Clones - Parte 3

(continuação de Clones - Parte 2)

Em um dado momento, a possante motocicleta diminuiu a marcha e entrou em um desvio, descendo por uma das espirais laterais que davam acesso às ruas inferiores. Girou pela ruela estreita e curva que circundava o enorme pilar de concreto que servia de ponto de apoio à larga avenida elevada, todo forrado este de pequenas lajotas vermelho-escuras, que lembravam vidro. Naquela altura do trajeto, existiam duas espirais ao redor do grande tronco de sustentação, uma para subir e outra para descer, e muitos recortes e desvios tanto na avenida elevada quanto na rua inferior, transversal à esta, que davam amplo acesso a tais espirais.

Após ter dado um giro e meio pela trilha circular, a moto policial penetrou pela rua inferior.

O patrulheiro encontrava-se agora em um bairro residencial.

Os dados relatados junto ao código MMP-042958 não poderiam ser mais específicos, e o soldado ziguezagueou pelas ruas, onde alguns civis perambulavam cá e lá, buscando um único endereço - o endereço que correspondia ao domicílio onde se encontrava a Raiz.

A noite anterior fora festiva, como sempre acontece em finais de ano. As pessoas tinham se reunido no topo dos edifícios para lançar os fogos antipoluentes, rir e se divertir, bebendo champanhe, cerveja e vinho. Muitos tinham se excedido no consumo de álcool e quebrado algumas das regras impostas pelo toque de recolher, menos severo em uma ocasião festiva como aquela... Boa parte destes agora dormiam em um posto policial qualquer, capturados no ato flagrante, esperando seus julgamentos e sentenças.

Era normal. Sempre acontecia. Transgressões em ocasiões festivas. O consumo exagerado de bebidas alcoólicas, e de certas drogas, liberadas apenas durante tais dias por umas poucas leis antiquadas e deficientes, impelia as pessoas ao abuso.

Era por isso que os turnos tinham sido duplicados, e os policiais tinham perdido um de seus dias de descanso.

Era para isso que serviam os policiais.

Algumas dezenas de julgamentos rápidos por departamento, à medida em que os transgressores fossem despertando de sua sonolência induzida, e a maior parte destes seria liberada. A seguir, iniciar-se-iam os procedimentos de detenção e julgamento decorrentes de crimes maiores. Assassinatos premeditados ou acidentais, furtos, seqüestros, suborno, chantagem, abuso sexual... Avaliações físicas e mentais seriam feitas nos suspeitos, juntamente com apanhados imediatos sobre seus antecedentes. Hábitos, costumes, vícios, vidas inteiras seriam examinadas. Provas seriam reunidas e testemunhas arroladas. Estabelecido o inquérito, o réu iria imediatamente a julgamento, e, antes do final do dia, sua pena inicial seria definida, a qual poderia vir a ser revogada no decorrer dos próximos dias, a depender de outros fatores que pudessem ser somados ao conjunto de evidências, ou deste removidos.

E o ano novo começaria, como começam todos os novos anos. Como normalmente acontecia em quase todos os feriados.

Milhares de detenções, milhões até, pelo país inteiro.

Haveria protestos contra o Sistema Penal, contra o toque de recolher, contra os políticos... contra a natureza dos policiais.

"Os policiais não são humanos!", bradariam os mais exaltados.

E no fim das contas, todos os contraventores continuariam sendo presos, e a vida continuaria.

Nada mais justo, em se tratando de um Sistema Penal tão eficiente.

O policial passou a percorrer uma rua menor, onde se viam muitas árvores pelas calçadas, e casas pequenas. Mulheres com carrinhos de bebê, velhos de bengalas andando devagar pelas ruas. Pessoas que olhavam desconfiadas para o policial e sua motocicleta tão barulhenta.

Alguns olhavam com nojo, ou ódio.

Era um lugar tranqüilo.

Havia muitos lugares tranqüilos. A política de restrições estabelecida pelo moderno Sistema Penal tinha sido muito eficiente em criar e manter um clima de tranqüilidade nacional. Abusos tinham sido coibidos em todas as áreas. Organizações foram desfeitas. Estilos musicais foram proibidos. Religiões deixaram de existir. Alto-falantes foram removidos de carros. Fogos de artifício deixaram de ser fabricados. Motores tiveram potência reduzida. Munições e armas pararam de ser revendidas. Aparelhos de som foram apreendidos. Crianças passaram a ser presas. Festas foram proibidas. Fábricas fecharam. Outras abriram. Feriados não mais aconteceram. Outros foram criados para substituí-los.

Mudanças, mudanças e mais mudanças.

Não havia barulho. Não havia sujeira. Não havia tumulto. Não havia malucos a solta nas ruas.

Não havia crime. E este era o resultado das mudanças.

E a maior de todas as mudanças eram os policiais em si.

"Os policiais não são humanos!"

Os dados relatados pelo código MMP-042958 não poderiam ser mais específicos.

Esta era a rua.

Ali se encontrava o esconderijo. A Raiz poderia ser encontrada em uma daquelas residências.

O policial diminuiu a marcha da motocicleta, e passou a observar as casas de um dos lados da rua com mais atenção.

A numeração era antiga, e tornava-se difícil a orientação.

Árvores e velhos cercados bloqueavam a vista, e alguns números não podiam ser encontrados.

- Obter listagem de endereços a partir da minha localização atual - disse o piloto da moto, com sua voz fina, abafada.

Um outro mapa surgiu ocupando quase todo o escuro visor do capacete, sendo envolvido por mais uma seqüência de outros tantos quadros, fotos, imagens e letras dançantes. No centro do mapa esverdeado, um ponto cintilante indicava a posição de sua moto, obtida por intermédio de satélites. Números e letras apareceram. Uma animação rapidamente substituiu o mapa por uma listagem de todos os endereços dos arredores.

- Comparar com a antiga numeração das casas.

Algumas das mudanças que tinham sido desenvolvidas pelo novo Sistema Penal estabeleciam novos modelos de endereçamento para prédios e residências, e não era estranho que ainda houvesse casas nos bairros mais antigos das cidades em que a numeração antiga ainda não tivesse sido completamente substituída. Existia toda uma série de entraves físicos e burocráticos impedindo a troca imediata de nomes de ruas e números de casas, muitos propostos pelos sistemas de correios e de transportadoras de carga, e pelas instituições que gerenciavam o patrimônio histórico, e alguns até por políticos, que sempre estavam de olho nos votos de todo mundo.

Para o policial, nada disso importava.

- Ampliar raio de ação, e procurar o endereço indicado no código MMP-042958.

Cumprir sua missão era o seu único objetivo.

Novos mapas surgiram em diversos cantos de seu visor, e todos eles acabaram unindo-se em um só, onde duas marcas cintilantes indicavam tanto a moto quanto a casa desejada, situada cinco quadras adiante.

- Desativar visor. Elevar prioridade para telecomunicações em um.

A moto seguiu em frente, em velocidade constante.

A rua era aquela. O endereço era o indicado.

Em breve, daria-se o esperado encontro com a Raiz.

Era o momento do Policial concentrar-se. Estabelecer suas próximas linhas de ação.

Armas carregadas. Sessenta e cinco tiros paralisantes na maior, e dez na menor, e a faca para quaisquer outras ocasiões especiais em que uma luta corpo-a-corpo fosse inevitável. Havia ainda a munição especial - pentes com balas mortais e explosivas - guardada em separado. E não se podia esquecer de sua habilidade em artes marciais...

A Raiz não era um criminoso comum, e jamais poderia ser tratado como tal.

As quadras foram se passando.

Crianças olhavam de longe, risonhas e gritalhonas, como só crianças devem ser.

Casas antigas foram se indo a medida em que a moto avançava.

Portas e janelas foram fechadas.

As pessoas comuns ainda temiam os policiais. Isso certamente se devia ao fato de que pessoas comuns, anômalas, adoram cometer pequenos delitos. E adoram protestar, e adoram exceções.

E os policiais, os novos policiais... eles adoravam capturar criminosos. E eram eficazes no que faziam.

Para isso tinham nascido.

"Os policiais não são humanos!"

Uma...

Duas...

Três...

Quatro...

Era ali. A quarta casa do quarteirão por onde a motocicleta estava passando.

O soldado foi diminuindo a marcha, até que a moto parou.

Com uma marcha à ré, o possante veículo foi estacionado. Seu pneu traseiro ficou apoiado na orla do passeio.

O motor deu mais dois roncos e afinal parou de funcionar.

Descendo da moto, o policial permaneceu parado alguns instantes, admirando aquela residência.

Construída provavelmente na metade do século anterior, a casa não apresentava detalhes que tivessem qualquer relevância em se considerando o requinte arquitetônico. Quatro paredes principais e um telhado piramidal, com quatro lados, era praticamente o que se via. Tão simples quanto dois e dois são quatro.

Uma cerca baixa de velhos tijolos separava o terreno do passadiço, e uma trilha destes mesmos tijolos levava até uma espécie de sacada, coberta de azulejos de um grená pálido e ressecado, disposta um degrau acima daquele caminho. Um recorte à direita de uma das quatro paredes principais projetava esta e metade da pequena sacada alguns metros para dentro da casa, criando uma área coberta simples, onde a porta da frente se escondia, guardada por um par de suportes metálicos onde jaziam vasos com samambaias muito parecidas. Uma lâmpada incandescente pendia do teto indistinto da pequena entrada, segura por um receptáculo ordinário e cabo pretos, e mais nada.

Rachaduras percorriam paredes tingidas em diversos tons de bege, refletindo extremo descuido com a pintura e a conservação do imóvel. Trepadeiras lançavam-se às paredes, esforçando-se para mantê-las de pé por mais algumas décadas, enquanto cascas de tinta seca se desprendiam, revelando ainda mais tijolos velhos, parcialmente cobertos com argamassa cinzenta e musgo.

O telhado, que em outros tempos devia ter sido vermelho-claro, tornara-se escuro e manchado. Fungos e liquens iam brotando em cima e em baixo das velhas telhas de cerâmica, cheias de dobras e encaixes, e ainda perfeitamente afixadas umas junto às outras.

Uma velha chaminé surgia, trespassando a couraça de telhas, e levando algumas destas consigo, empurrando-as para o alto de modo a constituir um telhado próprio e exclusivo, também em forma de pirâmide. Em virtude das novas regras e imposições ambientais, que eram parte do Sistema Penal e limitavam em muito a quantidade de monóxido de carbono que poderia vir a ser expelido anualmente por cada residência, a tal chaminé parecia estar em desuso há um longo intervalo de tempo, e ninhos de pássaros podiam ser vistos no lugar de fumaça em suas aberturas.

Os cada vez mais raros dias de frio durante o ano e a escassez crescente de madeira tinham transformado as velhas chaminés em meros detalhes arquitetônicos sem utilidade, típicos das casas mais antigas.

Uma pequena janela se destacava, cravada na parede contígua à abertura que dava na porta da frente, com venezianas fechadas, pintadas com uma mistura de tons escuros indo da cor de vinho ao marrom.

Plantas, flores, arbustos, pequenas árvores e até mesmo capim crescia por todos os cantos entre a cerca de tijolos e a casa, e também em redor desta. Vasos feitos de cerâmica ou de troncos de velhas árvores e mesmo recortados em pneus eram comuns, lotados com plantas de tantos tipos quantos se possa imaginar. Orquídeas, roseiras, jasmins, margaridas, cravos, amores-perfeitos, apenas para nomear algumas das plantas a partir de suas flores.

Sem tempo para apreciar tamanha variedade vegetal, o policial atravessou a calçada toda feita de pedras sedimentares fatiadas, passou pela cerca de velhos tijolos, e galgou o caminho de pedras de formato arredondado, invadido pela grama, que levava até a entrada principal da casa.

Subiu o degrau único e examinou a porta. Não havia botão de campainha, o qual também não se fez necessário...

- Entre, policial.

... pois a porta já se encontrava aberta.

- Estava esperando a sua visita. Aceita um chá?

(continua...)

Fabian Balbinot
Enviado por Fabian Balbinot em 27/03/2006
Código do texto: T129248
Classificação de conteúdo: seguro