O Lobisomem.

Quase treze anos. Iminente a primeira mutação. Todos sabiam e ninguém escondia a ansiedade pelo constrangimento inevitável. A família esperava que eu tomasse uma atitude e algumas das irmãs desejavam me ver longe delas. Deixá-los em paz, livrá-los da maldição de uma vez por todas era também objetivo meu. Só não sabia como fazê-lo! Eu nem podia fingir que não entendia direito porque sempre fui informado de tudo, detalhe por detalhe, desde tenra idade.

Além disso, algumas atitudes explicavam tudo. Por que nunca me batizaram como todo cristão? Por que não me ensinaram a ler? Por que não me levavam a cidade para cortar cabelos nem compravam roupas novas e bonitas? Por que não me tratavam como gente? Porque gente eu não era! Eu sabia muito bem que estava vivo graças à teimosia do meu pai que sempre quis um filho homem. Se eu tivesse nascido em qualquer outro clã, teria, mesmo involuntariamente, prestado um grande serviço à família, livrando-a do rebaixamento moral por ter entre seus membros uma criatura feita eu. Não fosse ele – meu pai -um bêbado irresponsável, ter-me-ia matado ao nascer. Era essa a obrigação dele, o dever de chefe que realmente protege aos seus. Conselho e esclarecimento não lhe faltaram! A parteira se cansou de esclarecer e implorar do alto de sua experiência por todo este sertão de meu Deus. Não matou porque nunca cumpriu direito o papel de pai!

Era assim que toda família pensava - e muitas vezes falavam com todas as letras - sobre meu pobre, bom e velho progenitor. Na vida eu não tinha ninguém. Mas se precisasse de um farrapo humano, podia contar com ele! Minha mãe e minhas irmãs, as sete, não davam trégua e quando o pegavam de jeito, encurralavam-no num canto e o instruíam em uníssono:

- Mande-o embora desta casa imediatamente!

Chegava eu da cacimba, galão d’água nos ombros, e ao me aproximar da janela do quarto grande, onde dormia o casal, me deparei com a verdade a penetrar meus ouvidos como alavanca de britadeira - as que furavam as pedras para colocar dinamite e explodir, tornando a pedra grande em pedras menores para a máquina moer e fazer brita.

Duas das meninas que saíam para buscar água, cada uma com seu pote, pararam diante de mim, fitaram-me nos olhos e dispararam:

- Quando você vai deixar esta casa e cumprir sua sina?

Ricos tanto quanto os Araújos não éramos. Mas também nunca vivemos a miséria dos que nada tem. Dificuldades muitas, principalmente nos tempos de longa seca ou grandes enchentes. O sítio, onde nascemos todos, foi herança de bisavós. Ali havia terra suficiente para uma boa roça de milho, feijão, algodão ou mesmo cana-de-açúcar. No baixio, sempre havia plantação de banana, coco, algumas verduras, legumes e manga; na safra ninguém vencia. Cajá e cajarana também. Goiaba e pinha nunca tinham: os passarinhos comiam tudo. Esperar a água cair do céu era fome na certa. Tudo era regado no braço com água salobra do cacimbão grande. Ruim mesmo era quando a seca se prolongava muito e o Cacimbão secava...

Minhas irmãs e minha mãe trabalhavam de sol a sol e não respeitavam serviço. Não era qualquer homem que ganhava delas no cabo da enxada, na lida com os animais e afazeres domésticos. Comida saborosa, doces finos, manteiga da terra, queijo do bom – elas faziam. Na porta de casa não faltava gente da cidade querendo comprar galinha, ovos, queijo e tudo quanto conseguiam produzir. A produção grande, quando havia boa safra, era vendida para o Coronel Joca Araújo.

O dinheiro ficava com o meu pai que comprava o que desejava para quem quisesse, gastava com as mulheres de vida fácil e ninguém falava nada. Ele era o dono da casa, o marido da mulher, o pai das filhas e todas o obedeciam sem jamais o questionar. Sua autoridade enfraquecia, despencava, caía por terra, quando por qualquer motivo tentasse me proteger. Sofria por minha causa e se mostrava impotente quando olhava nos meus olhos. Tinha piedade de mim e isso, às vezes, me assustava e eu fugia, saia de perto. Procurava me esconder em algum lugar longe da presença humana. Adorava subir nas oiticicas da beira do Riacho Seco e esperar veados e emas que vinham beber no Poço Grande; também ficava horas ao pé de angico da Serra do Meio e esperar as cascavéis atacarem os preás – de lá eu via o que se passava em casa e nas estradas de acesso – ficar debaixo da sombra aconchegante do pau ferro, onde mantinha cativo dois caititus e um maracajá selvagens!

Um dia, avistei no inicio da ladeira comprida, meu pai chegando da cidade, bêbado feito gambá. Corri ao seu encontro. Presenteou-me com bombons e moedas – as moedas que recebia de troco guardava para mim – e juntos seguimos para casa.

Daí a pouco começou grande confusão como nunca vi antes! Acho que foi ciúme por causa da mania de dar dinheiro somente para mim, um renegado, amaldiçoado pela própria natureza!

Arrancou o cabo de prata da cintura, sacou do calibre 22 e avisou:

-Quando acabar as balas, rasgo no punhal!

Descarregou o revolver e riscou o chão gritando mais e mais alto. Corremos todos a procurar abrigo no matagal do Baixio Cumprido. Eu de quando em vez vinha ver o que ele fazia. Medo dele eu não tinha. Antes de tudo éramos bons amigos e sempre confiávamos um no outro. Se não fosse essa historia de lobisomem!

Por via das dúvidas, entramos em casa somente quando ele dormia tal qual pedra.Eu sabia ser a causa do transtorno e elas confirmavam com olhares. Ninguém falava nada. Mas a indiferença ou o silêncio confirmavam tudo!

Sofrer eu sofria muito! Mas não queria compreender o que acontecia à minha volta e achava, na maioria do tempo, que a vida fosse assim mesmo. As meninas, principalmente as mais velhas, diziam, quando brigávamos, que eu não era gente: era bicho! Quando meu pai escutava, safanão na autora! E quando menor, muitas vezes as provocava para que dissessem e ganhassem cocorotes:

-Bicho do mato!

O início foi como todos os outro: normal. Na capela da fazenda vizinha, logo após a Semana Santa, a camponesa e o camponês, gente dali mesmo, casaram-se.

No meio do dia, surrando o sol escaldante do sertão, pingos de chuva caíram do céu de anil. Sol e chuva, casamento de viúva. Não! Era casamento de moça donzela.

Coladinha com o ano novo, veio a primeira filha. Ajuntamento de parentes e comida farta para todos. O choro da criança era feito linda melodia aos pais orgulhos da mais nova capricorniana, filha da caatinga abençoada, que quando queria dava alegria aos seus filhos como nenhum outro lugar do mundo!

No mesmo ano, sob o signo de escorpião, veio a segunda menina. Praticamente a repetição da primeira no que diz respeito a boas vindas. Somente alguns notaram pequena diferença: menos parentes, menos amigos, menos comida e menos felicidade porque o pai desejava um machinho. Mas é deus quem manda. Os pais apenas criam!

Signo de virgem, mês de cachorro louco, chegou a terceira filha e as festividades foram canceladas porque o pai queria um menino. Decepcionado, bebeu demais e disse que não ia encher barriga de ninguém; cada um que fosse comer e beber em suas casas!

Em junho veio a quarta. Mas como era mês de festas de Santo Antonio, São Pedro e São João, não havia como ser triste na roça. Assaram-se milho na fogueira, bolo de arroz, fubá e algumas carnes. Quem quis dançou quadrilha, namorou, batizou e fez simpatias de toda natureza. Quase todos os sertanejos fizeram diferentes rituais para os mesmo desejos: que nunca faltasse chuva, nunca viesse a seca e nunca nascesse lobisomem!

Abril foi a vez da quinta. Vizinhos e parentes sequer foram avisados e não houve comemoração alguma. Havia motivo para festejar? Para a família, não! Mostrava-se ao poucos o perigo real! Como eles desejavam conhecer uma maneira de não mais gerarem crianças! Mesmo assim evitavam a cópula de todo dia e faziam o que os amigos ensinavam. Quando fraquejava a carne, era tudo por vontade de deus!

Peixes, fevereiro, e a sexta filha do casal nasceu; veio enterrar o matrimonio selado pelo santo padre e a santa madre igreja! Daí em diante era muito arriscado o coito. Se viesse outra menina, menos mal; seria uma mula-sem-cabeça.. Mas e se viesse o menino? Seria o bicho mais temido na região: lobisomem. Deus nos livre. Credo em cruz!

Quem nasce no sertão sabe o que isso significa! Quando acontece, acaba o casamento! Acasalamento nunca mais. Separação seria o ideal não fosse a igreja avisadora do pecado mortal. Que casal vai arriscar ter outro filho? Pois quem não sabe neste mundo que o próximo rebento, sendo homem, será lobisomem? Desilusão e o fim da crença em tantas simpatias – ensinadas por tantos – todas fracassadas!

Morando na mesma casa, dormindo em quartos separados. Coisas de casal até podia acontecer. Mas nada que pudesse resultar em gravidez. Quem quer ser pai, mãe ou irmã de bicho? Lobisomem se alimenta de sangue fresco e quando está ‘virado’ não reconhece ninguém, não respeita viva alma. A família é excluída, amaldiçoada e ninguém a quer por perto.

A solidariedade sertaneja é reconhecida nacionalmente. Todos os parentes e amigos faziam questão de avisar ao casal do risco que corriam. Até já eram apontados na rua, quando iam à feira na cidade, como o casal que tinha uma série de seis filhas. O próximo, se homem, seria o cão coxo, o lobo sanguinário, louco sertão afora em noites de lua cheia!

Passou-se um ano e veio o carnaval. A festa da carne que prepara o homem para o jejum da quaresma! Com o tempo mudam os valores, os costumes e a fé. O camponês brincou, dançou, bebeu e amou. Afogado na volúpia assaz, fartou-se. Veio a saciedade e a esposa aquiescente... Um ano de atraso numa única noite!

Novembro, Dia de Finados, o filho que o camponês tanto quis, rebenta para o mundo na pior condição possível. Eu, euzinho, não poderia ter escolhido pior momento para vir ao mundo!

Calamidade. Um lobisomem bem ali, dentro de casa, chorando qual criança, querendo cuidados e tratamento de gente: cueiro, peito, leite, carinho... Tão bonitinho: loirinho, olhos verdes, alvinho... Parecia um anjinho. Tem razão a palavra de deus quando alerta os cristãos: falsos profetas, falsos cristãos. É preciso é ser vigilante. Lobo em pele de cordeiro!

Por isso que não me queriam dentro de casa. Já tinha quase treze anos, época da primeira transformação. Ninguém queria estar perto de mim. Até mesmo meu pai, muitas vezes, hesitava e me olhava torto esquisito... Minha mãe gritava por qualquer motivo e não suportava me ver estrangulando um pássaro, um gato, sapo, cobra... Não podia ver sangue. Eu adorava, enquanto!

Grutas de pedra tinham muitas. Uma mais bonita que a outra. A mais parecida com nada, escolhi para toca/moradia e arrumei os poucos pertences.

Arrumei amizade com Simbá, um cassaco que me ensinou a arte de quebrar pedra e ler folhetos de cordel. Fiz uma coleção de cordéis e rapidamente desvendei os segredos da recitação. Pagar, não paguei por que ganhava quase nada e Simbá não queria dinheiro. Queria obséquios sexuais.

Em quantas tais, visitava os meus e saciava a curiosidade até de vizinhos. Casos muitos, a preocupação era mais deles que minha. Apiedavam-se, choravam e investigavam:

- Já virou?

A forma como perguntavam, às vezes, me irritava. Sentia vontade louca de perguntar: ‘virou o que?’, brigar com todos e voltar no mesmo pé. Continha-me e respondia acovardado:

- Ainda não...

- Não sentiu nada na lua cheia?

- Não...

- E sexta feira 13?

- Nada...

- Nada?!

- Nada que eu lembre.

Entreolhavam-se e concluíam:

- Então é por isso!

Trazia comida e deixava nada de saudades, acho. Enchia o embornal, jogava no lombo da velha mula Robenata e rumava à pedreira. Passava na caverna-guarita de Simbá de onde vigiava, diuturnamente, o depósito de dinamites a serem usadas para explodir grandes pedras azuis, excelentes na feitura de brita. Agradava-lhe com manjares e pedia que lesse para mim seu cordel cujas palavras iniciais eram: Se ouvires uma mulher dizer que ama a um homem acredite: ela poder estar se referindo ao filho infante! E se tivesse muito calor, corríamos à Lagoa Santa para refrescar!

Quebrar pedra de sol a sol e de noite suportar a lascividade de Simbá era minha sina. E ainda assim era como viver no paraíso comparando com a humilhação imposta por minha mãe e irmãs. Ninguém quer ser parente de bicho que vem ao mundo para sofrer e fazer sofrer, cumprir um propósito que ninguém sabe direito qual é. Quem sabe o que vem fazer entre os homens uma fera que se alimenta de sangue fresco? E eu não escolhi, não fui atrás de reza forte, nem de me regalar em ninho de cavalo em encruzilhada! Foi o destino cruel que botou tais em minha vida.

De tanto pensar, a cabeça começava como a rodopiar. Laçava Robenata, nela montava em pelo e saía em disparada à frescura das águas da Lagoa Santa. E lá vinha Simbá, disfarçado de Negro D’Àgua a me fazer de ‘nega’. Deixe estar! Quando eu virar lobisomem de verdade, grande e forte, o colocarei debaixo do sovaco e o comerei pedacinho a pedacinho. O sangue beberei devagar e o cérebro comerei por derradeiro, de manjar, lá em cima da serra, em regozijo diante da lua cheia!

O sol abrasador incendiava pedras. Meu sangue ameaçava ferver e explodir as veias. Uma força avassaladora me arrastava para a encruzilhada e eu antevia já a cama fofinha, no escalvado, onde os cavalos e burros se espreguiçavam. Meu queixo virava focinho, meus dentes se agigantavam, um rabão a me rasgar a carne; falei e não era fala - era uivo, levantei e não consegui ficar de pé; somente em quatro patas. As unhas feito garfo do Coisa Ruim, impediam que conduzisse meu punhal. Pêlo muito grosso, orelhas de abano, sobrancelhas que se cruzavam... Um lobisomem de verdade. Avancei para o Caminho do Atalho, à pousada dos retirantes. Meia noite, lua cheia, sexta-feira 13.

Perdi a consciência quando escutei a voz de Simbá querendo relaxação. Quando acordei - com o gosto do sangue dele na boca - estava a dois passos de um paraíso proibido!