.

O desânimo artificial, veneno e antídoto, passava, conforme a confiança natural do oxigênio penetrava em seus pulmões.

Sim. Havia muito a ser feito.

O uniforme policial serviria para infiltrar mais uma de suas irmãs revolucionárias na força policial. Em breve seriam dezenas de espiãs, e a seguir centenas... E em seguida, as infiltrações ocorreriam no exército de belas mulheres assassinas criado pelo governo. Existia mesmo a possibilidade de uma das agentes se infiltrar no próprio governo.

Pois eram todas iguais.

E todas seguiam à risca os objetivos registrados em seu genes.

Ela era a Raiz, a mais humana de todas as criaturas artificiais.

Ela queria ser humana, e viver em um mundo de humanos.

E conseguiria isto, custasse o que custasse.

Custasse o que ...

Súbito, a mulher se deu conta de uma coisa.

Algo estava errado.

Sim, algo estava muito errado!

Ela arregalou os olhos, e correu para dentro da casa, quase esbarrando nas suas três irmãs, que deixavam o local, uma delas vestida com o mesmo uniforme da policial morta, as outras duas carregando o corpo inanimado da irmã-inimiga, a policial.

As duas horas tinham passado. Comunicações cifradas tinham sido recebidas pelo telefone, de parte do advogado, ele próprio uma pessoa fictícia, declarando estar o bairro inteiro livre de qualquer interferência das forças da lei.

"Não poderei comparecer à audiência. Caso a representante da força policial concorde, poderemos realizar esta audiência em meu escritório."

A representante da força policial concordava. Quem cala, consente.

"Ótimo. Estarei livre durante as três próximas horas."

Três horas de liberdade de ação, totalizando cinco dentre as oito horas que o código MMP-042958 colocava à disposição do réu e de seu advogado. Depois de transcorrido este tempo, a força policial agiria sem hesitar.

Três horas eram mais do que o suficiente para remanejar a policial morta, substituindo-a por uma das integrantes do grupo de resistência e dando cabo de seu corpo.

A missão fora um sucesso.

A mulher de voz autoritária viu aquela sua irmã tão humana correndo para dentro da casa, e achou estranho.

- Ei! Onde ela vai? - perguntou.

- Não tenho muita certeza - disse a mulher de voz gentil. - Mas acho que ela foi ao banheiro.

- Ao banheiro?

- É claro! - sorriu a mulher de voz calma, vestida com a farda da policial morta.

"E tenho certeza que, com todo o chá que tomou, ela vai ficar lá por um bom tempo..."

Sim. A missão fora um sucesso.

;) - FIM

Fabian Balbinot
Enviado por Fabian Balbinot em 10/04/2006
Reeditado em 10/04/2006
Código do texto: T136751
Classificação de conteúdo: seguro