O VIAJANTE

O coração batia descompassado, à medida em que ele se aproximava do terminal de embarque. Sete anos. Após tanto tempo, iria vê-la mais uma vez, e aqueles breves instantes fariam com que a vida valesse a pena novamente. Não se lembraria mais do cansaço, do peso da idade, de toda solidão e amargura dos últimos quarenta anos...

A moça atrás do guichê pediu o passaporte.

- É sua quinta viagem?...

Ele fez um sinal de positivo.

- Olha que isso é muito raro de acontecer. Normalmente as pessoa esquecem antes, ou morrem, ou se apaixonam novamente...

Ela carimbou o passaporte e o entregou de volta, junto com um pequeno pacote onde se lia o logotipo da companhia: VV.

- Meus parabéns, nós da Viajantes Virtuais agradecemos pela confiança e desejamos uma ótima viagem, senhor.

Ele pegou o passaporte, guardo-o no bolso do paletó e continuou em direção à porta de vidro. Não havia malas, como a viagem era virtual apenas aquele pequeno pacote que a moça do guichê havia entregado era suficiente. Atravessou a porta, mal podia se conter de tanta ansiedade. Do outro lado, duas outras portas: a indicação acima da primeira era "Sala de vestir" e da segunda "Embarque". Dirigiu-se à primeira, abriu o pacote e retirou um jogo de uniforme e um saco plástico contendo documentos. Vestiu o macacão cinza de uma companhia telefônica, guardou os documentos no bolso e dirigiu-se à outra porta, que ficava em frente. Várias pessoas já estavam deitadas nas largas poltronas, ligadas por fios pretos e verdes a um imenso terminal digital que mostrava cada lugar já ocupado e suas respectivas leituras. Nada escapava à máquina: batimentos cardíacos, temperatura do corpo, pressão arterial, todos os dados eram acompanhados por uma equipe médica para que a viagem pudesse ser bem sucedida.

Algumas moças uniformizadas ajudavam os viajantes a se acomodarem em seus lugares. Uma morena aproximou-se dele com um sorriso no rosto bonito e pediu o ticket.

- Ora, vejam só! É a sua quinta vez... Parabéns, o senhor deve ser o recordista em viagens da nossa Companhia. Venha, por aqui.

Conduziu-o a uma das últimas poltronas, no final do corredor e fê-lo deitar-se.

- O senhor está confortável?

- Sim, estou - respondeu.

Ela então começou a ligar os pontos vitais do seu corpo aos fios que saíam do braço direito da poltrona. Acertou alguns detalhes, conferiu a leitura dos principais dados corporais e deu sua aprovação:

- Passageiro A-231D pronto para partida.

Antes de partir, ainda pode olhar ao redor e ver a reação de alguns passageiros : uma senhora, provavelmente em sua primeira viagem, apertava as mãos nervosamente, enquanto mordia os lábios; um casal à sua esquerda, de mãos dadas, olhava-se com olhos cheios de esperança; alguém, que ele não podia ver, chorava copiosamente, quase um lamento; uma jovem senhora segurava fortemente a fotografia em 3D de um bebê e o menino sardento parecia se divertir com toda aquela movimentação.

Procurou recordar sua primeira viagem, há tanto tempo que mal conseguia lembrar o que sentira na época. Naquele tempo, as viagens virtuais ainda eram muito perigosas, a tecnologia era recente e várias pessoas morreram tentando. Mesmo assim ele não havia pensado duas vezes em fazê-la. Qualquer risco valeria a pena pelo prazer de revê-la por duas horas que fossem...

A sala começou a trepidar levemente, enquanto um zumbido distante se fazia ouvir. Uma leve sensação de desconforto tomou o lugar da ansiedade de antes, muito diferente das primeiras viagens que fizera, quando ficara mal por várias semanas depois do regresso. A tecnologia melhorava a qualidade das viagens a cada ano, ele acreditava que chegaria o dia em que as pessoas nem perceberiam que haviam viajado.

A última coisa que pode perceber antes de perder os sentidos foi a expressão de medo nos olhos do garoto sardento.

Lá estava o portão, como da última vez que o vira, sete anos antes. Passou por ele e entrou no jardim bem cuidado da casa. Havia flores na varanda, Amélia adorava Gerânios e Margaridas. As pernas bambeavam, a respiração entrecortada denunciava seu nervosismo.

Ao passar pelo jardim, parou em meio às flores, retirou cuidadosamente uma Margarida e guardou no bolso, próximo ao coração. Caso tudo desse errado, queria ter uma lembrança daquele lugar.

Parou em frente à porta e tocou a campainha. Após alguns instantes, a porta se abriu.

- Pois não?

O chão abriu-se e ele foi engolido por uma intensa onda de calor que o deixou paralisado, olhando a mulher que surgiu na soleira da porta. Ela estava linda, na beleza dos seus vinte e cinco anos. Olhos grandes e profundos, lábios macios e convidativos, fartos cabelos negros caídos sobre a testa e uma voz serena e harmoniosa. Sim, após tantos anos, lá estava ela novamente, um milagre da alta tecnologia.

- Pois não, o senhor deseja alguma coisa?...

Leda esperança de que ela o reconhecesse. Havia algo naquelas viagens que fazia com que as pessoas do passado não conseguissem reconhecer os viajantes, por mais íntimos que tivessem sido. Mas sempre restava aquela esperança de que o amor fosse maior do que os anos que os separavam. Do que a vida. Do que a morte.

- Eu... Eu... - lembrou-se de mostrar a identificação pendurada no peito - Sou da companhia telefônica. Vim ver o seu telefone...

- Oh... - ela fez uma cara muito séria - Tenho certeza que ele também vai adorar conhecê-lo.

Como a sua expressão continuasse confusa, ela tratou de completar, enquanto sorria:

- Desculpe, era apenas uma brincadeira... Entre, por favor.

Afastou-se um pouco para deixá-lo passar.

Quase havia esquecido o quanto ela era engraçada. Aliás, isso era o que mais o atraíra, logo no início da relação. Para Amélia, não havia situação que não rendesse uma boa piada.

Levou-o até a sala.

- Telefone, este é o sr... - leu o crachá - Joaquim Ferreira. Sr. Joaquim, este é o meu telefone. Cuide bem dele, sim?... Vou fazer um cafezinho enquanto o senhor trabalha.

E saiu da sala.

Sua vontade era cobri-la de beijos, apertá-la em seus braços, dizer o quanto a amava, mas sabia que não podia fazer nada disso. Era proibido aos viajantes qualquer contato físico com as pessoas do passado, sob o risco de serem eliminados do programa de viagens. Era o pior de tudo: estar frente a frente com ela e não poder abraçá-la, não poder tocá-la, sequer...

Lembrou dos seis meses de treinamento que eram obrigados a fazer antes de cada viagem, justamente para se condicionarem a não tentar tocar ou falar sobre o passado com ninguém durante a viagem. Presenciara, certa vez, um homem que ousara desobedecer a essa regra ser sentenciado à morte. Pensar que nunca mais a veria era a única coisa que o mantinha na linha, mas, na idade em que estava, até mesmo isso já passava a ser secundário. Perguntava-se quantas viagens mais poderia ter feito antes de morrer. Dali a sete anos estaria com setenta e oito, mas sabia que não viveria até lá, o câncer que o corroía por dentro se encarregaria de matá-lo bem antes disso, câncer esse adquirido pelas muitas horas exposto à radiação que o transportava ao passado. Que ironia, as mesmas viagens que o ajudaram a se manter vivo por todos esses anos, acabariam por matá-lo...

Durante os meses que antecederam a viagem lutara consigo mesmo, tentando decidir se seria novamente um bom cidadão e cumpriria com o contrato que assinou na sede da Viagens Virtuais ou se faria aquilo que sempre teve vontade de fazer: abraçá-la e dizer quem ele era na verdade, contar-lhe tudo o que aconteceu, o que ainda viria e amá-la novamente, como naquela longínqua e maravilhosa noite, há quarenta anos.

É claro que o telefone não tinha problema algum. Perguntava-se como a Companhia conseguia as informações mais íntimas, o detalhismo extremo até nos mínimos detalhes. Uniformes, documentos, paisagens, objetos, tudo era organizado de forma milimétrica, cronometrada. Se existia perfeição no universo, era ali, na Viajantes Virtuais. A muito custo conseguira burlar o exame condicional, falsificando a data no atestado de saúde plena que fizera para a viagem anterior, sete anos antes. Eles jamais permitiriam que viajasse se soubessem que tinha câncer em estado terminal, justamente porque não teriam mais o poder da chantagem para mantê-lo obediente. Graças a Deus tudo tinha dado certo, e agora estava ali, horas antes do pior dia que jamais vivera em toda sua longa vida. Ele tinha pouco tempo para mudar o destino da única mulher a quem amara.

Viu-se no reflexo da janela com trinta anos a menos do que tinha na realidade, mais um pequeno truque da Companhia para que as pessoas do passado não os reconhecessem. No formulário de viagem havia um campo onde perguntavam com qual idade gostaria de se apresentar. Só não poderia ser com a mesma que teria à época em que conheceu Amélia. Das outras vezes, escolhera sua idade real, mas dessa vez era especial, ele queria parecer o mais jovem possível. Deram a ele, em reconhecimento às suas quatro viagens anteriores, a idade limite permitida: quarenta anos. Sorte que sempre se cuidara, aos quarenta era um homem ainda forte e bem apessoado.

Quando ela voltou à sala, ele já estava sentado no confortável sofá.

- O senhor já acabou?... Nossa, que rapidez. Acho que vou recomendá-lo na sua empresa. O último técnico que esteve aqui, semana passada, levou quase duas horas consertando, parecia tão atrapalhado, o pobre homem...

Então ela lembrava-se da sua última visita!... Como o tempo era engraçado, para ele havia se passado sete anos, enquanto que para ela acontecera na semana anterior...

Entregou-lhe a xícara de café e sentou-se à sua frente, no outro sofá.

Ele fechou os olhos de prazer ao provar novamente o café que somente ela sabia fazer. Um café feito por um humano, nada desses cafés descafeinados de máquina a que ele estava acostumado. Em seguida a olhou firmemente sem nada dizer, recordando os momentos felizes que passaram juntos, quarenta anos antes. Ela enrubesceu, abaixou os olhos e tratou de beber um gole de café.

- Desculpe - balbuciou - É que o senhor me lembra alguém.

Mas um detalhe da realidade virtual que o deixava desconsertado: ali, quem tinha morrido era ele.

- Não se preocupe, senhora - ele disse - Eu... Não me importo, creia-me.

Olhou para a fotografia em cima da estante e viu-se sorrindo, em plena juventude, numa época em que acreditava que a felicidade seria para sempre e que a vida era um eterno conto de fadas.

- Seria ele? - perguntou, apontando para a fotografia.

Ela suspirou e balançou a cabeça. Colocou a xícara na mesinha e o encarou novamente.

- Sim, é ele... - fitou-o novamente - Não sei porque, mas os seus olhos...

Levantou-se de um salto e aproximou-se mais para observá-los melhor. Ele se encolheu, o coração quase saindo pela boca, as mãos crispadas nos braços do sofá. Ela o olhou como nenhuma outra mulher jamais tornara a olhá-lo nos últimos quarenta anos.

- É incrível - disse, após longos segundos que pareceram intermináveis para ele - Seus olhos são... Incrivelmente parecidos com os do meu marido. Nem sei o que dizer, é tão estranha essa coincidência...

Tornou a sentar-se, mas não conseguia deixar de fitá-lo. Levantou-se novamente, pegou a fotografia em cima da estante e pôs-se a comparar o seu rosto com o da foto. Ele tremia como vara verde: ela estava se lembrando dele, mesmo tendo a aparência envelhecida!...

Entregou-lhe a pequena moldura, ainda confusa.

-Vê? Se ele estivesse vivo, seria como o senhor, apenas mais jovem...

"Não faça isso, Viajante A-231D! Você está infringindo a alínea 14 do parágrafo 54 do Código de Viagens Virtuais. Você deve abandonar a viagem imediatamente, ou será desligado!"

A voz gritou-lhe dentro dos ouvidos, a ponto de quase deixar cair a moldura das mãos. Demorou muito, mas eles descobriram que algo estava dando errado naquela viagem. Era o pequeno implante que haviam colocado durante o primeiro treinamento dos viajantes e que servia de retransmissor para o Centro de Controle de Viajantes Virtuais, o CCVV.

- Eles descobriram!... - levantou-se agitado e encaminhou-se para a janela - Ouça, não me resta muito tempo antes que cheguem. Escute bem o que eu vou lhe dizer: eu não morri. Sou eu mesmo, Ândrios, seu marido...

Ela, tomada de susto, levantou-se e afastou-se dele.

- O senhor é algum louco?... Meu marido morreu num acidente de avião, há cerca de dois anos. Seus olhos apenas lembram, muito vagamente, o olhar dele...

Aproximou-se dela, que recuou até colar as costas na parede.

- Não, não... Isso é o que eles querem que você pense! Na verdade... Na verdade...

Ele agora a cercava, com os braços abertos, quase a envolvendo completamente, mas sem coragem para tocá-la.

"Viajante A-231D, você não pode fazer isso. Repito, você não pode fazer isso, sob pena de ser sentenciado à morte!..."

- Ouça, por favor! Não me resta muito tempo, eles estão vindo para me pegar - seus rostos agora quase se tocavam - Era eu na última vez, o outro técnico de telefonia... Essa é minha quinta viagem virtual ao passado. Desde que você... Se foi, eu nunca mais voltei a ser o que era, nunca consegui me recuperar da perda. Até que uma empresa, a Viagens Virtuais, que estudava as teorias de Einstain sobre deslocamentos no tempo e no espaço, descobriu uma forma de enviar pessoas ao passado. Me ofereci como voluntário numa época em que apenas vinte por cento deles sobreviviam à viagem!... E por você, Amélia, por você!

- O senhor é mesmo louco! Se não sair da minha casa agora, eu chamo a polícia, entendeu?...

Mas ele pareceu não ouvi-la e continuou a falar, com aquela expressão de urgência no olhar.

- É tudo virtual, Amélia! Na verdade, nesse exato momento, eu e mais dez pessoas estamos deitados numa espécie de câmara do tempo, ligados por fios a um terminal central que comanda a viagem. Nós escolhemos o dia e a hora e eles nos enviam de volta ao passado. Mas é uma viagem muito cara, eu tive que trabalhar por sete anos para estar aqui. Depois da segunda viagem, eles acabaram com o programa de voluntariado, eu fiquei desesperado, pois não tinha dinheiro para bancar a viagem. Então assinei um contrato me colocando à disposição da Companhia vinte e quatro horas por dia, sete dias na semana. É quase escravidão... Eles me dão o suficiente apenas para sobreviver e a cada sete anos posso fazer uma viagem. Esse é o tempo mínimo permitido, por causa da radiação. Gastei toda minha vida para fazer as outras quatro, mas essa é a minha última viagem.

Ela ouvia a tudo, tentando escapar, mas tinha seu corpo bloqueado pelo dele. E ele a olhava dentro dos olhos, tentando fazê-la acreditar nas suas palavras.

- Nós não temos permissão para conversar com as pessoas do passado a respeito do futuro ou do que aconteceu, muito menos para tocá-las. Há um chip dentro do nosso cérebro que retransmite tudo o que se passa e os avisa quando alguém comete algum deslize. A essas alturas, eles já estão vindo me recolher... Mas eu não posso resistir, é muito mais forte do que eu. Você precisa saber, Amélia: eu te amo, sempre te amei. Nunca esqueci teus olhos, tua boca, teu sorriso...

Ela, de olhos fechados, já não resistia tanto.

- Eu quero acreditar! Como eu quero acreditar! Mas é tudo ... Fantástico demais, eu não ... Consigo! - ela sussurrou.

Ele então soprou em seu ouvido suavemente, fazendo todo seu corpo se arrepiar com aquele gesto característico, que tantas vezes repetira na intimidade. E ela teve um vislumbre de que aquela loucura que ele contava poderia ser verdadeira.

Suas mãos deslizavam suavemente sobre o rosto da esposa, sem tocá-la, uma carícia que trazia em si quarenta anos de saudade reprimida. Ela fechou os olhos, permitindo que ele a beijasse, e a dúvida invadiu-a como ondas de calor numa tarde fria.

- Querida, querida, que saudade... Queria que o tempo parasse agora, eu poderia morrer em seus braços!...

Ela retribuía, mesmo ainda confusa e assustada, sem saber direito o que estava acontecendo.

Ouviram o rangir de freios do lado de fora da casa.

- São eles! Estão vindo...

O barulho na porta denunciava a tentativa de arrombamento.

"Entregue-se, Viajante A-231D! Você não tem escapatória!..."

- Fuja, rápido! - Ela disse, encaminhando-se para a porta dos fundos.

Ele a segurou pelo braço, resignado.

- Não adianta, meu amor, tenho um chip implantado em meu cérebro. Eles me encontrariam aonde quer que tentasse me esconder.

- Mas... Você não deve se entregar sem luta...

Ele a olhou como se fosse a última vez.

- Meu amor, como eu te amo! Quero que você entenda que valeu a pena cada um desses longos anos que trabalhei para te ver apenas por duas horas. Não me arrependo de nada do que fiz. Mas eles vão entrar por aquela porta e me levar de volta para o futuro, não importa o que eu faça...

Nesse momento a porta cedeu e cinco homens usando uniformes azuis entraram na sala e o imobilizaram. Ele não ofereceu resistência, apenas sorriu para ela, que parecia confusa.

- Lembre-se que eu te amo!...

Enquanto era arrastado para fora da casa, lembrou-se que esquecera de dizer algo de suma importância. Quis voltar, mas mãos poderosas o subjugaram e o jogaram dentro do veículo. Pôde observar o rosto assustado de Amélia, do lado de fora da casa, conversando com um dos homens. Berrou a plenos pulmões o que viera dizer, mas rapidamente fecharam os vidros do carro e ele ficou sem saber se ela tinha ouvido ou não. Do lado de fora, Amélia ouvia as explicações do homem sem prestar atenção em absolutamente nada.

- É um louco que escapou do manicômio, senhora. Por sorte conseguimos localizá-lo antes que cometesse alguma loucura. A senhora tem certeza que está tudo bem? Ele não a machucou?...

- Não, não, estou bem. Mas parece que ele está tentando dizer alguma coisa...

O homem olhou a figura que se debatia e gesticulava furiosamente no banco traseiro do carro e sorriu.

- Não se preocupe, os loucos sempre tentam dizer alguma coisa, mas nunca é algo que se aproveite...

Desculpou-se mais uma vez, entrou no carro junto com os outros colegas e arrancou velozmente. Ela ficou ali, parada no portão, vendo o desespero dele enquanto sumia na distância e pensando em tudo o que tinha ouvido.

Ele chorou em silêncio por alguns quilômetros, até encontrar a Margarida que arrancara do jardim de Amélia. Ao menos restara um consolo.

A sala era completamente asséptica. Paredes brancas, mesa branca e um grande monitor que pendia do teto, bem acima da mesa, onde destacava-se a imagem de três homens já em idade avançada, todos usando longas túnicas brancas.

"Sente-se."

Sentou-se na única cadeira que havia na imensa sala vazia.

"Tendo em vista os acontecimentos da última viagem a que foi submetido o Viajante A-231D, o Conselho Diretor do Centro de Controle de Viajantes Virtuais decidiu colocar em julgamento as ações do funcionário em questão. Conhece as acusações, A-231D?"

- Sim, conheço.

"Reconhece que praticou atos que ferem inteiramente o Código de Viagens Virtuais da Companhia, incluindo-se aí a alínea 14 do parágrafo 54, que prevê pena de morte para o infrator?"

- Sim, reconheço.

"O que tem a dizer em sua defesa?"

Ele pareceu pensar um pouco, por fim falou:

- Nada, excelência.

Os três homens pareceram confusos com a resposta. Confabularam entre si, até que o mais idoso tomou a palavra novamente.

"Isso é totalmente imprevisível, A-231D. Na nossa sociedade, todos têm o sagrado dever de se defender. Isso é assegurado em nossa constituição."

-Sim, eu sei, excelência. Mas já que nada os fará reverter a minha pena, abro mão dessa prerrogativa.

Novamente os três juízes pareceram confusos. Por alguns instantes ele ouviu apenas murmúrios vindos do seu cérebro, até aquele que parecia ser o líder retomar a palavra.

"Declara-se então, culpado?"

- Sim, excelência, declaro-me culpado de todos os crimes relatados no inquérito. Aliás, quero declarar-me culpado também de um outro crime que não consta dos autos: falsificar a data do atestado de saúde para o exame condicional. Eu utilizei-me do atestado antigo, pois jamais permitiriam que viajasse com câncer.

O silêncio dessa vez foi mais intenso.

"Tem câncer, A-231D?..."

- Tenho sim, excelência. Adquirido devido ao longo tempo de exposição à radiação durante as viagens. Entende agora porque não faz muita diferença para mim viver ou morrer? Tenho apenas alguns meses de vida.

O ancião levantou-se da cadeira e aproximou-se do monitor. A voz agora não vinha mais da sua cabeça, mas sim do serviço de som da sala. Isso significava que eles estavam fora do sistema, era o que chamavam de confabulação particular, um artifício legal que os juízes utilizavam sempre que queriam sanar alguma dúvida. Aquela parte do julgamento não faria parte dos autos.

- Diga-me, A-231D: por que fez isso? Não cumprimos rigorosamente tudo o que firmamos em seu contrato?

- Sim, excelência, a Companhia cumpriu tudo o que foi acordado no meu contrato.

- Mas então...

- Amor, excelência. Fiz tudo o que fiz por amor...

O homem pensou mais um pouco, olhou para seus dois companheiros e por fim retornou à mesa. Antes de ligar novamente o sistema, perguntou:

- Sinceramente, gostaria de poder ajudá-lo, A-231D, mas você nos deixou com pés e mãos atadas. Pelo menos arrepende-se de algo que tenha feito durante essa viagem?...

Ele refletiu um pouco e quando falou parecia emocionado:

- Sim, excelência. Receio que todo o meu esforço tenha sido em vão, pois no afã de reencontrar a mulher da minha vida, esqueci o principal, aquilo que foi minha motivação para fazer o que fiz: arrependo-me amargamente de não ter contado a minha esposa que ela morreria no dia seguinte, na queda de um avião.

A lágrima escorreu pelo rosto enrugado e cansado. A cabeça pendeu, em atitude de desânimo. Como fora idiota, perdendo tempo com tantas explicações que só serviram para deixar Amélia mais confusa! E do acidente, o maldito acidente, ele nada falara!... Bem que merecia a morte a que seria condenado em instantes. Por culpa da sua imbecilidade, a mulher que sempre amara morreria uma segunda vez, e uma outra, e mais outra... Enquanto a roda do tempo continuasse a girar, aquele acidente continuaria a tirar a vida de Amélia na flor da idade, e não havia nada que pudesse fazer. Aquela tinha sido sua única chance de salvá-la e ele a desperdiçara...

O ancião ligou novamente o sistema.

"Funcionário A-231D, coloque-se de pé para ouvir a sua sentença."

Ele levantou-se, mas já não dava a mínima para aquele julgamento. Aguardava apenas a morte. Talvez, só talvez, Deus fosse generoso e permitisse que ele ficasse no mesmo lugar que Amélia, seja qual fosse esse lugar...

"Com a autoridade a mim investida pelo Conselho Diretor do Centro de Controle de Viajantes Virtuais, declaro o réu culpado pelo crime de desobedecer o Código de Viagens Virtuais vigente na presente data. Como pena, observando a longa folha de serviços prestados pelo funcionário A-231D a esta Companhia, e levando-se em conta que não chegou a interferir de forma irreversível no passado, condeno-o ao exílio, devendo o mesmo fazer uma última viagem, com destino final escolhido por ele. Caberá ao réu optar entre o sábado anterior ou o domingo posterior ao acidente que vitimou sua esposa como data de chegada. O réu não poderá, em hipótese alguma, retornar ao presente, devendo, portanto, morrer no local escolhido. Cumpra-se, pois a sentença, à partir da zero hora do dia seguinte à promulgação."

Ele não acreditou no que ouviu. Quando levantou os olhos, os anciãos estavam se retirando, mas ainda pode ouvir o líder sussurrar:

- Aproveite bem o tempo que lhe resta...

Estava muito nervoso. À medida que se aproximava da casa, mil conjecturas passavam por sua cabeça. A princípio, ficou feliz. Poderia revê-la, viver ao seu lado os meses que ainda lhe restavam de vida. Depois conheceu a dúvida: qual data escolheria? Ponderou que se escolhesse o sábado antes do acidente, que era o mesmo dia em que viera da última vez, tudo se repetiria, pois a linha do tempo, por não conceber que o mesmo corpo ocupe o mesmo instante concomitantemente, apagaria aquele momento anterior. Se, no entanto, escolhesse o domingo, após o acidente, poderia já ser tarde demais, caso ela não houvese entendido que algo aconteceria no dia seguinte. Se ao menos ele tivesse lembrado de avisá-la... Recriminava-se por ter agido como um idiota, mas sabia que se tivesse interferido, provocando mudanças no passado e evitando que ela morresse no acidente, as conseqüências poderiam ser desastrosas, e o Conselho jamais daria outra sentença que não a morte. Se ainda estava vivo, se ainda tinha alguma esperança de abraçar Amélia novamente, devia única e exclusivamente ao seu esquecimento.

O carro parou em frente à casa. O mesmo portão, o mesmo jardim bem cuidado, os mesmos Gerânios e Margaridas. O mesmo coração batendo descompassado, as mesmas pernas bambas e a mesma respiração entrecortada. Tudo parecia uma repetição da vez anterior. Ou quase tudo. Estava agora com a aparência de trinta anos, a mesma idade que tinha quando Amélia morreu, uma última deferência por parte do Conselho.

- Senhor, seja meu amigo! - sussurrou em oração.

Lembrou-se da forma nada científica pela qual decidira o dia em que retornaria ao passado: as pétalas da Margarida disseram para escolher o sábado, mesmo que significasse viver apenas mais meia hora ao lado de Amélia. Antes meia hora que nada, parecia querer dizer a Margarida, ao ser despetalada.

Parou em frente à porta. Estava com medo. E se estivesse errado, e se esse não fosse o dia correto?...

Ajeitou a gravata, respirou fundo e tocou a campainha. Fosse o que fosse, seu destino já estava traçado, sua sorte já estava lançada.

Era uma linda tarde de um domingo ensolarado.