Ela

Uma vida que se desfaz perene ante o raiar da lua na sua vasta emoção, em sua entonação palidamente prateada, ela morre lentamente num vago sussurro inaudito pelos ouvidos de seus iguais, seus cabelos ruivos desfeitos em tranças longas e desiguais, seus lábios, seus olhos, sua alma, caem em pranto numa perca consciente da consciência, num segundo desesperado de uma eternidade melancólica ela sente novamente o furor extásico da morte que nunca se aproxima, uma bêbada, uma viciada numa droga licitamente proibida, de fácil acesso. Seu estremecer, espasmos de prazer numa fúria saciada por uma sede invencível, um outro corpo tomba enquanto ela no estupor sádico de sua maldade sorri desvairadamente blasfemando contra a sacra lua que chora do céu lágrimas de prata insípidas, desgostosas com a traidora que mancha sombriamente de vermelho o chão velho e pedregoso de uma viela estreita e antiga, fere-o com seus joelhos eternos, destrói a leve película da consistência tenebrosa da identidade etérea da física cidade menina.

O mundo gira num frenético pulsar vivo derivado da morte obtusa de um ser obtuso desprovido de qualquer sanidade mental, moral ou humana, é bizarra a dualidade desse extremo momento de satisfação macabra, uma vida seduzida encaminhada para vias de morbidez, a mais velha filha da perdição exala cheiro de vida e pureza, porém fede por dentro, já apodreceu há eras atrás, não tem nada a dar além do que pode tomar, sua ruiva cabeleira, seus florais olhos, atraem as vítimas com fulgor e sedução doentia, não há nada de novo em sua alma, a jovialidade eterna, a sede eterna, destruição infindável, oh desprezível justiça que de nada nos adianta, desgraça que corrói as veias entupidas e pútridas de uma sociedade decadente desde seu início, criadora de sonhos vãos num mundo vão, criou a justiça pra prender a justa verdade por trás de uma digerível mentira de bem comum, a viciada que caminha pelos becos escuros de uma das metrópoles do novo mundo sabe muito bem até onde vão o egoísmo e ambição humanas de um vão egoísmo e ambição.

É aterradora a capacidade de decomposição humana, até quando irá durar o desespero que alimenta essa criança embalada por uma canção esquecida desde sua criação? Ela busca a salvação em meio ao caos. O ódio e o desespero de outros notívagos a trancam nesse ciclo viciado, suas armas sempre foram as mesmas e os resultados nunca mudaram, sucesso, sempre sucesso. Ela ri ao passar por dois traficantes que ameaçam tirar sua vida se não der o que tem, ela gargalha alto deixando sua alma e seu coração tocarem cada canto silencioso dessa vasta opressão noturna que a cerca, baixa seu olhar até as feições aturdidas dos vermes a sua frente, o desejo de matá-los é imenso, porém ela não é humana, só mata para comer, agora já está saciada. Com um gesto de sua mão eles começam a correr, tamanha velocidade em que saem que suas almas têm que seguir o fio de prata que os liga, é inútil tentar descrever o terror que seu olhar provoca em quem a provoca, e o desejo que provoca em quem batem os seus olhos, sua visão é um misto de espasmo de dor com gozo de prazer.

Seus pés a carregam a seu templo, um templo no alto de uma torre, numa sala cercada pela maresia, coberta por um manto negro salpicado de luzes não artificiais, um lugar onde nenhuma borboleta atreve-se a fazer o mais sutil movimento, seus pés a carregam inconscientemente, melancolicamente, ao chegar no alto uma paz de espírito abate-se sobre sua carcaça cansada e desgastada sem nenhum dano aparente, forma uma cruz com os braços deixando a brisa dançar com seu espectro existencial, sua dança dos mortos do canto do desespero de Orfeu, seu amado, uma fugitiva do inferno escondida no inferno sem paraíso para lhe aceitar. A lua continua a despejar sobre essa criatura única um presente prateado e vivo, todas as bênçãos negras recaem sobre as costas pesadas de uma criatura assexuada num corpo de mulher, uma casca de anjo é seu esconderijo dos demônios e dos próprios anjos, ela cansou desse jogo retirando-se dele há tempos esquecidos em suas areias, ela é apenas uma sonhadora, dessas que buscam uma utopia, um lugar perfeito, onde o sol nunca nasça, não haja lua nova nem minguante, onde o alimento não falte e a imortalidade possa ser conversada entre amigos numa mesa de bar, amigos... o que é isso? Será que é apenas uma maneira que esses fracos mortais arranjaram para poder tornarem-se uma força risivelmente mais fácil de ser esmagada?

O manto a cobre, ela cobre a vida, a vida morreu antes de nunca ter existido. Sua existência infecunda deixou apenas uma torpe prole no mundo, alguém que merece ser esquecido, um traidor infernal desistente da vida no inferno, ela lembra com ódio do neófito seu filho, com pesar no seu coração morto e melancólica expressão de dor ela olha o mar a sua frente, sentada no alto da abóbada metálica da Torre magnífica, do observatório dos céus, da noite, das estrelas, da tão majestosa, magnífica, estupenda lua, seu olhar reflete uma inquestionável dúvida acerca de seu destino, um filho traidor, um corpo mausoléu que trancafia a liberdade de uma alma sem fronteiras, ela está pensando em algo que irá glorificar a sua existência e realmente deixá-la livre de qualquer culpa ou destruir eternamente a mais bela flor dentre o imenso jardim de amarantos que brota no mundo semeado de desilusão e desgraça. O vento a auxilia nessa difícil escolha, ele percorre os caminhos nervosos, sem direção, dessa mulher incógnita que vaga pela noite eterna há eternos anos sem ser percebida, ele, o vento, influi na derradeira e mágica escolha de um ventre que nunca deu frutos, de uma mãe que nunca amamentou seu filho, o traidor, a traição de Eolos notadamente nefasta e desprovida de pudor, o deus vento a convida a voar em horas ermas, clama pelo seu corpo nos céus majestosos desta imponente metrópole, ela abstém-se hesitante de tão sedutora proposta, apenas sente o orgástico toque do vento em sua pele sobrenaturalmente pálida.

Os braços cruzados, relaxados, sobre os joelhos, dobrados ante a dúvida que a abstrai do mundo, a dúvida que a mantém há algumas horas afastada da realidade, os olhos verdes perdendo-se no horizonte da memória, nas vielas da razão, sua alma errante erra por lembranças remotas, quase esquecidas por completo não fosse sua importância para esse momento presente, sua primeira noite como sombra entre as outras sombras do submundo das trevas, quando lhe foi cedido o convite para a sociedade eterna, a utopia sonhada por sua filosofia ensurdecedora, ainda jovem e sonhadora deixou-se seduzir pelas belas palavras de seu pai negro, aquele belo homem que todas as noites desde os seus treze anos de idade visitava sua casa para divertir-se com seu pai, seus escravos, suas concubinas, as intermináveis orgias dedicadas a Baco sendo consumadas pelo ilustre amigo da família, aos dezoito anos o fato dele nunca ter sido visto durante o dia chamou bastante a atenção da mulher, que não havia poucos meses, tinha se tornado a alta sacerdotisa de Diana, foi quando o convite para sair em busca de livros raros na companhia do amigo da família começaram a surgir, numa dessas noites ele revelou sua real condição e fez a proposta, deu-lhe uma manhã e uma tarde para pensar, à noite, no cantar da coruja ela já fazia parte da sociedade condenada, sua tortura acabara de começar.

Caminhou durante séculos ao lado daquele que trouxe a benção da noite para sua vida, até que os bastardos da inquisição começaram a matar qualquer um que respirasse diferente de como a Igreja queria, em sua condição ela se enquadrava entre aqueles que não respiravam, mudou de refúgio diversas vezes junto com seu mentor e amante antes de caírem numa cilada, ela lembra muito bem do frio e escuro castelo desabitado num vilarejo distante de tudo, afastado de qualquer poder corrupto, um lugar onde eles podiam se tornar senhores de tudo o que ali havia, instalaram-se nesse castelo de maneira bem confortável, o pouco que havia sobrado de seus livros foi cuidadosamente colocado em diversas estantes numa sala octogonal de pouca umidade, a sala era perfeita para os estudos, localizada no fundo de uma torre que ficava no centro do castelo conectando-se com oito diferentes corredores, cada lado dos oito tinha quinze metros de comprimento, do chão ao teto havia pelo menos cinqüenta metros de altura com oito janelas formando uma espécie de escada, nenhuma ficava frente a frente com a outra, algumas pinturas de caráter sombrio decoravam o chão e metade das paredes, gárgulas, demônios, bruxos e coisas do gênero alegorizavam junto com anjos e inquisidores um imenso combate.

Todo o resto do castelo nada tinha de original ou aterrador, à exceção dessa sala octogonal, passaram um mês proveitoso nesse castelo, estudaram suas artes arcanas, chamadas de ciência depois do renascimento das artes e do homem, no fim de exato um mês ambos despertaram no alto de uma masmorra com diversas janelas e apenas um caixão estreito para proteger-se do sol que nasceria ao término da madrugada, sem hesitar seu amante se propôs a sacrificar-se no lugar dela se a ruiva prometesse que faria cada um pagar, ela prometeu chorando sangue, a sede de ambos havia tirado suas forças, o que aconteceu depois é passível de previsão, ela está aqui para contar a história, pouco importa narrar como ela saiu dessa cilada, importa a sua dor e tristeza, sua quase desistência é o único objeto merecedor de nossa atenção, a lágrima rubra que escorre sobre sua tez pálida expõe suas amarguras de séculos de idade, a pobre matusalém não tem companhia para o resto de sua eternidade, apenas um pensamento domina sua mente, um raciocínio de beleza estúpida, um fulgor visceral e fátuo aquece friamente sua alma, sua vontade, o vítreo olhar desesperado atinge o ápice da vaguidão quando uma sombra para ao seu lado, uma sombra apoiada com os cotovelos nos joelhos, a treva levemente agachada sem olhar para a milenar estátua contemplativa, os cabelos curtos, assanhados, rebeldes contra o vento, plantam-se majestosamente na cabeça do ser negro, indiscutivelmente belo, jovem, com uma manta velha, surrada, bastante gasta e empoeirada, uma leve luz prateada refulge por debaixo das infinitas dobras da roupa.

A ruiva sabe quem chegou, não espanta-se de que ele tenha vindo conversar um pouco depois de tanto tempo, tempo esse que ficou pendente desde a sua morte, ou não morte, o anjo negro da noite que leva para o outro reino aqueles em que o tempo acabou nesse plano físico, os dois tornaram-se amigos desde a primeira vez em que viram-se, quando Istambul ainda era Constantinopla, conversaram muito naquela noite, uma madrugada inteira ganha no banco de uma igreja com seus ícones ortodoxos, ela descobriu o segredo de sua existência, a única da raça a saber por que de ser assim, não a origem, mas o por que, esse anjo bondoso injustiçado por todos os seres fóbicos, os covardes com medo da perenidade. Hoje esse anjo veio chorar as lágrimas que nunca derramou, ele não queria ter que conduzi-la a sua nova casa, a madrugada está perto do fim, o sol com seu esplendor, sua vida, começa a despontar no horizonte ameaçando a existência sobrenatural dela, a vampira com humanos sentimentos olha para seu amigo negro que por sua vez evita seus espelhos, os raios de Apolo suavemente tocam sua pele, sua dor física é insuportável, no entanto ela nem se move, um fogo incolor começa a desprender-se do mais profundo recanto de sua alma, seu espírito levemente solta-se da casca velha, podre, profana, enquanto o corpo sem valor rui aos poucos tendo sua cinzas levadas pelo vento o espírito imortal sai de mãos dadas com o anjo negro para um lugar qualquer que pouco importa sabermos, antes de abandonar definitivamente esse lugar corrompido ela vira seus belos olhos para o sol e chora uma felicidade eterna, gozando da mais alta alegria, com o mais magnífico e inexprimível sorriso ela vai embora para sempre, até que o sempre acabe eternamente.