Jó
O sujeito era bom. Bom mesmo, no sentido maniqueísta da palavra. Era a personificação do bem: honesto, trabalhador, fiel à esposa, bom pai, participativo, justo e carinhoso. Era um católico fervoroso, piedoso e submisso, freqüentando regularmente a igreja. Na doutrina cristã, criou os filhos, tornando-os crianças de caráter e fé. Tinha o hábito de fazer caridade. Semanalmente, dedicava quatro horas de seu tempo ao atendimento voluntário numa clínica para pobres, na periferia. Fazia doações em dinheiro, roupas, brinquedos, comida.
E era feliz. A profissão nobre, medicina, rendia-lhe uma boa renda mensal. A esposa, advogada, contribuía para a manutenção de um considerável patrimônio que contava com a casa onde moravam, apartamentos, casa na praia, carros. Os meninos estudavam em boas escolas particulares e faziam vários cursos extra-escolares. A família bonita e muito unida, era a sua maior alegria. Sempre que podia, abandonava tudo o mais e entregava-se a momentos de prazer com eles. Juntos viajaram todo o país, já haviam viajado até a Europa, Disneylândia. Quando não, simplesmente, permaneciam na casa confortável, aproveitando o sol na piscina, praticando esportes na quadra polivalente ou assistindo a bons filmes na sala de TV. Dono de um excelente humor e disposição, era extremamente carismático, cultivando grandes amizades em todos os ambientes que freqüentava. Quando mais jovem, praticara tênis profissionalmente e cultivava o hábito de convidar os amigos para a realização de pequenos campeonatos, dos quais era quase sempre, o vencedor.
Assim era Antenor. Doutor Antenor. Sem motivos para queixas, ia conduzindo a sua vida da melhor forma possível, aprendendo com cada pequeno percalço e modificando, para melhor, o destino das pessoas que cruzavam seu caminho.
Pobre homem. Não sabia que o seu destino seria motivo de uma pequena aposta entre os seres supremos da dicotomia de sua fé. Numa outra dimensão, acima da nossa pequena compreensão de universo, Deus e o Diabo conversavam, quase amigavelmente, após uma pequena partida de baralho, em que o Bem venceu de novo. Lúcifer procurava disfarçar a ira, fazendo comentários jocosos à sorte do Todo Poderoso, acusando-o, ironicamente, de utilizar-se de prerrogativas divinas para controlar as cartas. Sorridente, o Senhor o observava tranqüilo, enquanto bebia, vagarosamente, doce e suave néctar num belo cálice translúcido. Percebendo que, por mais que o provocasse, seu adversário, simplesmente, mantinha aquela postura eternamente vitoriosa que tanto o irritava, Satã começava a perder a sutileza de seus gestos e já bradava sibilante, pelo direito a uma revanche. Resignado, o vencedor deitou a taça, delicadamente, sobre a pequena mesinha lateral, e pegou o jogo, recomeçando a misturar as cartas, embaralhando-as com grande técnica e velocidade. Dando uma gargalhada estridente, o brilho maléfico nos olhos amarelos, o Demônio bateu violentamente nas mãos do outro, espalhando as cartas por todo o confortável ambiente. “Não!”, gritou furioso. “Nada de cartas! Eu escolho as armas desta vez!”. Surpreso com a atitude do eterno rival, o Poderoso levantou-se e começou a recolher as cartas. “Está bem! Vamos ver o que você pretende...”
Ao ouvir tais palavras, o monstro cruel bateu palmas e saltitou satisfeito como uma criança após uma travessura bem sucedida. Depois, com um largo gesto, fez aparecer, à sua frente, uma grande pedra vermelha e brilhante, que exalava um enjoativo cheiro ácido e adocicado, semelhante ao cheiro das frutas estragadas, das cozinhas sempre usadas e nunca limpas, das paredes gordurosas e escorridas. A uma ordem sua, o objeto fétido começava a brilhar e brilhar, cada vez mais intensamente até que a sua luz sangrenta dominava toda uma parede do claro ambiente, suavemente decorado. Nessa projeção, via-se ninguém menos que o afortunado Doutor Antenor em sua próspera e caridosa vida na terra. Antevendo o desafio que se aproximava, Deus abanou lentamente a cabeça... Já imaginava o que, desejava o Anjo caído. Sorriu, impaciente: “De novo? Jó ainda não te ensinou a lição?” O outro murmurou, com um muxoxo desinteressado: “Ora, Senhor... Naquela época, manter a fé era muito mais fácil... Vejamos agora, o mundo todo mudado, o capitalismo, o consumismo desenfreado... tuas crianças se perdem muito mais facilmente agora... e por muito menos, sou capaz de apostar.” Não... não era isso que Deus queria. Deixá-los novamente ao sabor dos caprichos do Demônio... Mas o outro sabia como instá-lo e começou a denegrir a imagem do homem moderno. Criticava tudo, todas as pequenas fraquezas humanas, os pecados, os crimes, o individualismo, a falta de fé... E tanto fez que o outro acabou concordando. Definiram as regras: Ninguém, na família, poderia ser morto nem ter sua vontade, diretamente, alterada. A prova duraria seis meses, no máximo e, se ao final, Antenor ainda mantivesse sua fé, recuperaria tudo o que fosse perdido. Caso contrário, ambos o deixariam em paz, vivendo sua vida infeliz até o momento do julgamento final, quando sua alma seria entregue ao tormento eterno. Sua família, independente de seu sucesso ou desgraça, não deveria ser penalizada.
Esse foi o ponto de partida para o inferno pessoal do nosso herói. Seu filho mais velho adoeceu e, mesmo ajudado pelos amigos médicos, não conseguiam descobrir o problema. Doutor Antenor acabou por despender parte de sua fortuna numa viagem aos Estados Unidos, onde havia um especialista no assunto, que finalmente curou o garoto. Durante a viagem, foi informado de que ladrões haviam invadido a casa e roubado vários objetos de valor inestimável, incluindo obras de arte, aparelhos eletrônicos e roupas. Ao voltarem para o Brasil, outra desgraça: a menina, uma linda garotinha de seis anos, foi seqüestrada na saída da escola. Temeroso em envolver a polícia, acabou por pagar o vultoso resgate. Sua fortuna começava a se dissipar rapidamente. Com a seqüência de infortúnios, a família uniu-se ainda mais e, cercados pelos amigos mais próximos, oravam pela proteção divina. Porém, era o Diabo quem ouvia as preces e mandava mais desgraças: um incêndio destruiu dois apartamentos do mesmo prédio. Depois, quando foi tentar o ressarcimento na seguradora, descobriu que ela havia falido, deixando-o com todo o seu prejuízo. Inclusive o da casa, que desabou sobre um inesperado lençol de água que subitamente, carcoeu-lhe as estruturas.
A tensão dos dias ia se acumulando e Antenor já não dormia mais. Cansado e deprimido, acabou cometendo alguns erros médicos, que fizeram a direção do hospital votar por sua demissão. Mas, o tiro de misericórdia se deu quando uma das enfermeiras o acusou de assédio sexual. Desmoralizado profissionalmente e agora, eticamente, começou a perder os amigos. Depois, quando outras enfermeiras e até algumas pacientes se juntaram ao coro da primeira acusando-o de abusos, atentados ao pudor, sedução, aliciamento de menores, até Helena, a confiante esposa, confidente e companheira decidiu deixá-lo, para o bem das crianças. Juntou o que restava dos bens da família, pegou os filhos e voltou a morar com os pais, numa confortável mansão a beira de um lago tranqüilo. Não conseguia mais acreditar na inocência do marido e não podia mais suportar a vida ao lado de um homem como ele.
Obviamente, cada acontecimento tinha uma conseqüência na vida do médico. Primeiro, interrompeu as doações. Depois, afastado do hospital, preferiu não continuar atendendo na clínica de caridade. Passou a isolar-se dos amigos, depois da família. De seus bens, restava apenas um carro e a pequena casa de praia. Mudou-se para lá, numa segunda feira e, sozinho e contemplativo, pedia a proteção dos céus. Passava os dias de joelhos, em penitência e oração até que o cansaço o fizesse levantar-se para um passeio pela praia deserta. Mas, por mais que fizesse, simplesmente não encontrava paz. Nunca percebera que haviam tantos insetos, ratos, morcegos e o que mais fosse de nefasto naquele lugar onde, durante anos, passara as férias com a família. E que frio! Parecia que cada tijolo da construção possuía uma fresta, uma pequena cavidade, por onde passava um vento gelado e sonoro. Sentia saudade de Helena e dos meninos, mas ao mesmo tempo, uma mágoa crescente, por ela não ter confiado nele, não estar ao seu lado nesta hora de dor. E esta mágoa foi crescendo ao som do vento, com o ruído dos ratos e das baratas, o zumbido dos mosquitos, com o frio. E, a cada dia, a cada nova oração, parecia mais indignado com tudo o que passara. E, de repente, teve a idéia... Tudo lhe foi tirado de forma inescrupulosa por bandidos e fatalidades. Não poderia abaixar a cabeça e aceitar tudo daquele modo. Deus que o perdoasse, mas ele tinha que tomar alguma atitude...
E, então, começou a sua viagem rumo à perdição. Sentado em frente à mesa, passava horas imaginando um assalto, um desfalque, qualquer coisa que lhe rendesse dinheiro o bastante para sair do país... Pegaria a esposa e as crianças, mesmo que precisasse forçá-los e eles iriam com ele. Lá, longe de tudo e de todos, Helena acreditaria em sua inocência. E eles poderiam voltar a ser uma família novamente.
Lembrou-se de um amigo, engenheiro, que havia se especializado na construção de cofres. Procurou-o com uma desculpa esfarrapada qualquer e, mesmo sendo recebido com alguma reserva, conseguiu reconquistar-lhe parte da confiança. E após algumas visitas, e muitas perguntas dissimuladas, ele juntou algumas informações importantes sobre os sistemas de segurança adotados pelo banco da rua XI.
Depois, passou a visitar o banco, observando os horários de entrada e sangria de dinheiro, os empregados, argutamente procurando identificar algum que pudesse ser-lhe útil. Sentava-se na praça em frente à agência com uma sacola de milho e, fingindo alimentar os pássaros, observava as lojas vizinhas, as possíveis rotas de fuga.
Numa dessas ocasiões, quando ia sentar-se para mais uma de suas vigílias, observou que já havia uma senhora idosa sentada no banco. Imediatamente a reconheceu. Era Dona Dália, uma de suas pacientes carentes, do hospital onde prestava serviços voluntários. Pensou em procurar outro ponto de observação, mas lembrou-se de que ela sofria de Alzheimer e, muito provavelmente, não iria sequer notá-lo ali. Quando de suas últimas consultas, ela mal se lembrava do próprio nome. Sentou-se ao seu lado e, de fato, ela não esboçou qualquer reação. Ele pegou sua sacola de milho e começou a espalhar, os grãos, quando ouviu um ínfimo soluço. Olhou para ela e ela chorava, silenciosamente, as lágrimas escorrendo-lhe pelo rosto, molhando já a camiseta amarrotada. Seu coração, apesar de endurecido pelos já quase seis meses de provações e desgraças, aqueceu-se em ternura, por aquela pobre alma sofredora e ele resolveu perguntar-lhe:
- A senhora está bem? Sente alguma coisa?
Ela olhou pra ele com doçura e respondeu:
- Não, doutor... Eu estou bem. Apenas saudades de casa. Me perdi, não sei onde fica. Mas havia amor lá. Aqui não há.
A palavra “doutor” o fez estremecer. Será que ela se lembrava dele? Não seria possível. A doença já estava muito adiantada para que ela pudesse lembrar-se. Mas ela continuou seu choro, baixinho. E, apiedando-se da velha senhora, ele esqueceu-se de seus próprios infortúnios e decidiu ajudá-la. Com um telefonema, conseguiu seu endereço no hospital. E, como não era muito longe dali, levou-a até lá. Ela seguia ao seu lado calada e distante, inexpressiva em seu mundo vazio de lembranças. Ao parar em frente à casa dela, percebendo que ela não demonstrava qualquer reação, ele desembarcou, abriu-lhe a porta do carro e ajudou-a a descer. Ela então escancarou um enorme sorriso sem dentes e o abraçou efusiva e feliz:
- Obrigada, doutor Antenor! Obrigada! Eu sabia que o senhor viria me ajudar.
Ao ouvir sua voz, as suas duas filhas correram à porta para recebê-la e, ao vê-lo, também o reconheceram imediatamente e agradeceram muito por ter conseguido trazer a velhinha de volta. Convidaram-no a entrar. Acharam-no muito magro e o fizeram comer um bolo de fubá com café. Por um instante, Antenor sentiu-se acolhido. Mas não podia entender. Será que elas não sabiam das acusações que pesavam sobre ele? Não era possível! Já havia saído em todos os jornais. Dona Dália o olhava agora, sorrindo e perguntou, baixinho, apontando para as duas filhas:
- Doutor, quem são essas moças?
Ele sorriu. Lembrou-se com perfeição da última consulta. Ela sempre a lhe perguntar quem eram as moças. Depois, perguntava às moças quem era ele. Mas agora não. Ela lhe sorriu de novo e disse:
- Eu sei que tudo o que dizem do senhor é mentira. Eu sei que o senhor é bom. O senhor é um anjo que Deus pôs em minha vida.
Em seguida ela voltou ao seu estado de aparente catatonia. As suas filhas, também já bem idosas, contaram-lhe que há alguns meses ela estava assim. Ou chorando, ou simplesmente olhando para nada. E só regressava do mundo dos mortos para bradar contra a televisão ou o rádio cada vez que ouvia alguma das muitas notícias degradantes sobre ele. Foi num desses retornos que ela havia saído há uma semana pela porta sem que elas percebessem. Elas já haviam procurado por todo o lado, em hospitais, na polícia, com amigos. Estavam já sem esperanças de encontrá-la com vida.
Antenor saiu de lá sentindo-se confuso e embaraçado. A casa era pobre, muito pobre, mas as três mulheres lá dentro eram donas de espírito tão rico e forte que ele sentiu-se envergonhado de sua derrocada moral. E, sem preocupar-se com os transeuntes caiu de joelhos no meio da calçada, rezando e chorando, implorando perdão a Deus.
De repente uma mão suave tocou-lhe o ombro e uma voz tão familiar e querida falou-lhe com candura:
- O que houve, meu bem? Está sentindo-se mal?
Ele abriu os olhos para encontrar-se ajoelhado ao lado de sua cama confortável, e olhando para ele com olhos de amorosa preocupação, sua querida Helena. Sonolenta e descabelada Helena. Amada Helena. Levantou-se num salto e jogou-se sobre ela, beijando-a com paixão e saudade. Não podia acreditar ter sido tudo um sonho. Foram seis meses de total inferno e agora sua Helena, sua cama, seu quarto.
No além, Lúcifer sibilava furioso, sob o sorriso irônico do Criador:
- Você trapaceou! Você roubou vergonhosamente!
- Não, meu caro. Deixei-o aos seus cuidados durante todos esses seis meses. E ele realmente chegou muito perto de ti. Mas basta um pequeno lampejo de amor para que um coração que é do bem retorne a mim.
- Isso não é justo... Você a colocou na praça.
Deus sorriu encabulado:
- Ele precisava do tal lampejo. Mas ela já o amava muito antes, portanto, não exerci qualquer influência sobre a sua vontade. Eu não quebrei nenhuma de nossas regras.
- Quebrou, sim! Eu exijo uma revanche!
- Deixe o pobre homem em paz.
- Pode ser outro.
- Ora, vamos... Por favor! Você nunca aprenderá a perder?
- Qualquer pessoa. Eu deixo você escolher...
- Não, criatura! Pare com isso!
Lúcifer sibila:
- Eu odeio quando você me chama assim!
Deus sorri, complacente:
- Desculpe... é força do hábito. Certo, certo... Vamos, então, pensar nisso. Qual pessoa você sugere?
- Que tal esta pessoa que acaba de ler esta estória?