Sorte
Gorman desceu as escadas da hospedaria lentamente. Estava cansado e ainda meio bêbado da noite passada. Não se lembrava de muita coisa, mas tinha certeza que aquilo com que ele acordara na cama era uma meio-orc. Certamente a noite foi muito estranha.
Seus companheiros lhe esperavam em uma mesa afastada do bar, em condições não muito diferentes das dele. O taverneiro não estava ali ainda, apenas àquela linda filha dele com quem Gorman gostaria de ter dormido. Ele passou batido pelo bar e evitou olhar para ela, ciente de que a jovem saberia que ele havia acordado ao lado de uma enorme dama de cor levemente acinzentada...
─ Não sei por que exatamente, mas eu tenho a impressão de que hoje será um péssimo dia – disse Gorman ao chegar à mesa. Puxou uma cadeira e desabou nela e sobre a mesa.
─ E cheguei a pensar que era o mago desse bando – brincou Tharman. A voz abafada pelos braços que envolviam a sua cabeça. Aparentemente, a ressaca estava lhe atingindo em proporções épicas.
─ O dinheiro acabou – disse Waynard segurando a cabeça com as mãos, obviamente também acabado pela bebida.
─ Você está brincando, não é? Nós conseguimos mais de cinqüenta mil tibares com aquele prefeito gordinho! – berrou Gorman.
─ Bem, acabou. Pelo que aquela moça me contou – disse Waynard fazendo um gesto com a cabeça em direção ao bar – nós compramos um carregamento inteiro de vinho élfico de uma caravana e distribuímos na hospedaria ontem. Por sinal, ela também disse que nunca mais quer falar com você.
─ E ela não disse como foi que eu acabei acordando com uma meio-orc hoje? – gemeu Gorman, afundando ainda mais o rosto entre os braços.
─ Podia ser pior – disse Tharman.
─ Podia? – perguntou Gorman.
─ Você podia ter acabado como eu e acordado com um meio-orc.
Gorman e Waynard permaneceram quietos por um instante e depois de um suspiro abaixaram a cabeça. Tharman não era exatamente o que se esperaria de um mago. Forte e viril com olhos e cabelos claros e um rosto de contornos duros. De fato muito másculo e bonito. Era surpreendente o número de vezes que ele acordava de uma bebedeira ao lado de um homem.
Gorman, por outro lado, era exatamente o que se espera de um pistoleiro de Smokestone. Forte e durão, rápido como um raio no gatilho e capaz de beber quantidades homéricas de qualquer coisa com álcool. Tinha a barba eternamente por fazer e inseparáveis botas de couro e chapéu.
─ E quanto a você, Waynard, com que tipo de pessoa acordou? – perguntou Gorman tentando quebrar o clima ruim.
─ Bom, parece que ela está logo ali – disse Waynard acenando para alguém que vinha da escada da hospedaria. Gorman e Tharman se viraram e olharam o que o companheiro tinha conseguido com os cinqüenta mil tibares que para eles valeram apenas um grande desapontamento ao acordar. E não conseguiram acreditar.
Uma elfa absolutamente espetacular vinha na direção da mesa, ainda abotoando o vestido de seda dourada que usava. Foi até Waynard e sussurrou algo na língua élfica, ele beijou a mão dela e respondeu algo também em élfico. Então ela partiu da estalagem, provavelmente de volta para a caravana de onde veio.
─ Pelas bolas perfeitamente cilíndricas, esféricas e axiomáticas de Khalmyr! Que bunda era aquela? – disse Gorman estupefato.
─ E aquelas tetas? Por Wynna, aquelas eram as tetas de Marah! – continuou Tharman.
─ Sério, nós dois somos mais bonitos que você, pelas leis naturais do mundo nós devíamos acordar com elfas e você, no máximo, com uma anã – argumentou o pistoleiro.
De fato ele era um pouco feio. Os cabelos negros desgrenhados, a cicatriz na testa, o corpo não muito atlético. Ele era quando muito apenas comum. Apenas os olhos castanhos muito vivos e brilhantes davam algum destaque ao seu rosto.
─ Khalmyr pode ter o tabuleiro, mas é Nimb quem move as peças. Certo? – disse Waynard, citando o velho ditado e rindo tão alto quanto sua ressaca permitia. Seus companheiros suspiraram e se resignaram. Cada um murmurando alguma blasfêmia menor contra os deuses por sua má sorte.
─ Certo, e agora, o que vamos fazer? – perguntou Gorman.
─ Ainda temos quatro tibares de ouro, oito de prata e seis de cobre. Quatrocentos e oitenta e seis tibares. O suficiente para pagar comida e repouso por mais uma semana se não abusarmos – começou Waynard, os outros dois sempre ouviam quando ele falava – Gorman, como você está de pólvora e munição?
─ Seis disparos para a pistola. Quero dizer, doze. Não estou acostumado a contar certo ainda. Só dois para o mosquete – disse o pistoleiro – Tharman, como você está de componentes mágicos?
─ O suficiente desde que não precisemos apelar para bolas de fogo. Se for o caso, vou precisar de bosta de morcego – respondeu o mago.
Waynard ouviu e parou para pensar segurando o queixo. Ele sempre fazia isso quando precisavam sair de uma enrascada.
─ Certo. O que precisamos são os seguintes – disse Waynard tirando uma pilha de papéis com a inscrição “procura-se” da mochila que estava pendurada na sua cadeira e escolhendo alguns deles – John da Clava, assaltante, dois mil e quinhentos tibares; Syndy a Loba, ladra de jóias, três mil e duzentos tibares e finalmente Graard Quebra Espinhas, líder bandoleiro, vinte e cinco mil tibares.
─ Por que esses dois primeiros? – perguntou Gorman.
─ Simples. Eles são peixes pequenos. Nós pegamos a recompensa por eles, reequipamos e vamos atrás do Graard, que é um peixe do nosso tamanho preferido. Entenderam o plano? – disse Waynard, satisfeito com a própria engenhosidade.
─ Hã, pessoal – disse Tharman, olhado para o cartaz que Waynard lhe passou – sabem esse tal de Graard?
─ O que tem ele? – perguntaram juntos Waynard e Gorman.
─ Bom, se essa ilustração aqui estiver correta, acho que é aquele meio-orc com quem eu acordei... – respondeu sorrindo.
Os dois olharam boquiabertos por alguns instantes para Tharman, incrédulos. Foi Waynard quem rompeu o silêncio.
─ Está falando sério?
─ Estou – respondeu o mago.
─ Sabe meu amigo, às vezes essa sua tendência em dar o rabo serve para alguma coisa – gracejou Gorman.
─ Que Tenebra lhe carregue! – Tharman xingou, mas estava sorrindo.
Os três subiram para o quarto do mago e lá estava Graard Quebra Espinhas, dormindo o sono de Khalmyr. Uma pequena pancada seguida de uma viagem à sede da guarda e lá estavam eles com seus vinte e cinco mil tibares. Felizes como cães e prontos para mais uma noitada.