Anjos da Promessa

FAZIA MAIS DE VINTE E cinco anos que a promessa havia sido feita, mas, até o presente momento, nunca fora cumprida. Todos continuavam os mesmos de sempre, partindo sempre do princípio de que as coisas, um dia, iriam melhorar.

E, enquanto esse dia não chegava, a maioria tentava se conformar, sentando-se em seus sofás, tomando suas doses diárias de boas ilusões e esperando.

No entanto, outros, cansados de esperar, resolveram agir.

Começou com pequenas correntes cibernéticas entupindo as caixas de e-mails de todos, e, para falar a verdade, ninguém sabia muito bem quem, à princípio, as mandava. Só sabiam que, homem ou mulher, a tal pessoa entitulava-se “Anjo da Promessa”. Tinha uma boa retórica, e, mesmo por um filtro que dificultava a identificação de sua voz, suas palavras pareciam adentrar na mente dos ouvintes para nunca mais saírem.

Os mais religiosos, coitados, viviam a dizer que o tal homem – ou mulher – estava usando as boas pessoas para conseguir atingir seus objetivos, e que, quando os alcançassem, jogaria a todos no lixo. “Lavagem cerebral”, eles diziam, apontando vídeos de ensinamentos do Novo Messias, onde Ele clamava aos homens para que amassem Deus e seguissem à risca as decisões do Estado, pois este último, em sua infinita compreensão, havia criado toda uma nova constituição para se adaptar aos novos parâmetros da sociedade.

Fato é que, com ou sem religiosos, os Anjos da Promessa multiplicavam-se. Criavam manifestos, se reuniam em salas exclusivas e impenetráveis por qualquer espião, tinham códigos secretos, faziam ações rebeldes e revolucionárias com cada vez mais freqüência e tentavam, acima de tudo, mostrar à sociedade apática que havia uma saída para toda a escuridão que enfrentavam.

“Estamos em uma nova era de Trevas”, dizia um dos manifestos, que se abria em pop-ups quando um usuário menos esperava. “O mundo de hoje, como no passado, está mergulhado em escuridão. E nós, Anjos da Promessa, estamos aqui para iluminá-lo. Lutamos para que a promessa seja efetivamente cumprida, para que só então possamos dar um melhor futuro aos nossos filhos. No entanto, para que isso aconteça, precisamos de toda a ajuda necessária. Precisamos de você. Juntem-se a nós. Vamos, de mãos unidas, construir um novo mundo”.

O discurso, similar ao de prolixos políticos, era ironicamente proposital. Os Anjos eram assim. Usavam o próprio sistema contra ele mesmo, e, com isso, conseguiam conquistar o apoio das massas influenciáveis.

Em dois anos, os Anjos da Promessa já somavam mais de dez mil componentes assumidos, além de uma enorme parcela de simpatizantes. Alguns dos simpatizantes, instalados em altos cargos do governo, liberavam informações sigilosas sobre projetos governamentais, com as quais os Anjos conseguiam grandes êxitos – tais como a destruição de uma base de dados no Baixo Leste, local que concentrava o maior número de Anjos assumidos. Além disso, os Anjos boicotavam inúmeros projetos governamentais, chegando ao ponto de burlar o pagamento de impostos e conseguir invadir o Banco de Moedas e Valores, causando um enorme rombo nos cofres públicos e enfurecendo toda uma parcela de pessoas que era a favor do governo. E, entre os enfurecidos, estava a Redenção.

A Redenção era, já naquele tempo, a maior instituição particular de todo o mundo. Responsável pela criação e manutenção do software NewLife, a empresa controlava praticamente tudo, desde o Banco Nacional da História Antiga até os sabores e aromas dos alimentos que eram comprados pela internet.

E, por ter tamanha responsabilidade e lucro, a Redenção odiava tudo o que era relacionado aos Anjos da Promessa. A empresa tinha um departamento, composto por mais de quinhentos funcionários, especializado em analisar e retirar todo o lixo que os Anjos disseminavam pela rede – o que era difícil, uma vez que seus manifestos e propagandas eram protegidos por senhas e códigos decifráveis apenas por membros da fraternidade.

Mais do que ódio, a Redenção tinha medo dos Anjos. A vida era todo o lucro que a empresa tinha. E agora, depois de tanto tempo, os Anjos reacendiam uma promessa feita há mais de vinte anos. “O que eles esperam?”, a Redenção se perguntava. “Cumprir, efetivamente, essa promessa?”.

Sim, era isso o que pretendiam, e, agora, depois de muito tempo de escuridão, já tinham meios concretos para realizar isso.

Durante sete longos anos de pesquisa e noites mal-dormidas, os Anjos criaram um vírus. Conhecido apenas por uma ínfima parcela da fraternidade, o vírus vinha com a promessa de colapsar completamente o software NewLife, e, com isso, liberar o mundo das bárbaras imposições da empresa. Os Anjos sabiam, antes de mais nada, que não seria fácil implantar um vírus daquela magnitude no sistema da Redenção. Eram muros gigantes e intransponíveis. Mas eles tinham tudo em mente.

Um dos líderes, conhecido apenas pela alcunha de C., se infiltrara na empresa desde o começo da criação do vírus. Permanecera por todos os sete anos trabalhando para seus inimigos, fazendo tudo o que lhe mandavam, e, por vezes, chegando mesmo a prejudicar sua própria fraternidade. Tudo para um bem maior, ele repetia para si mesmo, a cada vez que tinha de destruir algum manifesto ou prender algum integrante mais ousado e indiscreto.

Apenas três pessoas, líderes da fraternidade, sabiam que o homem estava infiltrado, e, talvez por isso, tudo estivesse dando certo até aquele momento.

Finalmente, o dia chegara. O vírus, escondido sob a forma de uma planilha de custos e gravado em um dispositivo de memória curta, estava nas mãos de C., pronto para ser liberado. Como a empresa era ligada por uma intranet, todos os computadores tinham ligação direta com a matriz de informações. O vírus, com a velocidade da transmissão de dados, iria diretamente para o computador central, e se disseminaria para os outros, que, em sucessão, o disseminariam para todo o resto do mundo. Tudo estritamente pensado e construído. Nem todos os firewalls e antivírus do computador matriz conseguiriam detectá-lo.

Foi lindo! O vírus trabalhou rapidamente, fazendo as imagens criadas pelo programa se desfazerem às vistas de todos. Casas suntuosas se transformavam em dados que se estranhavam e se destruíam uns aos outros; o mesmo aconteceu aos guardas cibernéticos, às cidades e a tudo o que aquele mundo virtual conhecia. Foi horrível e, ao mesmo tempo, maravilhoso.

PESSOAS ABRIAM OS OLHOS E viam-se cobertas por fios que violavam suas peles. Tinham máscaras respiradoras nas caras e rostos envelhecidos. Eram tipos diferentes. Uns gordos, outros negros, loiros, magros, bonitos ou feios. Não tinham padrão. Não eram como a NewLife os fazia acreditar que eram. Eram mais do que robôs padronizados.

Levantavam-se aos poucos e lentamente, saindo de seus leitos. C. estava entre eles. Era um homem gordo, com cabelos brancos e pele negra, além de uma infinita quantidade de rugas. As lágrimas passeavam por seu rosto, perdendo-se em sua pele.

Viu seu tão querido mundo. Era cinza, verde e azul. Era uma mistura de cores e tons, de cheiros e sensações.

Era real.

Ajoelhou-se, olhando para longe, e chorou ainda mais.

Sentiu que, enfim, a liberdade havia chegado.