CYBER - A última criação

Sentada em sua cadeira de rodas, Suzannah Martins observava, nervosa, as imagens transmitidas pela televisão. A guerra que todos tanto temiam havia iniciado. Mas ela não teve muito tempo para ponderar o que seria do futuro do mundo, pois, de repente, tudo se apagou. Televisão, luzes, eletrodomésticos. Tudo, exceto seu computador, que possuía uma proteção especial que o impedia de entrar em pane em caso de pulsos eletromagnéticos gerados por diversas razões. Apavorada, ela percebeu que estava totalmente presa. Sua cadeira de rodas havia parado de funcionar.

- Droga... – com um profundo suspiro, ela começou a pensar e, segundos depois, falou em alto e bom som – Computador, iniciar programa de interação social 001. Codinome, Zannah. – momentos depois, um rosto sorridente, muito semelhante ao da própria Suzannah surgiu na tela:

- Boa tarde, senhorita Martins – a voz sintética ecoou pelos auto falantes do pc, quase humana – Em que lhe posso ser útil?

- Conexão com Afonso Marius, em alta prioridade, imediatamente, Zannah. – ordenou Suzannah, após um longo suspiro de alívio.

- Como desejar, senhorita Martins – segundos depois, uma janela se abriu e, mais rápido que ela imaginaria ser possível, a conexão com a pessoa que ordenara foi feita – Conexão completada – disse Zannah, com sua voz sintética suave e educada – Estabelecendo contato de áudio e vídeo em tempo real em três segundos – mal isso foi dito, o rosto de um homem surgiu na tela do pc. O rosto de Afonso Marius.

- Oi, Suzie – disse Afonso, aparentemente tranqüilo – Tudo beleza?

- Não – falou Suzannah, franca – Estou presa em minha cadeira de rodas e tudo, exceto meu pc, está inativo. Como poderia estar “tudo beleza” numa situação dessas?

- Calma, Suzie! – disse Afonso, se defendendo – Foi só maneira de dizer!!!

- Dá pra você entrar em contato com o pessoal da base pra alguém vir me ajudar? – falou Suzannah, sem rodeios – De preferência, antes da próxima bomba detonar aqui perto? – ela suspirou – Como você já deve ter notado, eu não posso fazer isso sozinha.

- Nem te preocupa, Suzie – disse Afonso, calmamente – Dentro de uns quinze minutos, alguém já vai estar arrombando a porta do teu apê e te levando pra um lugar seguro. – diversos bipes foram ouvidos, oriundos do local onde ele estava – Vou ter que desligar, Suzie. Tem um monte de gente solicitando remoção, assim como você. Desculpa.

- Sem problema. – falou Suzannah, inexpressiva – Faça seu trabalho. Eu não vou a lugar nenhum mesmo... Posso garantir que vou esperar o resgate sem sair do lugar um milímetro sequer. – como sempre, Afonso balançou a cabeça e retrucou:

- Porra, Suzie! Por que você tem mania de fazer piada com o seu problema?

- Se eu não rir da minha desgraça, quem vai rir? – disse Suzannah, serena – Te vejo daqui a pouco mais então, Afonso. Vai fazer teu serviço.

- Ok, Suzie. Até breve. – a janela se fechou no monitor do pc, indicando a ela que a conversa tinha tido um fim definitivo. Com um novo suspiro, Suzannah ordenou:

- Zannah, marque quinze minutos a partir de agora.

- Sim, senhorita Martins. – respondeu a voz sintética, submissa – Deseja mais alguma coisa? – ao ouvir isso, os olhos de Suzannah deslizaram por suas órbitas, na direção da magnífica vista que havia naquela sala, devido a uma imensa janela panorâmica.

- Iniciar protocolo Proteus, Zannah – disse Suzannah, finalmente – Vamos trabalhar enquanto o resgate não chega, para o tempo passar mais rápido – ela suspirou e começou a dar diversas ordens a Zannah, que, seguindo sua programação primária, executou-as com perfeição em pouquíssimo tempo. Quando os quinze minutos se findaram, Zannah alertou sua mestra, com suavidade:

- Os quinze minutos que a Senhorita solicitou que eu marcasse se findaram. Deseja que eu reestabeleça a conexão com o senhor Afonso Martins?

- Sim, faça isso. – falou Suzannah, com uma tranqüilidade que não sentia. Após várias tentativas inúteis da parte de Zannah, para estabelecer uma nova conexão, Suzannah deu-se conta do óbvio. Meia hora havia se passado. Talvez o resgate nunca viesse.

- Devo tentar uma via alternativa, senhorita Martins? – perguntou Zannah, com sua voz cheia de respeito, mas livre de calor humano.

- Ponha a conexão em rediscagem automática, Zannah. – decidiu Suzannah, finalmente – Vamos seguir nosso trabalho até que alguém atenda, está bem?

- Como quiser, senhorita Martins. – imediatamente, a janela de conexão foi minimizada e a de trabalho, restaurada – Todos os arquivos disponíveis na internet sobre línguas, linguagens e assemelhados foram integrados satisfatoriamente a minha programação básica. – informou Zannah, com sua voz sem emoção – O que devo procurar agora, senhorita?

- Procure por toda literatura disponível na rede... Não importa o assunto. – falou Suzannah, tranqüila – Encontre, faça o download e anexe a sua programação. – o suave zumbido da CPU quase lembrava uma canção, enquanto diversos ícones dançavam no monitor, em um arremedo de balé. Após algum tempo, Zannah informou-a:

- Ordem realizada satisfatoriamente. Todos os dados já foram anexados a minha programação, com sucesso. – o rosto virtual sorriu, com suavidade – Novas ordens?

- Iniciar busca por imagens – ordenou Suzannah.

Logo, ela esqueceu-se do tempo, imersa no trabalho mais significativo de sua vida. A cada ordem concluída satisfatoriamente por Zannah, Suzannah lhe dava outras, cada vez mais elaboradas. Quando suas idéias finalmente acabaram, ela deixou-se desanimar:

- Zannah, informe quanto de memória disponível – falou Suzannah.

- Cerca de 37%, senhorita Martins. – respondeu Zannah.

- Abrir programa de texto, Zannah. – imediatamente, Zannah cumpriu a ordem – Ativar programa de captação vocal e conversão para texto.

- Programa ativado. – informou Zannah, suavemente.

- Vamos começar, então – resmungou Suzannah, antes de começar a falar, em voz clara e firme – Geralmente, os seres humanos tentam repassar sua história a futuras gerações através de livros, monumentos, arte, literatura, poesia... Mas... E quando tudo evolui tão rapidamente, mas nem assim esses aspectos se tornam obsoletos? Como pode alguém, prestes a ver seu mundo inteiro morrer, cruzar os braços? Como confiar ao papel a esperança, a fé e o indomável espírito humano, além de milhares de anos de história? O papel se desgasta, se rasga, torna-se pó com o passar do tempo. A memória humana e a tradição oral seriam a resposta? Creio que não, pois desta maneira, em algum momento, no decorrer dos anos, tudo poderia ser perdido ou distorcido, pela simples vontade de um que, não satisfeito, talvez narrasse a história de seu ponto de vista, transformando demônios em santos, ou algo do gênero. Deveríamos, então, confiar essa tarefa ao universo da informática? Um arquivo pode ser corrompido, apagado ou alterado... Mas, com a aniquilação batendo a minha porta, não vejo outra alternativa a não ser criar uma cápsula do tempo, feita de milhões de bites de informação, na vã esperança de que ela percorra os milhares de quilômetros de cabos rumo ao centro da terra e se abrigue em um terminal, escondendo-se em algum computador governamental, projetado para agüentar o pior dos hecatombes, preservando assim alguma coisa do mundo que conheci e amei. Um tesouro a ser descoberto em um futuro distante, cheio de imagens e referências virtuais a maravilhas que, em breve, deixarão de existir. Por que faço isso? Talvez para tentar dar um sentido ao que resta de minha vida, sem ficar pensando em quão breve e estúpido será fim que terá a humanidade... E legar, a quem quer que consiga sobreviver ao inferno criado pela mão do próprio homem, um lembrete do que nossa espécie perdeu, o que ela fez e o que destruiu. Minha visão, porém, poderia ser mais pessimista... Mas não quero. Desejo que meu último ato na Terra fale de fé... Que traga alento e esperança, pois muitas vezes, olhando para o passado, a espécie humana consegue vislumbrar seu futuro. Neste momento, por exemplo, eu aguardo o Apocalipse, mas tenho esperança de que este registro sirva, de alguma forma, para ajudar a criar um novo Gênese... Do pó viemos, ao pó voltaremos... Moldados por lágrimas, impulsionados por sonhos, personalizados por gestos e humanizados por risos. Apesar de aguardar a hora mais negra de minha raça, que em breve poderá ser extinta, me apego a inabalável fé de que sobreviveremos, de alguma forma. De que resistiremos a grande tempestade como um singelo junco, enquanto tudo mais tomba a seu redor. O ser humano é versátil. Se adapta. Se reinventa e dispara através do mundo, em busca de algo que nem ele sabe o que é...Talvez porque, bem lá no fundo, saibamos que viver é como uma peça improvisada, onde cada passo, cada palavra, é uma linha que escrevemos pelo caminho... E cujo fim, também não fazemos idéia. Afinal, cada ato se desenrola a cada etapa da caminhada. A próxima cena pode conter a grande virada que alterará todo enredo. Mas, se a vida toda é semelhante a uma obra literária, onde fica o sonho? Onde fica a fé? Fica em cada sentença de nossas vidas. Em cada respiração, mesmo que alguns neguem essa remota possibilidade... A grande verdade é que a humanidade deixou de lado tantas coisas para venerar o dinheiro, o poder e a força, que esqueceu que a fraternidade, o amor e o perdão são mais poderosos. Eu passei a minha vida criando formas de alcançar a paz através das armas com meus projetos, mas tudo que consegui foi guerra e morte. Se me arrependo? Sim, mas sei que de nada isso adianta agora. O que está feito não pode ser desfeito, pois não há mais tempo hábil para isso. Só me resta agora cerrar os olhos e fazer uma fervorosa prece, da mesma maneira que eu fazia quando era criança e a maldade ainda não havia deitado raízes em meu coração. E eu rezo... Rezo por aqueles que irão perecer, assim como eu. Oro por todos os que sobreviverão a um primeiro momento, para que eles encontrem forças para prosseguir e não se render a extinção... Faço uma prece para as gerações futuras, para que consigam desfazer o mal criado por esta, que se apagará como uma vela ao vento. E por fim... Rezo por mim, por você e por todos que necessitarem de conforto, fé, esperança e coragem, tanto agora, no inevitável fim, quanto num futuro recomeço, que não há de ser nosso, mas de outros... Pois, em breve, esses atributos serão tão necessários quanto o conhecimento, para que algo renasça das cinzas...

Subitamente, a voz de Suzannah tornou-se embargada, antes que ela se rendesse ao pranto. Bem sabia que este era seu ato derradeiro no mundo: prantear a si mesma e aos que pereceriam, ao mesmo tempo em que tentava legar algo as futuras gerações. Respirando fundo, ela ergueu o queixo e engoliu o pranto, antes de ordenar:

- Zannah, finalize seus protocolos básicos.

- Como desejar, senhorita Martins – disse a voz sintética, suavemente. Após um breve zunido, ela anunciou, mansamente – Protocolos básicos finalizados. Diagnóstico: todos os downloads e arquivos anexados a minha programação são executáveis. Próxima ordem? – após pensar por alguns segundos, Suzannah suspirou e ordenou:

- Acione biblioteca de mídia, em áudio. Acione o arquivo 18, coloque-o em repetição, e depois execute o protocolo Fênix, Zannah – imediatamente, a sala foi invadida pelos acordes iniciais da ária final de Madame Butterfly, de Puccini.

- Protocolo Fênix iniciado. – alertou Zannah – Foi uma grande honra servi-la, senhorita Martins... – a falsa cordialidade e calor da voz sintética confortou Suzannah, que simplesmente murmurou, pouco antes de um borrão cor de cereja atravessar a tela, para nunca mais retornar:

- Boa sorte, Zannah... – e voltando o seu olhar para a janela panorâmica, Suzannah se permitiu um último vislumbre do céu, que se tingia de fogo, cada vez mais próximo, enquanto cantarolava um trecho da ópera – "(...) Oa me sceso da trono, dell’altro Paradiso, guarda ben fiso, fiso, de tu madre la faccia! Che te’n resti uma tracia... Guarda ben! Amore, addio, Addio! Piccolo amore…(…)" *

Fim?

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* Trecho da ária "Con Onor muore", de Madame Butterfly, de Puccini

Zannah
Enviado por Zannah em 03/11/2008
Código do texto: T1264090
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