O mago e a cigana  - giselle sato



O preço da liberdade era a morte. 
E o da traição, o sofrimento eterno.
Duas almas se torturavam. 
Fluxo e Refluxo .
Parte da mesma maçã. 
Não podem ser felizes juntos porque o mal impregnou de tal maneira que é impossível perdoar.



I- Um grande Senhor chegou à cidade ,trouxe com ele tormento e desgraças. 




Tempos difíceis, as fogueira queimam em agonia lenta. O cheiro forte dos inocentes, tomou conta de toda Europa.
Só há espaço para a dor e os excluídos, fogem em desespero. 

Desde pequena ajudava a avó a pegar ervas, preparar poções, fazer o parto das mulheres da aldeia vizinha. 
Só conheceu o carinho da terra a quem carinhosamente chamava de Mãe e da avó Catarina. 
Vivia pelos cantos esquecida, uma sombra que as outras crianças evitam e chamam de bruxa. Aprendeu bem rápido a me esgueirar pelas sombras.

A mãe morreu de parto, a avó, a despeito de toda experiência, não conseguiu salva-la. Recebeu o nome  de Sarah, em homenagem à padroeira e mãe dos ciganos. A esperança de ter um destino melhor nunca abandonou as orações da avó.


Havia um caminho que só a luz da lua cheia desvendava. No meio da floresta fechada, levava à um canteiro de ervas muito antigo, que as primeiras mulheres da minha família cultivaram. 

A Tradição havia iniciado com minha tataravó que passou à geração seguinte até que só sobrou minha avó e eu. 
Era um clã de mulheres fadadas à má sorte no amor, nunca houve um casamento na família, apenas crianças paridas às pressas de pais desconhecidos.

A mãe muito cedo partiu deste mundo, diziam que quando dançava, fazia o tempo parar. 
Contam que quando Esmeralda tocava as castanholas, chamava os duendes da alegria. A fogueira ardia o fogo, as salamandras percorriam o círculo, pequeninas e flamejantes. 

Quando estou com a tribo, ouço o lamento do violino e imagino os pés da dançarina batendo forte na terra, e a magia acontecendo. 
Sinto o perfume de jasmim  e as mais antigas contam histórias sobre o amor da mãe pela dança.

O orgulho que possuía de ser uma cigana, do quanto ficou feliz quando soube que teria uma menina. E é claro, quando foi obrigada a deixar seu povo por ter engravidado de um não cigano.
Esta foi a dor maior de minha mãe.  Até o último suspiro, rezou as preces na lingua mãe, cortando o coração de minha avó em mil pedaços.


II- O caminho, nobre senhor

Neste caminho encontrou pela primeira vez este homem arrogante e poderoso, todo de negro, cavalo e cavalheiro embotavam a visão num borrado disforme.

 Ele parou ao meu lado, o garanhão batia com força os cascos , irritado com o fim do galope. Fiquei parada olhando aquela figura expectral, hipnotizada, muda . 
O luar abriu um clarão imenso e tudo se iluminou na ravina. 
O mundo pareceu parar . O ar não trazia o frio da noite, os bichos estranhamente quietos:

- Senhor? posso passar? preciso passar. Falei baixinho.

- Não estou impedindo seu caminho, estou? A voz era dura, cortante.

Avançou pela estradinha conhecida deixando-o para trás , quando estava a uma boa distância correu até o herbanário das ancestrais.
O refúgio, em meio ao manjericão, manjerona, alecrim , malva e tantas outras ervas. Sentiu-se aninhada e  segura.

Ele continuou  parado longo tempo. Pensava naquele rostinho petulante, tantos anos havia procurado sua amada e agora finalmente ela estava ao alcance das suas mãos.
Havia um pacto que não poderia ser quebrado, ela só seguiria ao seu lado por vontade própria. 

Mil vidas o separavam.  Sua alma imortal compreendia a solidão e ansiava pelo retorno da mulher que um dia havia desprezado o dom da eternidade para abraçar a luz.. 

Maldita mulher que o atormentava noite após noite. Razão das suas buscas por todo o mundo e até fora do alcance do corpo físico. 
Estava feliz com o sucesso das informações retiradas a duras penas de um padre talentoso em suas visões.
 Lembrando o moribundo nas masmorras da sua prisão particular deu impulso à sua montaria, precisava terminar o trabalho.

Agora ele era um cardeal da Santa Inquisição. Respeitado, não precisava esconder suas aptidões para terríveis castigos, nem ocultar o prazer em imaginar todas as formas possíveis de tortura.
 

Era temido e odiado. O poder da Igreja em vermelho carmim. 
Os tempos gloriosos o deixavam inspirado. Tinha ainda muitos a perseguir e infligir horrores . 

A menina era muito pequena, mandaria que a vigiassem com muito cuidado, nada poderia acontecer a sua adorada, nada, até que ela estivesse pronta para ele.

Sarah não sabia se aquele homem havia sido real ou não, estava cansada demais. 
Nem sentiu quando adormeceu e sonhou.... 


III- O Mago e a Feiticeira


Em uma terra árida ela caminhava, não como uma menina, mas uma mulher.
 Muito alta e forte, usava uma cota de malha no peito sobre túnica longa e branca . Tinha longos cabelos vermelhos, coberto por diáfano véu . 

Altiva. A guerreira parou no alto de monte de areia fininha , a paisagem árida e o sol a pino. Esperava ansiosa.

O grande corcel negro descia as dunas de areia branquíssimas , ágil seu cavalheiro escondia o rosto em panos e turbantes negros, toda a vestimenta da mesma cor, até mesmo os adornos da sela do animal . 

Ele pulou ainda em movimento e correu para a mulher, se abraçaram com carinho , um abraço interminável. 

Ela tirou os panos que escondiam um rosto marcado por uma grande cicatriz e o tocou com carinho. De mãos dadas caminharam até um pequeno poço perdido no deserto, haviam apenas três palmeiras . O cavalo branco já havia sido servido. O garanhão bebeu com vontade o líquido precioso.

O casal agora discutia e ele gesticulava muito, ela apenas o olhava, um olhar cheio de dor, ele estava transtornado. 

Não conseguia entender o que falavam mas pareciam decididos, cada qual na sua posição. A mulher deu as costas ao cavalheiro negro em direção à sua montaria.

 
Furioso ele também montou e começou a persegui-la , o corcel negro alcançou com facilidade e ele num golpe certeiro atingiu o cavalo branco na jugular, o animal caiu quase que imediatamente.

A mulher pulou antes que a queda a matasse também. Muitas quedas a haviam forjado e ela era excelente amazona. Esperava agora o pior. . 
Ele apeou , a fúria distorcia os traços, estava transtornado.

Colocou a mão na bainha da espada mas não conseguiu ir adiante, pela primeira vez sentia-se vencido. 

Aquela mulher havia minado suas forças. Parados de frente um para o outro se enfrentando silenciosamente, ele abriu as vestes revelando duas pequenas adagas de prata e ouro cruzadas juntas em sua cinta.


Ela também usava as mesmas adagas na faixa do vestido. Com um gesto brusco ela jogou ao solo a armadura muito leve que a eram sua única proteção. Em seguida as duas adagas caíram aos pés do cavalheiro.

Ele mal conseguia respirar. As adagas gêmeas simbolizavam a união de dois corações, prata e ouro .
Haviam sido concebidas em rituais perpétuos de amor incondicional. A cota havia sido forjada pelos melhores artesãos e protegida com encantos que ele conjurou para que nada a ferisse. 
Ela sabia que ele era melhor e mais rápido no manejo da espada que qualquer guerreiro:-Não quero partilhar o caminho da perdição. 

-Não pode quebrar nossos laços, pertencemos um ao outro. Não admito este comportamento, por muito menos já tirei a vida de muitos.

-Ameaças! Não pertenço a ninguém, muito menos ao tirando que subjulga o povo em desmedida ganância. Sou livre, não sou um espólio de guerra, não tenho dono.

 A pequena adaga atravessou o coração da mulher tão rápido que ela mal se deu conta que a vida se esvaía: -Eu te amo - Sussurrou.

Aquelas palavras acabaram com o que restava de suas forças. Ajoelhado com o corpo sem vida nos braços, chorou arrependido. Sentiu que havia sido guiado por forças inimigas, ela era um dos pilares que o sustentavam.

Não sentiu o forte odor de jasmim anunciando a visão da Deusa. A mãe vinha reclamar a filha,  ele havia matado uma sacerdotisa sagrada do templo de Ísis. 

Mulheres diáfanas rodeavam , formando círculos, entoando cântigos chorosos. Sabia que eram miragens mas nada podia fazer para dissipa-las.

 Eram pitonisas, sábias, videntes, mães a serviço da Deusa . Estava condenado e em alguns dias saberia seu castigo. Não havia como fugir.

Sarah sentiu uma dor no peito na altura onde a mulher havia sido cortada. Acordou assustada,  precisava colher as ervas antes dos primeiros raios da manhã.  Distraída com a tarefa, não pensou no estranho pesadelo.

A avó esperava as ervas, os animais precisavam de trato e ela tinha muitos afazeres. Corria pelo campo aproveitando o frescor do amanhecer e os primeiros raios de sol. Esqueceu o sonho antes de chegar à cabana onde viviam. 

A sombra da mãe de Sarah, passou levemente, pousou a mão da fronte da anciã, quase um carinho suave:-Precisa preparar Sarah, ele a encontrou, proteja minha menina...- A parteira deu um salto da cama e correu pela estradinha. 
Avistou a menina e respirou aliviada, sabia que este dia chegaria, só não imaginou que viesse tão rápido.

Abraçou a neta com força:- Vovó está amassando as ervas, olhe só...

- Tudo bem, minha querida. Fiquei preocupada, não quero que passe a noite na floresta. Os tempos mudaram Sarah. Há muitos perigos e não podemos facilitar.

- Está bem. Podemos comer agora? Estou com saudades dos seus bolinhos de mel e passas.

Caminharam juntinhas, a velha Catarina e a neta tinham uma longa jornada pela frente. Haveria muito trabalho,  precisavam iniciar vida nova em alguma terra distante.
 
Algum lugar onde nunca pudessem ser encontradas. O oceano surgiu na visão da cigana e ela soube que havia encontrado a solução. 

Terras distantes e quase desconhecidas. A esperança, chamava-se Brasil, um nome bonito e sonoro. Sarah pensava em sol, pássaros coloridos e flores multicoloridas. Em perfeita sintonia.
Giselle Sato
Enviado por Giselle Sato em 09/03/2008
Reeditado em 24/08/2008
Código do texto: T893785
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