Destruição de Sodoma
Destruição de Sodoma
- Gênesis 19; 1-29 -
O pôr-do-sol bolava um espetáculo de rara beleza, visto dos portões de grande cidade de Sodoma. O ar começava a esfriar, enquanto o sol possuía ainda algum calor. O céu ainda estava, em sua maioria, com uma tonalidade de azul pendente para o púrpura, mas o astro rei já pendia para o vermelho-róseo, inundando a planície do rio Jordão, que mais parecia um jardim do faraó no não muito distante Egito.
Aos portões da cidade estava sentado um homem de meia idade que fitava o magnífico espetáculo no céu, mas por dentro havia uma angústia terrível. Sabia que não era correto tudo o que era feito pelos habitantes de Sodoma. Lot (esse era o nome do homem) sabia que eles eram cruéis, blasfemos e maus. Ele não queria mais aquela cidade. Deveria fugir dali, levando sua mulher e suas filhas.
Ah, as filhas! Com o quê estava na cabeça quando aceitou as propostas daqueles dois energúmenos de se casarem com suas filhas? Mas foi na época em que Lot acreditava na recuperação deles. O casamento das duas seria em breve, então teria que fugir o quanto antes, pois ele sentia que toda aquela maldade dos habitantes da cidade não ficaria impune; sabia que Javé logo se manifestaria contra isso...
Mal pensara nisso quando sentiu o vento soprar cálido e frio simultaneamente, fazendo-o sobressaltar e arrepiar os cabelos da nuca. Nesse momento visualizou três homens vindo em direção à cidade, e já estavam à distância de duas flechadas, quando Lot seguiu na direção deles para lhes oferecer sua hospitalidade. Nisso, o mesmo vento quente-frio percorreu suas entranhas, banhando-o de um sentimento de euforia e temor imensos. Ao visualizar os homens (eram dois, se enganara), teve a impressão de ver asas brancas nas costas deles, o que logo percebeu serem apenas suas túnicas brancas que pareciam voar ao redor do corpo de seus donos.
Ao chegarem à distância equivalente a 700 passos de viagem, Lot sentiu de novo o vento, desta vez arrebatando-o ao chão em posição de louvor.
-Levanta-te, não precisas disso
O homem que parecia ser o mais novo agachara-se e ergueu Lot, que se sentia indigno de ver o rosto dos estrangeiros.
-Não temas, nenhum mal te afligirá- disse o outro homem.
Nesse momento, a imagem dos habitantes de Sodoma e suas injustiças e atrocidades para com a família de Lot lhe vieram à cabeça. Passada essa visão Lot sentiu uma paz enorme. Foi quando olhou para os rostos dos estrangeiros: o mais novo não devia ter mais de vinte anos, enquanto o mais velho deveria ter uns trinta e poucos. O mais novo tinha olhos pueris azuis e cabelos aloirados e cacheados. O mais velho, por sua vez, tinha olhos negros e sábios, combinando com seus cabelos castanho-escuros, também cacheados. Lot percebeu também no mais velho, que tinha o semblante mais duro e forte, uma cinta que apoiava uma espada dentro de sua bainha.
-O meu nome é Gabriel- disse o mais novo –e esse é meu irmão Miguel.
Lot prostrou-se ao chão novamente e ofereceu -Oh, mestres, não tenho uma casa digna de vossos pés, mas peço que vós passeis a noite que vem chegando junto à minha família.
-Não há necessidade, caro Lot. Passaremos a noite na praça, não há problema- disse Gabriel.
-Eu insisto.
Gabriel sorriu para seu irmão, que por um instante teve seu rosto iluminado por um ar de felicidade, que logo foi tomado por sua seriedade.
-Vamos logo então, que a noite já vem vindo- disse Miguel
Ao adentrarem na cidade, muitos olhares curiosos se esgueiraram pelas janelas, portas e frestas, enquanto os comerciantes, pedestres e soldados paravam o que faziam para olhar Lot e seus convidados. Podia-se ler nos olhos de cada um que sentiram o mesmo vento quente-frio que Lot sentiu ao avistar os homens. Mas a sensação parecia ser mais voltada para o medo
Chegando então à casa de Lot (que, no mínimo, não era pequena), o anfitrião mandou seus servos trazerem um jantar digno de rei, mandando cozer pães ázimos, como era o costume. Mal terminaram o banquete, já se foram deitar. Já em seu quarto, um servo perturbou Lot:
-Amo, há gente lá fora que chama teu nome.
Lot se apressou em vestir-se e atender quem o chamava. Ao chegar à porta, já havia uma multidão à sua espera, com tochas, pás e armas à mão.
-Queremos ver os estrangeiros- disse um dos homens, o que parecia estar liderando.
-Me desculpem, mas meus convidados já estão a dormir, e não vos podem atender.
-Não aceitamos suas desculpas, e mais! Nós veremos os estrangeiros por bem ou por mal!- replicou o líder, seguido de gritos e tilintar de armas.
Lot se sentiu em um beco sem saída: não queria atormentar os estrangeiros, mas também não queria ter sua casa invadida pelos habitantes enfurecidos. Então decidiu tomar medidas drásticas.
-Meus caros cidadãos, eu vos peço que não cometais esse crime! Porém, em compensação, eu tenho duas filhas ainda virgens. Eu vo-las trarei, e fazei delas o que vos aprouver; mas não façais nada a estes homens!
O que assemelhava ser o líder riu de uma forma rude e grotesca. Lot pensou ter visto nos olhos do líder um fogo negro, se é possível.
-Retira-te daí agora! Eis um indivíduo que não passa de um estrangeiro no meio de nós e se arvora em juiz! Além de ousar ser mais rico do que muitos de nós! Pois bem: verás como te havemos de tratar pior do que a eles!
O líder então empurrou Lot para trás e, junto com alguns dos habitantes da cidade, aproximou-se para derrubar a porta. Neste momento, Lot só escutou um barulho semelhante ao de um chicote estalando e um clarão ofuscou-lhe a visão. Ficou por um breve momento atordoado, sem saber ao certo o que havia acontecido. Escutava exclamações, como se os outros também estivessem no mesmo estado de estupor. Então sentiu uma mão grande e áspera puxar seu corpo para trás. Essa mesma mão passou por seus olhos, o fazendo recobrar a visão, e a primeira coisa que Lot viu foi o rosto de quem o segurava: Os olhos de Miguel, antes negros, agora emanavam um brilho vermelho de fúria divina e glória.
Miguel estava impassível. Parecia já esperar essa reação do povo de Sodoma. Lot então se situou: Estava na antecâmara de sua casa, de frente para a porta de entrada, que tinha um brilho enevoado anormal. Gabriel chegou ao lado de Miguel, e tinha a fisionomia também muito séria.
-Terás que pegar uma porção de dinheiro, tua família e fugir, pois iremos destruir essa cidade- disse Miguel
Gabriel, porém interveio: - Mas não estás lembrado das ordens do nosso Senhor e a promessa feita a Abraão? Se houver dez, a cidade se salva.
-Não há dez, apenas três, como bem sabes. E esses escaparão.
Lot, sem saber do que se tratava, ficou mais confuso ainda, principalmente com a menção de seu tio Abraão e algum Senhor... Os homens lhe mandaram buscar sua família. Como ordenado, Lot correu de encontro a seus genros (aqueles que em breve desposariam suas filhas).
-Depressa, vamos fugir! Pois, vão destruir a cidade!
Os homens perversos que eram seus genros se riram, achando estar Lot logrando com eles. Como já era amanhecer, e Lot não tinha partido ainda, os forasteiros o pressionaram.
-Vai-te logo! Toma tua mulher, e filhas e foge para que não pereças nos castigos da cidade!
Já que Lot se demorava tentando salvar os pecadores, que ainda assim não acreditavam nele, Miguel e Gabriel o tomaram juntamente com sua mulher e filhas e o escoltaram até o portão da cidade.
-Agora vão. Não olheis para trás nem vos detenhais pela planície. Correis direto para as montanhas- disse Gabriel sério, agora parecendo muito mais adulto do que antes.
-Se é que vos posso pedir algo além de terem salvado a minha vida e de minha família- disse Lot – peço-vos que nos deixeis refugiar em uma cidadezinha por aqui, chamada Segor, pois antes de chegar às montanhas nos seríamos abatidos pelo flagelo. A cidadezinha é bem pequena, e assim salvaríamos a vida.
Gabriel sorriu – Sim, é claro. Pouparemos a cidade que pediste. Mas andeis rápido, pois nada poderemos fazer antes que vós tenhais chegado.
Quando Lot e sua família estavam para chegar em Segor, o sol começava a subir pelo céu. Mas num instante o céu escureceu como se houvesse caído a noite de repente, e uma chuva de fogo e enxofre se abateu do céu sobre as cidades de Sodoma e Gomorra, causando um estrondo imenso.
No correr da fuga, a mulher de Lot que se corroia de curiosidade para saber o que se passava, deu uma pequena espiada na destruição. Deu de cara com o céu desabando sobre as duas cidades pagãs. Numa fração de segundo conseguiu focalizar, como quem usa uma luneta ou algo semelhante, o estrangeiro Miguel voando a uns 500 pés¹ de altura, ruflando suas esplêndidas asas brancas e brandindo sua espada incandescente, enquanto Gabriel que estava ao seu lado (com um par de asas igualmente magníficas) tocava sua corneta, que derrubava todas as edificações das cidades. De repente, sentiu o olhar de Gabriel: um olhar intenso, raivoso e estranhamente salgado...
Lot nem se deu o trabalho de ver, já sentiu o destino de sua esposa. A curiosidade insaciável dela agora a havia transformado em estátua de sal. Gritou para que suas filhas corressem mais e adentrou os muros de Segor, quase em segurança.
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¹Equivale a aproximadamente 152,4 metros