Seu Barão
Como eu poderia esquecer daquele dia! Nunca em toda a minha vida eu ia esquecer tão singular espetáculo, que espetáculo. Lembro como começou, como uma história mal escrita e como uma noite de possíveis desencontros. Vinha descendo a 101 na altura de Sergipe, numa daquelas esquinas e curvas mal assombradas tinha um singelo senhor com uma placa escrito em letras enormes: “Carona para o paraíso”. Eu ri de tão estranho sujeito, mas parei o caminhão pra tirar um sarro da cara do malandro.
Acostei, e voltei uns passos pra encontrar o senhor impassível olhando para frente, nem meneou a cabeça pra ver quem se aproximava. A barba vasta e branca, o cabelo ralo escorrendo por baixo de um chapéu velho e de couro, as roupas esfarrapadas. Parecia um mendigo perdido.
- Boa noite! – disse com um riso contido.
- Você vai me dar uma carona? – perguntou com inocência.
Olhei para a mala ao lado, só uma bolsa surrada, com pouco volume e uma bengala na mão que não segurava a placa.
- O senhor vai pra onde mesmo? – tive que segurar o riso de novo.
- Pro paraíso, pra onde mais eu vou senão pra onde sou chamado? – respondeu com seriedade, parecia até que era verdade.
- Vem, sobe aqui no meu caminhão que eu te deixo lá, coisa rápida.
Dei as costas e fui caminhando, então eu percebi a verdade, ele era cego e a bengala fazia o papel que seus olhos deveriam cumprir. Voltei e lhe dei a mão para guiá-lo e erguê-lo até a cabine. Depois de colocado sentado e com o cinto bem fixo dei a partida e fui conversando até um posto de gasolina onde eu ia parar e tomar um café e descansar se fosse possível.
Até chegar lá ele me disse que era um anjo enviado por Deus e que seu tempo aqui tinha terminado e precisava retornar pro Pai eterno e contar como andavam as coisas por aqui. Até aí tudo bem, talvez mais um ensandecido com a loucura da vida diária, depois ele começou a dizer que eu ia ter uma bela surpresa na noite que ia se seguir no bar e que tivesse fé que antes do sol nascer eu ia ter a visão mais impressionante de toda a minha existência, ia ser algo único. Quase gargalhei, mas me contive em respeito à senilidade do homem ao meu lado.
Parei num posto com uma lanchonete que dava para o meu raso bolso, pelo menos assim eu poderia dar algo de comer ao velho que estava me fazendo companhia.
Entramos, sentamos e fomos servidos, enquanto comíamos ele começou a me dizer coisas muito interessantes, deixa ver se eu lembro:
- Ei Josias, sabe aquele moleque sentado com aquela guria ali atrás? Ela tá grávida e daqui a pouco vai dar um escândalo dizendo que ele é um cabra safado e que vai deixar ela na primeira esquina que encontrar uma vadia mais bonita e mais gostosona que ela. Espera só uns cinco minutos. – depois abaixou os olhos e voltou a se concentrar no sanduíche de ovo e salsicha que parecia uma raridade para sua boca seca.
Dito e feito, escândalo armado e barraco escrito como ele disse. Quase fiquei de queixo caído, nem acreditei direito no que estava acontecendo, mas preferi acreditar que era tudo arrumado e que ele devia era estar junto com eles, tramando um assalto. Será? Fiquei quieto e comendo de olhos bem abertos, atento ao redor.
- Quer saber de outra Josias? – perguntou sem que eu nem me preparasse o que ia dizer – a garçonete vai trazer teu café com uma barata boiando nele e ainda vai fazer cara de que não viu, te passando a bebida com aquela ironia descarada que só elas têm. Se tem. – riu sem os dentes na boca. Mastigando de novo a comida, com mais vontade.
Não é que a danada trouxe o café como ele disse! Só podia ser armação! Tinha que ser.
- O que mais vai acontecer? – perguntei procurando na voz dele algo que o denuciasse.
- Agora você vai me acompanhar até o banheiro pra segurar os meu óculos e a minha bengala. Vem. – levantou-se deixando o braço pedindo minha mão como guia.
Levantei um hesitante, mas mesmo assim eu fui, na atenção que eu estava não precisava de muito para reagir qualquer ação que viesse a me afetar.
Fomos até o banheiro, ele entrou na cabine e deixou comigo os óculos e a bengala como tinha dito.
- Olha só – me disse como se enxergasse – senta aí nesse banco velho, coloca os óculos e segura a bengala como se tu fosse cego que nem eu, eu vou demorar, se tu ficar em pé vai sofrer muito de dor nas pernas! – riu de novo aquele sorriso desmazelado que só ele tinha.
Fiz como disse pra ver no que ia dar. Sentei e esperei. Não demorou cinco minutos entrou um tipo todo estranho com uma mala grande, óculos escuros como os meus, roupa folgada demais e jeito desconfiado, como se tivesse devendo algo ou escondendo. Olhou pros lados e me viu, se assustou, mas logo deixou sair a desconfiança, me viu cego. Se aproximou, passou a mão na frente dos meus olhos, como eu não movi a cabeça nem pra lá nem pra cá se acalmou mesmo. Trancou a porta do banheiro e começou a tirar a roupa! Quase que eu me levantei, mas esperei porque se ele estivesse armado minha carreira acabava ali mesmo.
Tirou o casaco largo que estava sobre os ombros e o que viu foi um sujeito franzino se desenhando, tirou a blusa e logo depois as calças e o que viu foi algo que até hoje lembro bem, uma mulher muito linda, coisa de cinema, não tinha visto tanta beleza daquele jeito, antes daquele dia. Tirou a peruca que deixava o cabelo curto e soltou os fios negros que se escondiam debaixo da touca, curvas perfeitas, e sem sutiã só de calcinha, acredito que pra dar mais veracidade ao disfarce. Começou a se trocar ali na minha frente, sem pudores, nem parecia que eu estava ali. Vez ou outra olhava pra ver se eu tinha me mexido, mas nada, nada de me mover, vai e eu perco o espetáculo!
Colocou a calça e deixou ainda mais bonito o desenho do corpo, depois uma blusa bem colada sem sutiã mesmo, que seios! Que bunda! Nada comparável ao que já tinha visto, nenhuma mulher que tinha dormido comigo era tão linda! Trocou-se muito rápido, jogou as roupas masculinas dentro de uma das cabines do banheiro olhou mais alguma coisa dentro da mala. Antes da sair se aproximou de mim e como garantia de que eu era cego levantou a blusa e ficou um tempo me mostrando aqueles belos peitos, como sento vontade de pular nela, mas fiquei só observando, registrando tudo na memória. Abaixou a blusa e saiu.
Esperei mais um bocado, demorou demais e nada do cego.
Abri a porta do banheiro que ele estava e nem a sombra dele.