Fim da humanidade: Um conto de quase-ficção
Prefácio:
Sinto-me um pouco entediado com o mundo.
De repente, frustrado pela existência insistente dessa tal de humanidade.
Afinal, infelizmente, quiçá por puro sarcasmo do criador, o dito cujo acelerador de partículas acabou não engolindo a Terra...
E assim, como a tal geringonça não cumpriu seu papel, resolvi instituir o apocalipse por conta própria.
Talvez movido por um romantismo jocoso, que me é tão peculiar, escolhi a hipótese de "doença contagiosa".
No mais, segue a sucinta obra de "quase-ficção".
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A moléstia não mais os permitia sair de casa. Assim sendo, não havia como saber a real extensão do surto.
Há pouco tempo atrás, mesmo que já contaminados, ainda conseguiam andar pelas ruas mais próximas.
Agora, não havia mais como. Simplesmente, não era mais possível.
A televisão e o rádio já não transmitiam nada há dias. Semanas. Meses.
A doença já teria alcançado os limites da cidade? Do país? Ou então, já teria contaminado toda a humanidade?
Não havia como sair dali, logo, não havia também como saber...
Agora restava a eles apenas esperar por ajuda.
Porém, a ajuda de quem, se praticamente todos estavam contaminados?
Sabiam que talvez tal ajuda não fosse nem mais chegar... Àquelas horas, a esperança era escassa.
E, dada a patologia da doença, a situação agravava-se em progressão geométrica.
Alimentos e demais artigos de primeira necessidade chegavam ali apenas através de alguns poucos entregadores, que, mesmo indispostos pelo mesmo mal, ainda arriscavam-se a sair da toca. O mundo tornara-se um caos completo.
Sem nenhuma razão aparente, mulheres abortavam suas crianças prematuramente, e até então nunca se havia registrado tantos casos de morte súbita e suicídios.
A intolerância, sempre tão difundida pelo planeta, tornara-se a única regra de conduta.
Era o fim do reinado do Homo Sapiens Sapiens.
Já prevendo o pior, enfurnados no sótão da casa, a única diversão do casal era relembrar momentos tranqüilos de outrora, que, por alguma razão, insistiam em permanecer retidos em suas débeis retinas.
Em especial, tinham muita pena do pobre rebento, que, no auge dos seus três anos de vida, não escapara do contágio. Desde muito cedo já apresentava os mesmos sintomas.
Como muito bem sabiam, crianças tinham uma maior resistência a tal enfermidade. Porém, a ineficiência de quaisquer tratamentos somada à tenra idade do guri insistia em ceifar qualquer esperança dos seus espíritos, já devidamente desenganados.
Arrependeram-se, mesmo que tardiamente, por não terem seguido as recomendações de uns poucos visionários que, tal qual profetas do apocalipse, tentaram desesperadamente advertir à multidão cega e ensurdecida, que, se tomadas algumas precauções, crianças de colo ainda poderiam ser salvas.
Mas, como de praxe, em nome da razão pura, tais sábios foram sumariamente ignorados pelos demais, e, sem maiores questionamentos, foram tidos como loucos ensandecidos.
Agora restava apenas esperar pelo pior.
Vírus ou bactérias poderiam ser controlados. Enchentes, furacões ou terremotos, por mais terríveis que fossem, poderiam deixar sobreviventes como sementes para uma nova civilização. Até mesmo guerras atômicas poderiam deixar resquícios de humanidade.
Aliás, todas estas e tantas outras possibilidades apocalípticas já haviam sido suscitadas em obras de ficção.
Contudo, não havia sequer como desconfiar de uma possível peste de ordem psíquica. Espiritual, por assim dizer.
Não havia como prever que um mal tão sutil e corriqueiro pudesse alastrar-se àquele ponto.
Num passado recente, acreditava-se até que tal problema seria uma defesa natural, e, portanto, inofensiva.
Alguns faziam até mesmo questão de difundir tal conceito. Afinal o mesmo, em certas circunstâncias, tornava-se algo extremamente lucrativo.
Porém, em grande escala, o problema cresceu descontroladamente. Tomou forma de pandemia, e alastrou-se inexplicavelmente. Fez inúmeras vítimas.
Todos haviam se contaminado.
Na realidade, nem todos. Um ser humano derradeiro ainda restava são, quiçá na ânsia de curar os demais. O último idealista, talvez.
Todavia, como muito bem se sabe, idealismo é produto perecível, e, como não poderia deixar de ser, este também pereceu.
A última esperança da espécie, ao ver a real amplitude da situação, passou a compartilhar os mesmos sintomas.
Sua mão começou a suar, e um calafrio inexplicável percorreu sua espinha enquanto seu rosto ia perdendo a cor. Uma angústia paralisante o tomou por completo.
E foi assim que este último idealista, tal qual o resto dos seus, de forma arrebatadora, inexplicável e implacável, provou do grande mal que todos há muito sofriam: Pela primeira vez, sem qualquer razão plausível, também sentiu medo.
Medo de todos e de ninguém.
Medo de tudo e de nada.
Medo crônico e agudo.
Tudo de uma vez só.
Em suma, sentiu o pior de todos os medos: O tal medo de viver.