O Sindroma Sniper

Escrevi este conto em 1998 e descobri porteriormente que haviam outras histórias vagamente semelhantes como "Relatório Minoritário". Nunca fiz nem nunca farei qualquer tipo de plágio, por principio moral e literário e por achar que a mente humana é demasiado grande para se copiar a si própria. As ideias presentes neste conto são pois originais e vagamente baseadas no livros de ciência que leio (e que me deram a ideia das máquinas que apresento) e nos conflitos onde os Sniper (franco-atiradores de elite) fazem a sua terrível lei. São seres humanos como nós, sentem como nós, porque é que então matam como ninguém? Foi para os tentar perceber que escrevi estas linhas.

O SINDROMA SNIPER

A indiferença faz os sábios

a insensibilidade monstros

D.Diderol

I

Carlos levantou-se bem cedo, como era seu hábito. Sem acordar a mulher, dirigiu-se à casa de banho, onde cumpriu a rotina de todos os dias : tomar banho, fazer a barba e ouvir o típico programa de rádio que, apesar da banalidade própria dos locutores daquela hora, ainda tinham o condão e a graça de o porem bem disposto, além de o informarem do estado do trânsito e tempo, bem como de algumas notícias. Depois, já na cozinha, preparou o pequeno-almoço. Quando este já estav na mesa dirigiu-se ao quarto dos filhos e despertou-os. Como todas as crianças, estas eram particularmente resistentes ao sol da manhã, pelo que, o seu acordar constituia mais uma espécie de “ludicismo” do que propriamente uma obrigação. Apesar da resistência mal-humurada, Carlos adorava aquela rotina, arranjando todos os dias novas brincadeiras que levassem as três crianças a levantarem-se com o máximo de celeridade possível.

Quando estas já estavam irremediavelmente a pé, dirigiu-se ao quarto e, como sempre, beijou a mulher insistentemente, mas de forma suave até esta se levantar.

Em meia-hora estavam todos à mesa, alternado-se nas idas ao micro-ondas, de maneira a comer as panquecas quentes...o casal trocava então gracejos , e os pequenos a envolviam-se nas triviais guerrilhas da idade ou, num pequeno momento de “detante”, a invectivarem o permanente namoro dos pais.

E ele adorava tudo isto.

Adorava a mulher, que conhecera no grupo diocesano tendo partilhado na sua companhia alguns anos de trabalho voluntário nos bairros pobres, até descobrir que ambos estavam apaixonados; adorava os frutos do casamento, “uma tripla bem conseguida” (como de resto gostava de pensar), de petizes, saudáveis e boas crianças que haveriam de dar melhores adultos; adorava a sua vida, considerando-se um felizardo, apesar das típicas dificuldades tipicas da classe média-baixa onde se encontravam inseridos.

Bom vizinho, a diferir da máxima a profetizar distanciação e isolamento nos laços comunitários dentro da grande cidade, estava sempre disponivel a qualquer ajuda, desde as sempre corriqueiras operações de bricolage, até (quando possível) ajuda económica. Por isso, mal saia de casa e se encontrava na rua era constantemente saudado e apontado como exemplo aos novos habitantes do bairro.

Como que por arrasto, no emprego era considerado exemplar : chefe de secção da oficina principal de uma marca de automóveis, sabia fazer a síntese perfeita do chefe exigente, mas humano o suficiente para não hesitar em ajudar um empregado mais desastrado.

A vida estava pois destinda a seguir o padrão do seu comportamento : acabaria velho e respeitado, a ocupar o tempo que lhe restava entre o voluntariado comunitário, a ajuda aos serviços eclesiásticos, e os netos.

E ele sabia-o bem, sentindo-se grato por tudo isso, grato ao Deus a que era tão devotado incondicionalmente, Deus mesiricordioso, a conceder-lhe essa faculdade única de praticar o bem e de se sentir perfeitamente bem e, ao contrário de outros, sentir-se realizado nisso, sem pedir nada em troca.

Por isso, tal como em todas as manhãs, de pois de ajudar a mulher a arrumar a cozinha e de ter posto os filhos na paragem do autocarro escolar, dirigiu-se a pé até à oficina, a dez minutos dali.

Comprimentou o padeiro, comprou o jornal, engraxou os sapatos na caixa do velho Thomas, amigo da família e figura típica do bairro, dando-lhe generosa grojeta, a compensar a parca reforma de uma aposentadoria precipitada pela falência do seu anterior emprego, e apressou-se a atravessar a passadeira por entre o intenso tráfego; pelo meio ainda sorriu a um polícia atrapalhado pelo caos da hora de ponta.

Sem que ninguém, nem mesmo Carlos, se apercebesse disso, uma pequena “borbulha” vermelho-escura apareceu-lhe, durante alguns segundos, no meio da testa, pouco acima dos olhos. Mal chegou ao outro lado da rua, ele caiu desamparado.

Rapidamente foi rodeado pela inevitável multidão, apesar dos esforços do polícia em contrário.

Ouvindo o burburinho, Thomas rompeu entre o muro humano e, na primeira fila pôs-se a olhar apara o corpo do amigo.

-O que é que aconteceu?-Perguntou uma voz anónima.

-Foi um Sniper!

Num apíce a multidão enfureceu-se e começou a pontapear o corpo.

Meio-surdo Thomas não compreendeu, tentando evitar o flagelo na possibilidade da sua velhice, gritando para a turba, até um deles lhe berrar ao auricular.

-O GAJO FOI ABATIDO POR UM SNIPER!

Então o velho compreendeu e a sua atitude mudou radicalmente, começando, também ele a pontapear o corpo já semi-desfeito, berrando desolado :

Nunca pensei! Que nojento, que animal, todos estes anos a enganar-nos!

II

Filipe acordou bem disposto pelas seis da manhã. Estava um dia calmo, praticamente sem vento e a prometer muito sol e calor, enfim, um dia de verão normal, tal como ele gostava.

Depois de se barbear, vestiu-se rapidamente e pegou na mala de serviço, preparando-se para sair rapidamente de casa quando foi interpelado por uma voz bem conhecida.

-Então e o pequeno-almoço? Na rua como sempre? Hás-de render bem, a comer dessa maneira!

Perante a sua natural resistência, e com a capitulação habitual, Filipe sentiu-se tal qual uma criança apanhada em falso, depois de premeditada e inocentemente ter tentado enganar os pais.

Era sempre assim, todos os dias : ansioso por começar a trabalhar, esquecia-se de Beatriz e dos miudos. Mas quando chegava à mesa, o esquecimento familiar desvanecia-se e tudo voltava à velha e saborosa rotina. Questionava-se então como era possível esquecer-se deles, de Beatriz, dedicada esposa, compreensiva e melhor conselheira dos seus momentos mais negros, de António, primogénito, cujos douze anos dotados indiciavam já a tendência para seguir a profissão do pai, além de Berta, a menina dos seus olhos, dez felizes anos numa criança linda como poucas e já com o feitiu “de santa” da mãe.

Adorava-os e eles adoravam-no.Constituiam um todo perfeito, inquestionavelmente unidos, apesar de só estarem realmente e com tempo juntos à noite, tal como milhões de outras famílias . Por eles planeava os melhores fins-de-semana e as mais divertidas férias, únicas alturas em que “de facto” a família vivia vinte e quatro sobre vinte e quatro horas entregue a si própria.

E foi a pensar nesse próximo fim-de-semana que saiu de casa, num ânimo pouco comum a uma segunda-feira..., e se dirigiu ao edifício designado para aquele dia.

Iriam passar dois dias na lagoa a 200 Km dali, espaço artificialmente criado há cem anos, mas cujo cuidado na preservação e constantes melhorias, constituiam o “must” ideal para aqueles que pudessem pagar o aluguer dos alojamentos, além do barco obrigatório. Não seria barato, bem o sabia, mas prometera isso à família, e portanto, era ponto assente. Ainda para mais, comprara, havia pouco, nova carrinha que mandara vir, já equipada com material de pesca último modelo, escolhida num exclusivíssimo catalogo.

E eram como se tudo estivesse a passar-se naquele momento : imaginava a garotada a tomar banho, envolvendo-se nas tropelias aquáticas habituais, enquanto ele, eficazmente acessoriado pela mulher, não incondicional deste desporto, mas sendo-o porque esta era uma forma de lhe fazer companhia; adorando Filipe, aprendera aquela arte ao ponto dos conhecimentos sobre a matéria rivalizarem com os do marido, e porque os momentos de pesca eram os únicos onde ele verdadeiramente respirava, onde se distanciava completamente do seu duro emprego, olhando as águas com uma itensidade só própria dos seus raros momentos de interioridade. Ela sentia que a partilha da pesca era a única forma de aceder ao mundo secreto do marido, ela sabia que por detrás dos termos técnicos que utilizavam estava a linguagem escondida do seu limbo. Depois, há noite, iriam jantar num dos montes próximos sob o céu imaculado, beijado pelas abobadas das árvores, qual catedral natural, vibrando com as notas pupulares saidos da guitarra de Filipe e das vozes da familia a festejar, porque arranjavam sempre qualquer coisa para festejar, fazendo grande pândega de coisas, muitas vezes insignificantes para todos menos para eles, porque eram precisamente deles, eram o seu intimo.

Filipe sorriu. Seriam dois dias fabulosos!

Olhou para o relógio. 8,30. Dispunha de meia-hora. Comprou o semanário cultural e sentou-se num banco do jardim próximo. A um escuteiro deligente pediu farelo e durante vinte minutos dividiu-se entre a leitura e o dar de comer aos pombos sempre esfaimados. Pelo meio deliciou-se ainda com o quadro à sua frente : velhos, com aspecto de bons rezingas sentados à sua frente e cavaqueando em falsa surdina sobre qualquer coisa ; mães a acompanhar os filhos, ensinando-lhes os primeiros rudimentos da natureza possível das cidades, e os inevitáveis parzinhos de namorados. Aqui e ali também se viam mendigos que deambulavam de pessoa em pessoa, pedindo a habitual “ajudinha”, recusada por ele com o seu sorrizo afável e condescendente.

Que belo mundo era o seu!-Pensou animado.

Descontraiu-se mais um pouco, tentando a abstração possível, mas o olhar recaiu sobre o relógio da igreja próxima.

Tinha cinco minutos.

Pegou delicadamente na mala e procurou o prédio.

Nº23.

Mal o avistou, passou pelo porteiro e apressadamente mostrou o passe.

-Sim, já estou informado-Disse franqueando-lhe a entrada, mas Filipe não o ouviu, concentrado como já estava no trabalho. Um pouco atrasado e ainda tinha de subir vinte andares, além de preparar o quarto. A sorte era o edifício ter ascensores muito rápidos, e ele ter mecanismos tão apurados nos quais se inseriam pequenas demoras; além do mais estas demoras estimulavam-lhe ainda mais a adrenalina, aumentando a sua já alta eficácia, senão...

Mal chegou a uma espécie de escritório foi guiado pela inevitável e atraente secretária, encantada por o receber e que, além de lhe agradecer, indicou o local de trabalho.

Antes de fechar a porta servilmente ainda...

-Se quiser qualquer coisa, comida, bebida, música.

Ele sorriu amavelmente e declinou, agrdecido as simpáticas mas idiotas ofertas.

Tinha dois minutos.

Olhou para a rua : avenida bastante frequentada com meia-dúzia de Shopings. Ideal. Escureceu os vidros, apagando também a luz do compartimento. Depois, abriu a mala, tirou de lá e colocou o visor na cabeça, inclinando a lente do olho direito até esta o tapar completamente; procurou duas pequenas caixas quadradas, inseriu-as no espaço situado por cima de cada orelha e testou a aparelhagem.

Tudo pronto.

Um minuto.

Decifrou, com a chave personalizada onde estava o seu código genético, a entrada do compartimento maior da mala. De lá tirou, primeiro o tubo (onde estava incluido o laser), a seguir algo semelhante a um gatilho e respectivos apetrechos, de seguida a mira, por fim, ajustou tudo à coronha. Do bolso interior retirou três balas de metal. Em principio colocaria uma, mas os anos de experiência tinham-no tornado pragmático. Havia sempre a “tal hipótese de falhar”, e isso significaria, além do inconveniente evidente, menos dinheiro na reforma.

Todos os seus gestos dir-se-iam frenéticos se não viessem dum profissional da sua tempra . Nele cada movimento apesar da sua extraordinária rapidez era pura arte, pela firmeza precisão e elegância que esses gestos banais ganhavam na pessoa de Filipe. Por isso o atraso era insignificante porque na sua calma e profissionalismo dominava o tempo.

Virou uma cadeira ao contrário, apoiando o cano nela. Problema.

Esqueceu-se da janela.

Dez segundos.

À justa, abriu o vidro 5 cm, mas tendo o cuidado de manter o cano 20cm dentro da divisão.

Agora bastava esperar.

Desta vez passaram apenas quinze minutos.

Filipe soube chegada a hora quando sentiu uma estranha inquietação. Via agora claramente o mal. Pensamentos horrendos, uma vontade contida de destruição. Imagens! Tinha imensas, imagens de vítimas, de futuras vítimas, ou de possíveis, hipotéticas que poderiam nunca o ser, mas como o eram em potêncial não valia a pena arriscar. Só faltava a imagem dele.

Vasculhando bem dentro desse anônimo, pesquisou frenética mas calmamente antes de perder o sinal - e isso nunca poderia acontecer porque perder o sinal significaria perdê-lo o alvo e assim ser também responsável por várias tragédias! -Pelo meio encontrou coisas belas, porventura a ocupar a maior parte dessa mente que, contudo era potencialmente doente, logo responsável, logo eliminável.

Olhava, simultâneamente com o olho esquerdo, e pela mira telescópica da arma, para a multidão abaixo de si, enquanto o visor (que lhe transmitiria a imagem clara e definida desejada proveniente do cérebro para a vista direita) procurava no outro a tal imagem.

Finalmente apareceu um rosto nitido na mente e na vista de Filipe. Agora era procurar o equivalente entre a multidão.

Ei-lo! Vai no passeio. Confirmado o rosto, accionar o laser que servia de “apontador”. Muita gente. Deve esperar até ele estar minimamente isolado. Agora, vai atravessar a passadeira. O ponto vermelho esta fixo na testa. Dedo firme, apenas uma leve pressão. Corpo caido, menos um problema, missão comprida.

Tinha ganho o dia mal o começara.

Como sempre não sentia quase nada, apenas a consciência do dever comprido, além de ter poupado dinheiro aos contribuintes, nas possiveis investigações policiais, tribunais e certamente meia-dúzia de caros técnicos de saúde mental. Assim, indirectamente ele constituia um dos instrumentos do controlo dos sempre curtos orçamentos estatais, concentrando numa única pessoa e ordenado modesto ordenados de outras dezenas...

Agora teria de esquecer as boas imagens que vira, esquecer o rosto daqueles que pensara serem os familiares do morto, esquecer o nome dele, esquecer a família destruida, relembrar as famílias poupadas pelo seu acto, entre as quais poderia estar a sua...Por norma, se não o conseguisse fazer sozinho, poderia requerer ajuda especializada até à próxima missão, mas ele sempre se recusara a tal. A angústia habitual durava apenas os dois minutos seguintes ao disparo. De seguida, a sua prodigiosa capacidade em reconverter recordações dubias aparecia e fazia dele o que sempre fora : um simples, normal, dedicado e altamente eficaz funcionário estatal.

Considerava o emprego normal, como normais eram os empregos, mais ou menos desejados, tarefas a terem de ser feitas por alguém, de preferência as pessoas mais indicadas. Lares desfeitos? Famílias destroçadas? O mundo estava a abarrotar disso e ninguém se parecia preocupar verdadeiramente, desde que isso não lhe tocasse...

Embora não “venerasse” propriamente o que fazia, estava longe de o detestar, tendo plena consciência do papel insubstituivel por si desempenhado, e dai a sentir-se orgulhoso era apenas um pequeno passo...a levá-lo todos os dias a novas missões com a moral em alta. Ao longo dos anos aprendera e desenvolvera o gosto pelo ritual tácnico antes de cada disparo e durante os segundos que antecediam este. Toda a preparação, desde o levantar logo de manhã, à refeição com a família, ao pegar pasta dirigir-se à morada daquele dia , o preparar da sala, gestos ritmados, cuidadosos, infinitamente treinados, testados, repetidos etc...O disparar constituia apenas o orgasmo, sendo que ele preferia as preliminares...Ao contrário de alguns colegas, a dar tudo por bons tiros, e desperezando os preparativos. De certa forma via o praticar da sua profissão como um bailado, considerando-se a si mesmo como um coreografo perfeccionista naquela arte. Se calhar era por causa disso que Filipe estava entre os melhores. Para ele a caçada era tudo, a adrenalina encontrava-se no procurar dos alvos entre as milhares de imagens. Quanto mais problemática era a questão, mais ele adorava. Era um extase esquisito em que a adrenalina substituia a ejeculação, portanto nada problematizavel, em conclusão, rotina diária.

De raiz humanista, era-o e considerava-se como tal; aparentemente a profissão iria colidar com todo o edificio dos seus belos príncipios e valores, mas tal não se verificou : adorava a vida em todos os seus cambiantes, mas a preservação dessa mesma vida assumia a missão crucial da sua existência. Assim, para se proteger a multidão sem rosto, se se tivesse que eliminar o tal elemento nocivo, falo-ia, como o fazia praticamente todos os dias, sem hesitar. Em último caso, a própria família desse nocivo seria benificiada, pois estaria livre do elemento negativo.

Ao longo dos anos conservara dentro de si todos os rostos intactos daqueles a quem abreviara a existência, mas também possuia milhares de outros, daqueles a quem hipoteticamente salvara. A redenção estava aqui, nesta simples e exacta lógica aritmética.

Sob este ponto de vista, os ganhos excediam as perdas e a consciência permanecia intacta, impoluta, irrizivel.

Beatriz dissera-lhe, quando o conheceu, que ele era frio. Sem dúvida, mas de uma frieza humana, impermiável à emoção da morte do paria, mas sensivel ao sofrimento hipotético criado por este.

Talvez por isso estivesse entre o “top ten” da profissão. Jamais recorreria a médicos, não precisava de o fazer : a total percepção das emoções e o saber lidar com elas era o seu forte, a conferir-lhe insuspeita autonomia.

Todas as questões ontológicas e pseudo-filosóficas eram-lhe isótéricas, excentricas, descartáveis.

Desmontou a arma e passou pelo escritório, onde foi saudado por todos. Ele sorriu, como sempre embuido na lógia do dever comprido.

Ao sair do prédio passou casualmente à frente da agência de recrutamento da zona.

“CONSEGUES LER AQUILO QUE OS OUTROS PENSAM? GOSTARIAS DE UMA CARREIRA ATRACTIVA NO SERVIÇO PÚBLICO? VÊM ATÉ NÓS, FAZ OS NOSSOS TESTES E TORNA-TE NUM DE NÓS!”

Filipe mal conteve o tal um sorrizo saudosista. Recuou quase vinte anos. Desde pequeno que estranhara o poder de adivinhar os actos de toda a gente muito antes destes passarem à prática. Nos primeiros tempos ficara confuso e envergonhado, sentindo-se quase anormal, não revelando essa caracteristica a ninguém. Depois, com o passar dos anos aprendera a rentabiliza-la a seu favor...Assim, depois de “ premeditariamente” ter feito qualquer disparate, desaparecia de casa até a “fúria paterna” se transformar em desespero pela ausência do desgraçado entretanto passado à condição de vítima pelas horas de desespero. Bastava-lhe ficar perto e...as mentes dos progenitores indicar-lhe-iam a prescrição do castigo. Mais frequentemente quebrava a união do casal quando, perante qualquer decisão tomada pelos dois, Filipe “adivinhava” que tal decisão tinha sido tomada unilateralmente, e mais ou menos pacificamente aceite pelo outro.

Eles não percebiam, porque o filho sempre se mostrara nata aversão a técnicos de saúde mental. Desta forma, o pequeno telepata desenvolvia a seu bel prazer as capacidades, orientando-as consoante as conveniências da sua vida. E ele adorava, em especial, aplicar o “dom” em duas aréas muito especificas- No relacionamento com o chamado sexo fraco e nos estudos: mal começou os namoricos, tornou-se desconcertante, pois, apesar de baixo, borbulhento, desajeitado e nada precocupado com o aspecto, maravilhava as raparigas dizendo-lhes exactamente aquilo que queriam ouvir, oferecendo-lhes as prendas desejadas, escrendo (ou procurando...) os poemas ansiados pelas românticas cabecinhas e almas delas e por ai fora...Não raras vezes, assumia as facetas que elas idealizavam no romantismo da tolice do desejo a matizar principes encantados onde existiam apenas adolescentes iberbes e apatetados. Esta alternância de personalidades davam-lhe (vá lá saber-se porquê...) a insuspeita aura de sedução, bem como muito respeitinho, já que ele, quando recusado não tinha o mínimo pudor em revelar os problemas existências a perturbar a mente das escolhidas...

E o gozo continuava nos estudos, a segunda aréa onde aplicava a “esperteza”...-Aluno de Qi mediano, adepto pouco entusiasta dos livros, dava por melhor empregue a noite fora de portas do que confinado aos “bolorentos calhamaços”, espantando por isso mesmo toda a gente sendo o melhor aluno, embora a assiduidade e métodos deixassem demasiado a desejar. E o truque era tão simples, tão demasiado simples...Limitava-se a “pedir emprestado” horas e horas de estudo, escolhendo os melhores e fazendo notáveis provas, a valer-lhe diversos louvores e inevitável entrada para o quadro de honra dos diferentes estabelecimentos de ensino por si frequentados...

A vida era um delicioso passeio, até àquele maldito Setembro, mês dos exames finais de acesso à universidade. Escolhera o curso de média mais alta e saida profissional economicamente compensador, sem a mínima preocupação em ler o que quer que fosse, aproveitando o sol de verão para ganhar um bronzeado invejável aos marrões , bem como a praticar um desporto recém-descoberto, a caça; aliás, diga-se de passagem que, para além de poder ler a mente dos outros, não revelava especial apetência para mais nada, a não ser esse desporto recente, onde a notável pontaria desconcertara já meia-dúzia de aficciondos, espantados com o talento da revelação.

E nesse dia que pensara ser o da glorificação absoluta (os exames eram corrigidos e as notas saiam horas após terem sido feitos), ele sentou-se bem no meio dos colegas, dedicando-se logo de seguida à trivial actividade de “ rapina”.

Mas durante a primeira meia-hora sentiu-se a bloquear, não conseguindo ler nada. Parecia estar rodeado por mortos, ou por vegetais! Quase desesperou! No entanto, passados os primeiros trinta minutos a coisa voltou aos bons velhos tempos.

Foi, naturalmente, dos últimos a acabar (como convinha “pilhou” os outros o mais possível...) e isso poupou-o à humilhação maior : quando se aprestava a sair da sala uma mão tocou-lhe no ombro e alguém o convidou a entrar numa sala anexa.

Lá, quatro pessoas -os dois vigilantes e, sentados por detrás da inevitável secretária, dois homens de gravata-

-Vou directo ao assunto: ou confessa, ou, além de anularmos a sua prova tornaremos público a sua fraude...-Disse um dos engravatados.

-Não percebo-Fez-se estranhar

-Percebe bem demais - Atirou o vigilante mais velho.

-Desculpe, esqueci-me...apresento-lhe o Dr.Antunes, nosso melhor colaborador nestes dominios...-Proseguiu com indisfarçavel ironia aquele que era Filipe identificou como director do estabelecimento, apontando para o indíviduo de olhar profundo sentado a seu lado.

-Peço desculpa mas continuo a não entender.

-Não entende porque se julga intocável. Não entende porque a cabecinha abutre tem-lhe permitido até agora fazer o que sempre fez, a gozar a vidinha sem o merecer minimamente e, pior, ainda por cima está a olhar para nós a rir-se...-Disse o Dr. Antunes, intervindo pela primeira vez.

Filipe ficou assustado. O homem lera-lhe sem dúvida os pensamentos, pois o que acabara de dizer correspondia àquilo que ele de facto estava a pensar!

-É escusado, ambos sabemos o que somos, mas eu tenho muito mais experiência...Admita a culpa e talvez se livre do pior-Continuou o outro telepata.

E aquilo julgado impossível acabara por acontecer, e logo ali! Anos e anos a conscencializar-se insistentemente da diferença, a reconverte-la tinham-no tornado omnipotente e omnipresente até ao limite, ao absurdo da total impunidade, primeiro passo para cometer erros, quando em presença de um outro telepata, e eis que o encontro se proporcionara. Mas, teimoso, estava longe de se render.

-Desculpem-me, mas tenho de fazer.

-Vai caçar? Caçar a culpa...

-Continuo a não perceber...

-A escolha foi sua...-Rematou o director-Está a ver esta folha? É a sua “certidão de obito” em relação ao ensino. De seguida vou passá-la a todos os estabelecimentos de ensino superior públicos ou privados do país e universidades estrangeiras que possuam protocolos com o nosso país. Além de ir ter o mesmo procedimento com todas as empresas que me lembre. Em suma, você só deverá arranjar emprego com muita sorte, muita, mas muita sorte. Como julgo ter esta acabado hoje, o máximo que lhe posso desejar é, precisamente, Boa-Sorte! -E os quatro riram-se à gargalhada.

Definitivamente, Filipe estava perdido! Naquele tempo, praticamanete não havia nenhum emprego que não pedisse as tais provas escritas.

Durante algumas horas vagueou pelas ruas cabisbaixo, olhando sem o fazer montras sem fim, lendo manchetes dos jornais onde, sem excepção, faziam títulos de primeira página séries incontáveis de massacres perpretados por psicopatas, e isto a durar desde há alguns anos, ante a passividade das autoridades e a revolta dos cidadãos.

Mas era-lhe quase totalmente indiferente. Via o futuro por um canudo e isso absorvia-o quase completamente.

Mas, quando olhava para mais uma montra, as palavras tornadas abstractas pelo seu estado de alma, ganharam plausibilidade, convertendo-se numa mensagem de socorro.

SENTES-TE DIFERENTE? ÊS CAPAZ DE LER A MENTE DOS OUTROS? QUERES TER UMA CARREIRA E FUTUTO NO ESTADO?

Filipe sentiu ter chegado a sua hora. Apesar da banalidade tosca da mensagem, algo lhe disse que era ali o seu lugar.

Anotou a referência e apressou-se a ir ao apartado.

Pelo caminho deparou com, pelo menos, duas ruas fechadas e ocupadas pela polícia e corpo de investigação criminal.

-Mais um Serial-Killer-Ouviu

Muito raramente Filipe pensava nesses crimes, apesar de dramaticamente massificados, mas quando o fazia, sentia-se legitimamente precocupado.

Quem não ficaria?

Desde há já alguns anos que uma estranha ipidemia de crimes horrendos tinha lugar, aparentemente sem qualquer explicação e resolução por parte das forças policiais. Apesar do fenómeno se arrastar e dos meios aplicados, nada parecia resultar. Sabia-se apenas, pelas caracteristicas dos crimes, que os seus autores eram possíveis dementes.

Uma vez por outra, prendia-se e julgava-se alguém, mas como até ali esse alguém era nitidamente doente, reforçou-se a crença do assassino louco e chamou-se ao fenómeno “Ipedemia Psicótica”, formaram-se então várias equipas de especialistas, integraram-se uma maior quantidade de técnicos de saúde mental nas polícias, ludibriaram-se os média com retórica politica e esperou-se que o fenómeno acabasse “Per si”.

Mas não passou, pelo contrário, o efeito foi inverso, com o progressivo aumento dos homicidios, embora ninguém soubesse a verdadeira razão destes.

Toda a gente ou conhecia ou ouvira falar da morte de alguém, directa ou indirectamente relacionada consigo.

Filipe, por exemplo, lembrava-se bem da pequena Ana, criança de seis anos, sua vizinha, encontrada esquartejada na cave. Todos no condominio tinham ficado chocados, mas dado nada poderem fazer...

O fenómeno tornara-se endémico e cartada eleitoral às sucessivas oposições que se substituiam nas chefias dos desesperados governos. E era um facto. Se alguém tinha a obrigação de aplicar medidas para debelar o fenómeno, esse alguém teria que ser o governo, pois a crise fazia-os cair a velocidade insuspeita para o padrão habitual. O aumento do descontentamento público iria obrigar à tomada de uma posição extrema, toda a gente o sabia e desejava, mas Filipe nunca pensou ou imaginou que fossem actuar “daquela” maneira.

O emprego maravilha a salvá-lo era afinal parte do grande plano aguardado havia muito.

Mas ele limitou-se a dar o nome no apartado, e a voltar para casa, onde o mandaram esperar, sem suspeitar de nada.

Passaram apenas dois dias, ao fim dos quais foi chamado. Para seu espanto, a morada enviou-o até à periferia da cidade. À distância parecera-lhe uma espécie de hotel, mas quando se aproximou verificou ser outra coisa : rodeado por muros altos, pejados de arame farpado, câmeras e sistemas de segurança, e depois, no seu interior, a presença de incontáveis cordões de segurança mistos entre policias e militares, tornava-se obvio o carácter pouco usual daquele lugar, impressão reforçada depois de o terem convidado a assinar vários termos de responsabilidade nos quais se comprometia a nada revelar daquilo que visse ou ouvisse.

Já dentro daquela especie de monolitico se apercebeu que este era o edificio central de uma pequena cidade a rodeá-lo por vários quilometros. Não eram edificios em bloco, tipo base normal, era mesmo uma cidade! Lá dentro pediram-lhe para entrar numa sala, e a fazer um complexo teste escrito, cujo conteúdo lhe escapava completamente. Na sala estavam outras pessoas e Filipe hesitou, ainda marcado pela derradeira experiência. Pensou numa cilada, derradeira prova a comprova-lo como caso perdido; mas que raio, porque se dariam a tamanha carga de trabalhos por ele? Mas a dúvida teve apenas o tempo desta poder ser a derradeira hipótese de se desenrascar. Mal por mal...Passados vinte minutos voltara aos bons e velhos tempos... Quando acabou, pediram-lhe que esperasse nessa mesma sala. Para se entreter, divertiu-se a explorar, divertido, a mente de todos, só não o conseguindo num dos sujeitos. Algo a fazer o telepata temer pela sorte. Mergulhado em dúvidas, foi chamado até ao gabinete contiguo onde, para sua surpresa, o resultado do teste foi divulgado, ele elogiado e convidado a frequentar a segunda fase de testes.

Praticamente idêntico em tudo, apenas diferia no grau de dificuldade e no número de pessoas em que Filipe não conseguira “entrar”. A terceira, quarta, quinta sessões foram idênticas, apenas com a diferença de ele agora tentar forçar essa entrada, esforçando-se ao máximo, mas conseguindo, com notável sucesso.

Ao fim de um dia intenso, foi convidado a pernoitar nas instalações, mas só depois de o terem feito assinar um doumento onde se comprometia a não revelar nada do que visse ou que lhe fosse dito durante a sua permanência naquele local.

Depois do pequeno-almoço, levaram-no a novo gabinete onde estava sentado um homem com aspecto de executivo. Como veio a saber mais tarde, tratava-se dum secretário governamental. Este foi directo ao assunto.

-Hesitaria em matar?

Receoso, Filipe tentou não fazer má figura.

-Faço-o todas as semanas, o meu desporto favorito é a caça.

-Já sabemos, mas quando fálo em matar, refiro-me à eliminação de seres humanos, homens e mulheres de todas as idades...

-Não estou a entender.

-Mais tarde entenderá.

De seguida encaminhou-o para outra divisão, onde lhe fornecerram uma espingarda munida de visor; depois, noutra divisão teve lugar a explicação para a arma.

-A partir de agora você irá entrar na segunda fase do processo de selecção. A arma dispara apenas feixes de laser que em contacto com receptores indicarão ter acertado no alvo correcto. Será colocado num edifício, bem em frente de uma rua. Lá deverá dectetar e iluminar qualquer potencial ou efectivo assassino em série, bem como todos e quaisquer psicóticos ou dementes que encontre.

-Eles estão assinalados?

-Não.

-Então como o conseguirei fazer?

-Chegou a altura de nos provar que os seus dotes não servem apenas para copiar a treta das provas...-Foi a resposta seca e fria.

E foi tudo. Eles tinham descoberto, eles sabiam desde o início.

Filipe entrara num estranho jogo, cujo fito ignorava, sabendo apenas que eles queriam as suas capacidades para algo.

Ciente disso, posicionou-se no quarto andar e fez a mira. Passou duas horas e nada. A certa altura deu consigo a ler a cabeça das dezenas de pessoas a passear à sua frente. Todas “normais”, com passados, presentes e futuros inofensivos, inóquos, francamente...desinteressantes.

Finalmente algo lhe chamou a atenção. Parecia-lhe apenas uma leve enxaqueca, mas não, à impressão inicial sobreveio outra, bem mais desagradável - Um daqueles desconhecidos era, no mínimo perturbador. E Filipe via tudo com clareza-Da infância guardava com particular grado a captura de esquilos e o esquartejar destes enquanto vivos...Depois nada acontecera, mas na sua mente o desejo secreto de fazer o mesmo aos seus semelhantes estava latente, embora ainda não concretizado. Imagens de orgias de sangue invadiam e monopolizavam o ideal deste homem.

Filipe confirmou-lhe o rosto dominador dessas imagens com alguém na multidão. Surgiu o tiro. a sensação foi esquisita, misto de jogo computurizado com caçada real e ainda alguma, impiedadade para com o infeliz.

Ao fim de oito horas deram por terminado o exercício, convidando-o a nova avaliação.

-13 alvos, 14 “vítimas”, sendo a décima quarta...

-Ele tinha as imagens...-Tentou justificar-se Filipe.

-13 alvos perfeitos e o “falhado”...brincadeira nossa...Um telepata condicionado para o enganar...É a nossa praxe e a primeira forma de lhe dar as boas-vindas. Não estava previsto, mas o décimo terceiro abate mereceu ser comemorado.

-Lamento, deve ser falha minha concerteza, mas ainda estou longe de perceber...

-Primeiro assine-me este termo, leia-o e veja se concorda, depois, se aceitar, passarei às explicações.

-Mas eu já assinei um...

-Este é diferente, leia-o.-Insistiu suavemente.

Nesse termo de apenas meia folha escrita, Filipe era obrigado a guardar segredo sobre os métodos de treino futuros e de alguns alvos, consoante as necessidades estratégicas do serviço.

Não vendo nenhum inconveniente nisso, (embora os “futuros alvos o intrigassem, se bem que já tivesse as suas suspeitas...) assinou e esperou pelas explicações que se seguiriam.

-A partir deste momento você faz parte da casa, é funcionário, mas especial, para um trabalho especial. Recordo-lhe a história recente de forma a melhor perceber aquilo que esteve na origem daquele que será o seu trabalho.

Os chamados crimes em série, apesar do forte impacto que tinham na população, sempre constituiram casos isolados, perpretados por indivíduos perturbados, que a partir de determinada altura da sua existência se tornaram perigosos. Casos isolados, não constituiam problema por ai além, precisamente devido à escassez. Mas à cerca de dez anos o panorama foi alterado. Por razões desconhecidas, a incidência aumentou enormemente, assumindo foros quase ipidemológicos, agravado pelo habitual isterismo dos média.

A situação, a cada ano que passava agravava-se e, perante a inércia das respostas não dadas pelas autoridades instalou-se uma atmosfera social perturbadora, com a eclosão duma série de fenómenos que no seu conjunto constituiram outros problemas: assim toda quase toda agente ficou paranoica perante a hipótese de serem o próximo alvo olhando na rua e no emprego, e até em casa, aqueles que os rodeavam como os assassinos desconhecidos; como em simultâneo muitas pessoas decidiram passar a andar armadas, bastava apenas que uma suspeita os fizesse ter “cócegas nas mãos e dai a passarem ao acto foi um pequeno passo... Foi assim que a“psicose do assassino” deu horigem indirectamente a outras formas de violência dificilmente controláveis, como o eram também actos de “justiça popular” com o linchamento de meros suspeitos.

Perante a ameaça do poder judicial e policial estar assim ameaçado, tomaram-se medidas como o incremento da vigilância a pontos quase “fascizantes”(alterando-se convenientemene a constituição com a consequente diminuição dos direitos civis e aumento dos respectivos deveres).Mas a situação continuava a agravar-se, tanto que se decidiu agir de uma forma que muitos considerariam infame.

No desespero dum semi-caos social, alguém teve a inevitável ideia louca, tão louca que se decidiu aplicá-la.

Se o problema passava por não se saber quem eram os psicóticos, ou os culpados, então a solução passaria pelo entrar na mente deles.

Como se nada existia para tal?

Da maneira mais absurdamente simples : contratando telepatas e transformando-os em elementos de busca. Na teoria, o plano batia certo, pois desenvolvendo ainda mais as capacidades dos agentes, estes tornar-se-iam capacitados para a localização dos “párias”.

Como as perspectivas eram enormes, se se pudesse dectetar o psicopata assassino, porque não a sua decteção e também eliminação antes da manifestação física da vontade latente?

A solução para o nosso problema tinha sido pois descoberta para alivio do governo.

E eis que chegamos ao momento presente, ao momento antes de executarmos o plano, o momento em que estou a falar consigo, um dos eleitos.

Claro que não foi uma decisão fácil, claro que uma vez por outra cometeremos erros, mas a percentagem será sempre irrizória perante os ganhos obtidos.

É perfeitamente natural o surgimento de várias dúvidas do mais variado cariz entre os executores, dúvidas lógicas, mas perfeitamente dessipáveis ante a clareza de dois factores: os dados obtidos e o facto da população vos ir ter na mais alta das considerações.

-Será inovador, assassinos bem-vistos-Gracejou cinicamente Filipe, ainda pouco convencido.

-Compreendo o cepticismo, natural porque me esqueci de referir um pormenor- antes da vossa aparição faremos a habitual e gigantesca campanha nos média a consistir num ainda maior empolar do flagelo, de tal forma que o público sentirá que a situação é agora definitivamente insustentável, tanto que ele pedirá e aceitará qualquer medida radical.

-Essa campanha...será o governo a fazê-la?

-Obviamente que não. Penso que sabe no que consiste a contra-informação ou intoxicação psicológica?

-Espécie de lavagem cerebral individual ou das massas...

-Exactamente. Os artigos de jornal, programas na net, espaços nas grandes cadeias televisivas serão oriundos de grupos provenientes da chamada sociedade civil, apoiados nas “doutas posições” de técnicos das mais diferentes aréas, conceitoados, “imparciais”, e por isso mesmo altamente crediveis...Assim, a porta fica aberta para a vossa aparição...

Numa primeira fase, ignoraremos as eliminações, depois, algumas “denúncias anónimas” indicarão a vossa presença, prontamente desmentida. Como entretanto os crimes começarão a diminuir, a omnipresença dos vigilantes será progressiva e bem vista...Então, quando a população se mostrar grata e ansiosa para conhecer os “salvadores”, a vossa existência será revelada, como fruto das preocupações do governo sensibilizado pelo sofrimento do seu povo...

Em suma é este o nosso plano.

Então, aceita?

-Já deveria, pelo papel assinado...

-Podia ser que se sentisse atemorizado pelo meu relato.

-De forma alguma, mas penso que se irá seguir um período de treino.

-Optimo, optimo, ele já quer começar! Sim, durará aproximadamente três meses, período durante o qual irá melhorar a sua pontaria e também familiarizar-se com a arma e equipamento pessoal que passará a usar. Trata-se de um engenho especial, sofisticado, feito especificamente para os atiradores telepatas. Além dos clássicos sistemas laser de pontaria, há outros, material classificado até mesmo para vocês, do qual só interessa saber que consiste num visor “tipo infra-vermelho”, dividido em duas partes : um dos olhos terá a a imagem real, isto é, daquilo que está a visionar naturalmente, a outra, é uma espécie de visor televisivo, no qual aparecerão as imagens captadas por si do interior do alvo, isto é, do cérebro da pessoa. Quando encontrar dois rostos semelhantes de forma repetida soara um pequeno sinal de alarme, o objectivo foi confirmado e então e só então terá autorização para disparar . De vez em quando pode coincidir a imagem de uma provável vítima, e ai, você matará o indivíduo errado, isso no entanto está previsto. Se continuar a sentir a presença do assassino deverá continuar até o sinal se desvanecer. No equipamento estão incorporados alguns sensores que ampliarão o sinal do seu cérebro,(o sinal de alarme) só quando esse sinal tiver acabado é que tem a autorização para terminar.

Se acontecer abater duas, três pessoas, não se preocupe, também está previsto. Entre os snipers, os tribunais de excepção não existem, embora publicamente isso vá constar...

Vamos pois dar inicio à última fase antes da vossa entrada em acção, a fase do treino.

Nos meses seguintes Filipe entregou-se de corpo e alma ao treino, só raras vezes pensando nas futuras e possíveis consequências psicológicas, e, claro, mostrando-se preocupado ante essa perspectiva. Todavia deu consigo a encarar o facto com a normalidade possível de qualquer emprego, apesar da primeira missão ter sido, teoricamente problemática.

Estava o clássico dia de chuva, visiblidade problemática e frio suficiente para fazer tremer as mãos. Mau agoiro. Vivendo já com Beatriz, passara a noite só, tentando concentrar-se, adormecendo no entanto tranquilamente no sofá da sala. Foi ela que o acordou, levando-lhe a refeição, arranjando-lhe a roupa e desejando-lhe boa sorte, como qualquer esposa o faria. Nessa altura ainda não sabia, mas isso estava longe de fazer diferença.

Encolhido tentando proteger-se da água, passeou entre a multidão, apanhou o transporte público e dirigiu-se para o outro extremo da cidade. Mais tarde, já na marquise do T4 indicado, preparou o local como nos treinos, e esperou.

Um dos principios basilares das missões era que estas nunca visavam ninguém em especial; os atiradores iam para locais aleatoriamente designados; esta aleatorização reforçava a crença do governo no cariz democrático desta forma de actuar e evitava assim a utilização perigosa do projecto.

Desta forma, era normal o local escolhido, por muito estranho que este parecesse, seria tão normal como outro qualquer.

O dia estava no fim e Filipe já perdera a esperança de se estrear, quando teve a percepção de algo, percepção ampliada pelo aparelho. Logo de seguida imagens cujo conteúdo violento sofriria a censura de qualquer canal. Quando procurava caras idênticas no exterior, nada encontrou; depois pareceu-lhe...confirmou rapidamente e abateu a segurança do cinema; o sinal continuou...Asneira! Confirmou mais duas vezes, e à segunda não queria acreditar. Seria? Sim, os sinalizadores davam-lhe toda a certeza. Denotação, e uma criança de dez anos com o crâneo rebentado. O sinal terminou.

Missão comprida.

Quando saiu e se dirigiu para casa, sentiu-se estranho, precisamente por nada sentir.

A partir desse momento descobriu a sua vocação.

Quase vinte anos se tinham passado. Quase duas décadas e incontáveis de missões, e de alvos...não o sabia ao certo, a partir da centena deixara de contar. Os rostos, esses conservava-os, porque pura e simplesmente a memória assim o queria, embora nada o afectassem.

Tornado medianamente célebre devido ao optimo desempenho, e por efeitos da necessidade de auto-promoção da organização. Entretanto a família crescera e fortificara-se, tornando-o definitivamente um entre tantos milhões de cidadãos, apenas com uma profissão diferente.

Claro que nem tudo tinham sido rosas, por vezes ele desconfiou da legitimidade de algumas missões, pois reconhecera alguns dos rostos das vítimas nos jornais como alguém importante ligado a sectores oposicionistas, e cuja presença constituia inultrapassável obstáculo aos adversários.

Mas no fundo, isso em nada o interessava, perante o facto comprovado dos massacres terem diminuido e a calma regressado.

E a aceitação do papel benéfico dos snipers era tal que estes angariaram confiança quase absoluta de toda a população. A confiança era tanta que, embora o alvo pudesse ter tido anteriormente uma vida exemplar, mal fosse “iluminado”, aqueles a rodearem o cadáver de imediato o insultavam e, não raras vezes, o esquartejavam a pontapé.

Nunca, na história recente qualquer tipo de autoridade tinha angariado tamanho respeito, e por via disso mesmo começou-se a usar o método telepata -como entretento foi redesignado- para a prevenção de outra criminalidade, mais preocupante. Só não se estendeu para toda a criminalidade pelas naturais limitações físicas em arranjar telepatas dispostos à natureza do serviço em número suficiente. Apesar da fama, poucos aguentavam sem vacilar, sendo comum a aposentadoria precipitada por “cansaço psicológico”.

Filipe, mais uma vez era o recordista e tudo indicava ir cumprir os trinta anos indispensáveis para a reforma por inteiro.

Regresso ao presente. Era o último dia do mês, e por isso dirigiu-se ao escritório para fazer a contabilidade.

Dispondo de um ordenado fixo, recebia prémios consoante o número de missões bem sucedidas, acrescento de ordenado destinado a icentivar a melhoria das “performances”. A este bonus não era estranho que, neste tipo de serviços a monotonia consistisse o seu único adversário, monotonia a permitir distrações e a aumentar a sempre desagradável margem de erro. Uma melhoria na qualidade de vida individual do atirador era pois uma optima garantia do bem estar comunitário.

Encontrar novos estimulos constituia pois o maior desafio para todos os snipers. Filipe via-os no ordenado e na consequente aplicação deste. Cada tostão era destinado à família, a tentar proporcionar o conforto possível dentro da classe social.

Dispunha de muitos bens estranhos aos colegas, precisamente porque se aplicava, tentando alcançar um grau de profissionalismo total e irrepreensivel.

Alguns classificavam-no de frio e distante, reservado e até arrogante na eficácia alcançada, mas ele pouco ou nada se importava, achando tais opiniões provenientes da inveja suscitada pelo seu curriculo exemplar. Em quase vinte anos cometera cinco erros, simplesmente espantosa esta marca.

Era frio? Ao ver a família, no reencontro nocturno desmentia esse dizer, tornando-se esposo e pai ideal, e isso era tudo quanto lhe interessava, o resto era trabalho.

Assinou o livro de serviço, recebeu o cartão carregado de créditos e, por fim, dirigiu-se à vivenda onde morava.

Positivamente assaltado pelos filhos, poisou delicadamente a mala no canto mais próximo, e foi com eles até à sala de estar onde lhes mostrou a última surpresa : ligou o visor e descodificou o canal à tanto tempo pedido. Custara-lhe meio ordenado, mas eles mereciam tudo, e por isso não se importou. Só eles importavam, a alegria da miudagem compensava o resto, toda a restante podridão onde era obrigado a viver.

E estava tão bem disposto que nessa noite acedeu por fim ao pedido mais desejado de Beatriz : mudar de cidade, e dirigir-se para o norte, para perto do lago onde passariam o próximo fim-de-semana. Seriam quatro meses de trabalho perfeitamente dementes e o exigir comissões especiais, isto é, desgastantes missões de noventa e seis horas sem dormir sustentadas à custa de litros de café e de incontáveis drogas para manter intactas as suas capacidades, noventa e seis horas sempre atento, mas horas principescamente pagas.

Adormeceu nos braços dela, tranquilo, como não se lembrava de estar hà muito, feliz, porque alcançara tudo aquilo que desejara. Profissão e família quase perfeitas, num mundo muito longe de o ser e que lhe angariava secreto desprezo e até ódio pelo turbilhão de contradições em que se alicersava, contradições a fazerem profissões quase infames surgirem mescladas de falsa santidade. Profissões aberrantes a desfazer as contradições criadas pela sociedade. No fundo tudo acabava por ser lógico e linear- A sociedade criava dissociações, a sociedade resolvia-as.Ponto final, paragrafo.

De manhã, animado pela mudança e esquecendo as ambiguidades, foi com outro espírito que se dirigiu à rua designada.

18ª andar, cozinha, donos da casa encantados por o receber. A espera de sempre.

Preparou tudo e esperou, surpreendendo-se pela rapidez do alarme.

Antes das imagens procurou instintivamente o alvo na multidão. Campo. O maldito a apagar vivia no campo; vivendazinha aprasível, perto de um lago. Estranho, pensou, parecia o cenário idealizado pela sua esposa; e à estranhesa sobreveio o choque quando, em plena isteria dos sensores os rostos dos filhos e de Beatriz apareceram desmembrados e horrívelmente desfigurados! Faltava a imagem do bastardo. Nada. Onde estava ele? Filipe sentiu algo parecido com uma febre. Conhecia bem este estado, se bem que raro. Nas missões mais difíceis, onde os rostos lhe tocavam mais fundo, invadia-o essa febre, onde se misturava o ódio pelo alvo e o prazer puro de o eliminar. Noutros tempos seria assassino, agora...A febre agradava-o, excitava-o, melhorava-lhe o desempenho, era como uma droga, de efeitos inebriantes, mas com a vantagem de o deixar lúcido, era O Sindroma Sniper, a razão secreta de Filipe amar esta profissão, embora o negasse permanentemente, porque o assumir seria ainda mais contraditório do que o prazer de amar essa febre mais do que tudo, mais do que os seus. Esse era o seu segredo, a força oculta a movê-lo, a torna-lo o melhor entre os melhores.

O rosto. Mecanicamente procurou-o. Qualquer vestigio de hunanidade em Filipe deixara de existir, qualquer motivo, razão ou éticas. Era ele e o alvo. Era a lei não escrita do Sindroma Sniper.

De súbito a sua cara, a de Filipe apareceu, de arma na mão, olhando a carnificina com ar alegremente demente- O alarme disparava agora a niveis habituais quando assinalado o alvo.

O sniper compreendeu.

Levantou-se, tirou a espingarda do descanso, assentando a coronha no chão. Inclinou-se ligeiramente abrindo a boca. Sentiu o cano frio nos lábios. Carregou ligeiramente no gatilho. O sinal acabou.

Missão comprida.

FIM

FEVEREIRO/MARÇO 98

Conto protegido pelos Direitos do Autor

Miguel Patrício Gomes
Enviado por Miguel Patrício Gomes em 07/03/2006
Reeditado em 27/06/2008
Código do texto: T120057
Classificação de conteúdo: seguro
Copyright © 2006. Todos os direitos reservados.
Você não pode copiar, exibir, distribuir, executar, criar obras derivadas nem fazer uso comercial desta obra sem a devida permissão do autor.