A Rosa Azul

Com esmero singular da natureza, o REINO DE EGÉIA foi delineado pelas margens do Mar Egeu e se encontra escoltado pelos Bálcãs. Em raros tempos de paz e calmaria, depois de cruentas e extensas guerras contra povos vizinhos, o décimo segundo rei egeno, FELIXIANO, trancou-se em seu nobre aposento e rogou em sussurros:

- Divinos senhores dos ares, terra, chamas e águas; vós que observam esse humilde servo por todo tempo, escutai minha prece! – ajoelhou-se ante a cama – Estou velho, fatigado e enfermo, e vos solicito auxílio para poder escolher meu substituto com prudência e sensatez.

O monarca adoecera há anos, quando era um jovem adulto, após sua última batalha montado em seu alvo garanhão. Em suas campanhas contra invasores e invadindo terras de tribos menores, Felixiano se atirava à promiscuidade e trazia novas concubinas ao seu palácio. Contudo, pelejando contra as tribos do Norte, ele se envolveu com uma jovem vassala do chefe oponente. Ela sofria de uma silenciosa e grave infecção na área genital, a qual desconhecia possuir, mas seus sintomas eram evidentes em homens; assim como no Rei de Egéia. Por isso, o soberano nunca se casou, utilizando-se apenas dos serviços sexuais de suas criadas. A doença também o deixara estéril, privando-o de ter um herdeiro.

As súplicas aos deuses não surtiram quaisquer efeitos, provocando enxaqueca e graves crises respiratórias no rei, desiludido quanto ao futuro do Reino após sua morte, que ele sentia se aproximar cada vez mais. Numa linda e ensolarada manhã de primavera, Felixiano enfim conseguiu sair de seu quarto depois de semanas debilitado e foi passear por seus jardins, acompanhado de um leal servo, GARSEU. Jovem, modesto e virtuoso, ele era o melhor amigo de Sua Majestade, que o acolhera após o assassinato de seus pais, decorrente de uma invasão inimiga quando ele ainda era criança.

- É uma esplêndida alvorada, Majestade! – sorriu o rapaz.

- Sim, Garseu, certamente é. – retribuiu o rei egeno.

A breve prosa ganhou ares sisudos quando o monarca lhe fez a seguinte pergunta:

- Meu jovem, aceitaria ser meu substituto?

- Majestade, seguramente é uma grande incumbência para mim...

- Não, Garseu, para ti nenhuma incumbência pode ser grande; tu é que és grande! – interrompeu-lhe Felixiano.

O assunto já havia sido abordado antes e foi findo com uma resposta firme e negativa do moço. Então, com sua vasta astúcia, o soberano apoiou-se nos ombros de Garseu e convidou-o a sentar-se com ele num banco de pedra a frente de uma fonte.

- Filho, ouça-me com atenção. Os deuses não traçam nosso destino ao acaso, eles têm um designo para nós e não podemos fugir dele. – pausou com uma longa e profunda respiração – Seus pais não morreram em vão; eu também não quero partir assim.

As palavras quase derramaram uma lágrima de um dos olhos do servo real. Ele respondeu:

- Senhor, tu és para mim as forças paterna e materna que os deuses retiraram de mim há muito tempo e não quero vê-lo sofrer por quaisquer motivos. Entretanto, devo dizer que não aceitarei essa tarefa sem a benção dos deuses e de meus pais; devo merecer esse dever.

O rei novamente respirou fundo e dispensou Garseu, que tinha sua presença solicitada noutro canto do palácio. Ele foi auxiliado por outro criado e voltou a seu aposento. Recostado numa poltrona, Felixiano adormeceu por alguns minutos e acordou triunfante; num sonho em quimera tivera uma idéia. Berrou como não fazia há tempos e prontamente foi atendido por um guarda, à porta de seu quarto:

- Soldado, traga-me o GENERAL PERCÉFOLES.

- Majestade, sua ordem é meu dever! – respondeu o solícito militar.

Ainda naquela manhã, o Chefe do Exército Egeno adentrou os portões do palácio real sobre seu cavalo.

- Tu enviaste um mensageiro com urgência, Majestade... O que desejas? – curvou-se o General.

- Percéfoles, eu sei que nossos antigos entreveros são uns percalços a nossos diálogos. Contudo, tu podes ver com seus próprios olhos que minha era já está expirando... Por tal causa, peço-lhe – não ordeno – que me sirvas de lenitivo ajudando-me a selar meu reinado com total sucesso. – declarou.

As sinceras palavras reais pouco enterneceram o ego do oficial, que mantinha um firme aborrecimento contra o rixento passado dos dois. Calado, ele ouviu os planos do monarca para eleger um substituto. Ao fim da conversa, Percéfoles manteve sua postura fingida, deixando a presença de Felixiano com os tradicionais dizeres: “Longa vida ao Rei de Egéia”. Quando eram avançadas as horas, o General reuniu-se em segredo com certos comerciantes que compartilhavam do ódio contra o rei. Aversão esta que se originara devido às amplas justiça e retidão de seu governo, que o fez erradicar o monopólio e o pagamento de propina que os grandes mercadores exigiam dos pequenos proprietários de terra.

- O velho fará uma competição para escolher o seu sucessor e muitos varões egenos sadios participarão do desafio. Ela consiste numa travessia pelo Pântano de Hasóres, enfrentamento contra feras e depois resistir a uma íngreme subida pela Colina de Golã. Do cume, os aspirantes deverão trazer, segundo ele, a maior preciosidade do Reino – disse Percéfoles.

- Todos nós sabemos que se trata da “rosa azul”, General. – arrematou um dos presentes.

A tal rosa, na verdade, era uma planta muito maior, azulada e raríssima na região. Usada na culinária e na perfumaria, ela também continha agouros de paixão e poder a quem conseguisse colhê-la. Logo, os mercadores levantaram a hipótese de matar Felixiano antes do evento, mas o chefe militar barrou o intento:

- Senhores, uma medida drástica arruinaria nossos planos; assassiná-lo é sancionar uma imensa revolta popular. O propósito é enviarmos um forte concorrente, usar de artimanhas, se necessário, e arrematar o Trono! – concluiu.

Um dos comerciantes levantou seu forte e sagaz filho para o intento; foi aprovado com unanimidade.

Na famigerada ocasião, ao alvorecer, centenas de varões se reuniram numa campina nos arredores do palácio real. Num palanque, escoltado por seus guardas, o rei levantou-se de seu trono e declarou:

- Homens de Egéia, eis o grande dia! Hoje, os deuses enviarão meu sucessor... Vós deveis trazer diante dos meus olhos o mais raro, belo e valioso tesouro do Reino! Empunhai vossas lâminas, encham vossas almas de valentia e corram ao vosso destino!

A fala suprema precedeu a debandada imediata dos competidores ao pântano. Da sacada palaciana, ainda relutante consigo próprio, Garseu a tudo observava; irrequieto, foi movido por um sussurro doce e poderoso da bondosa cozinheira: “Vai, querido, ali está teu porvir”. O moço beijou-a suavemente na testa e armou-se na agilidade em que batia seu prodigioso coração. Atravessou a campina já vaga e rumou ao desafio. Muitos sucumbiram aos lamaçais de Hasóres, que os detinha impiedosamente. Outros, porém, profundos conhecedores da região, optaram por contornar o pântano em uma longa trilha. Não afundaram na lama, mas perderam um precioso tempo.

Garseu foi deveras sábio: amarrou ripas de madeira com cipós, estendeu-as sobre o perigoso brejo e atravessou com admirável facilidade. Á frente, grandes lobos, raposas e ursos afugentavam os desafiantes, que escolhiam a vida ao invés da coroa. O servo real mantinha sua astúcia: com o restante dos cipós, ele amarrou no punho uma colméia feroz que apanhara de uma árvore pelo caminho; nenhum predador ousava enfrentar a fúria das abelhas, que não pouparam nem os braços do rapaz.

Escalando Golã, apenas sete sobraram, enquanto Garseu se aproximava dos pés da colina. O ar rarefeito agravado por uma incômoda e proposital queimada, derrubava um a um os extenuados varões. Somente JARMOÃO, o escolhido dos partidários de Percéfoles, permanecia. Foi então que, já se arrastando, ele avistou a rosa azul. Num impulso oriundo das derradeiras forças, Jarmoão tomou a planta da terra e bradou em vitória.

Noutra ponta de Golã, enquanto Garseu resistia com bravura, um grito pavoroso rasgou o lugar. Uma menina correu de encontro ao moço, dizendo:

- Socorre-me, senhor! Um urso enorme me persegue!

O jovem levantou-se, abraçou a criança e indagou sobre a fera; não foi necessária a resposta. Dentre as árvores, um voraz urso pardo apareceu e atacou-os. Com coragem inimaginável, Garseu fincou sua espada no peito do animal com velocidade ímpar; estavam salvos. Ele tomou-a no colo e seguiram de volta ao palácio, deixando para trás o tão próximo fim da travessia. Quando chegaram, viram Jarmoão empunhando a rosa e berrando: “Eu sou o rei”.

Uma atmosfera lúgubre pairou sobre a campina; o General e seu bando celebravam o suposto triunfo, e todos os outros lamentavam pelo amigo do rei. Foi então que Felixiano pôs-se em pé com singular serenidade. Lentamente, retirou a reluzente coroa dourada, ergue-a aos céus e proclamou:

- Vinde a mim, ó jovem reto e leal!

Jarmoão correu e esticou os braços diante do palanque. Com um sorriso sórdido, ele atingiu o firme olhar de Garseu.

- Não, indigno filho da corja de Percéfoles! Eu nunca mencionei o nome desta planta, pois, a Misericórdia é o mais raro, belo e valioso tesouro de Egéia... – todo egeno presente abismou-se – Vinde, Garseu, ao teu real destino!

- Misericórdia, Misericórdia! Louco tu estás, velho! Louco! – enfureceu-se o General junto aos seus comparsas e a seu filho, que de joelhos pranteava.

Num gesto simples, o soberano ordenou a imediata prisão da quadrilha. Em seguida, seu amigo aproximou-se com a garota junto ao peito, subiu no palanque e ouviu:

- Sabia que tu não irias fugir, meu amigo. A Misericórdia que sempre encontrei em tua alma é a grande dádiva divina que recebeste e, por ela, tu tens total mérito de seguir com minha dinastia.

Carregados de emoção, os dizeres de Felixiano se completaram na coroação de Garseu ao trono egeno. E o desejo dos céus se cumpriu...

Meses depois, noutra manhã de primavera, o Rei Garseu despertou antes da alvorada e foi até o aposento de seu benfeitor. Radiante, o antigo mandatário recebeu-o sentado em sua cama.

- Pronto para os jogos anuais de Egéia, Majestade? – sorriu o ancião.

- Majestade, senhor?! – gargalhou, Garseu – Mas, sim, pronto estou, Eterno Soberano!

Uma brisa inesperadamente fria adentrou o quarto. O novo rei levantou-se para fechar a janela; quando tornou a sentar-se próximo aos pés de seu antecessor, deixou escorrer por sua face duas teimosas lágrimas cristalinas: Felixiano estava morto.

“Sozinho agora estou”, pensou ele no momento. Olhou por todo quarto com vistas vagas e melancólicas – olhou novamente – deparou-se com um rosa azul enfiada sobre o dossel; sussurrou:

- Descanse, Majestade. Descanse, amigo velho.

FIM

Rafael Otávio Modolo
Enviado por Rafael Otávio Modolo em 15/03/2008
Código do texto: T902767