Aqueles que devem morrer (Cenas10 e 11)

Cena 10. De novo, o autor.

Tem alguma coisa acontecendo por aqui? O fartum e o bodum dos cabelos encaracolados e das muitas horas de paz dos corpos cansados e estiolados sobre os colchonetes do chão da sala. O motor dos ventiladores está quente. E a cidade dorme entre a serra e o mar. Os guardas noturnos daquele tempo, ousavam soprar os seus apitos que cortavam a noite como os anunciadores medievais do nada de novo.

Muito longe, no Vietnã, as bombas estavam explodindo. O napalm queimava as florestas. O agente laranja desfolhava as arvores. Queriam ver a terra nua, deixando animais e guerrilheiros expostos, sem ter como se entocar. Aqueles combatentes que carregavam o seu arroz miraculoso em pequenas trouxas feitas de lenço e usavam sandálias de palha, enfrentando a mais poderosa máquina de guerra que já existiu no planeta. O Che queria criar milhares de vietnãs, começando pela América Latina; era a forma de ajudar os vietnamitas. Muitas frentes de batalha em que o homem comum, o pé de sandália, o pé de chinelo e o pé descalço poderiam participar.

A guerra é sempre uma coisa ruim, principalmente quando se luta por coisas abstratas. É mais fácil defender um país invadido, como se viu na União Soviética e no Vietnã. Guerras de libertação nacional. Libertar alguma coisa que não existe ainda? Um sentimento de nação, que está acima das pessoas. As Américas vilipendiadas não chegaram a ter esse sentimento de nação tão desenvolvido. Seus povos não são verdadeiramente povos. São ajuntamentos de raças, de etnias diversas aculturadas, restos da escravidão e da exploração. Restos de indígenas e de povos europeus tocados pela violência. As nações americanas ainda estão por serem criadas. Os povos americanos ainda estão se criando. Sairá daqui a verdadeira humanidade?

Cena 11. 1967. Aldo, o grande líder.

Aldo Correia Garrido não estava para brincadeiras. Era positivo e assertivo. Não podia suportar a lengalenga discursiva de seus companheiros. Nestes momentos procurava alguma coisa para fazer, numa demonstração explícita de que fazer era mais importante do que falar interminavelmente sobre o que fazer. Pensava que nada poderia resistir a ação de um grupo de homens decididos. Não sabia que há homens decididos em todos os lados. E que muitas vezes as coisas não acontecem por falta absoluta de condições. Aldo Correia Garrido nada queria para si. Era isento de egoísmo. Lutaria pela vaga e desfocada idéia de justiça e de felicidade geral. Sua cabeça estava povoada por figuras de feitores, senhores de engenho, escravos sendo supliciados no tronco e pela estampa da escrava Anastácia, impedida de falar, com sua máscara de folha-de-flandres.

Para diferenciar-se dos intelectuais banhudos e de óculos, Aldo passava o tempo fazendo ginástica, longas sessões de flexões, alongamentos, polichinelos e exercícios com pesos, seguindo um manual da Força Aérea Canadense amassado pelo uso. De madrugada, com o dia amanhecendo, corria na praia e chegava a pegar algumas ondas no Arpoador. Depois via o sol nascer sentado nas pedras. O exercício intenso, contudo, não diluía a sua gana de mudar o mundo. Quando a praia começava a receber os primeiros banhistas, funcionários públicos aposentados, coronéis reformados, domesticas com carrinhos de bebes ou cães pela coleira, se preparava para voltar para casa, ainda que a rigor pudesse passar o dia inteiro na praia.

Estava desempregado. Suas atividades politico-estudantis passadas e uma ficha suja e cheia de rabiscos na Delegacia da Ordem Política e Social, o DOPS, garantia as suas horas de ócio forçado e de falta de dinheiro. Quando conseguia algum emprego, a firma era invariavelmente visitada por um agente, e Aldo despedido no dia seguinte. A ditadura sabia tratar os seus inimigos. Para os amigos, tudo. Para os inimigos, a lei da dureza.

Por mais seguro e autoconfiante que seja, alguém que está desempregado, depois de algum tempo, começa a sentir-se um pouco inferior como se fosse um ser humano de segunda, alguém que pode ser descartado sem que faça falta. De inicio a revolta e o sentimento de injustiça. Depois o conformismo e a racionalização. Dentro de qualquer um, uma partezinha negativa justifica a situação com um sentimento de desqualificação, de menos valia, de inaptidão, de inferioridade, de preguiça, de vagabundagem. A partir daí decaem todas as vontades e determinações. Sogras e esposas julgam-se no direito de ofender maridos. Pais ameaçam expulsar filhos de casa. Depois qualquer ocupação, por mais indigna que seja, passa a ser aceitável. Qualquer salário, qualquer horário, qualquer local de trabalho, qualquer patrão. Se lhe mandarem aterrar a Lagoa Rodrigo de Freitas, você faz. Se lhe mandarem jogar mendigos no Rio da Guarda, você faz. Se lhe mandarem despejar famílias de retirantes de terrenos baldios, você faz. Se lhe mandarem pra guerra pra matar comunistas, você faz. Você faz qualquer coisa, se te mandarem. Estás no ponto, pronto para ser readmitido na sociedade dos amos. Isso porque não tens vida própria.

“Mas não eu”, pensou Aldo, enrolando a toalha em volta do pescoço. Alguém iria se arrepender amargamente por tê-lo colocado no desvio.

Em sua cabeça conseguia desenhar uma onda humana tomando de assalto o Palácio da Alvorada, ele no parlatório anunciando ao povo: “Declaro inaugurada a república popular do Brasil, pátria sem amos, terra da felicidade geral, país da nova era”. Ao seu lado Fidel, abria um largo sorriso e lhe dava um abraço apertado, enquanto baterias de escolas de samba e trios elétricos invadiam a praça.

A cidade era suja. Em suas ruas parecia que uma feira-livre havia recém passado. Cocôs de cachorro sobre as pedras portuguesas era uma ameaça permanente às sandálias de dedo. E uma camada fina de poeira escura se depositava sobre os automóveis que atravancavam as calçadas.

Tinha um longo dia pela frente. Um longo dia para fazer nada. Era horrível encontrar João, dormindo o dia todo, como se fosse portador de uma doença insidiosa que contaminava à todos: a depressão, uma doença que ninguém conhecia naquela época. Sem tomar banho, sem se cuidar; deitado no chão da sala, com livros espalhados por todos os lados, tocos de cigarros e roupas sujas. As pessoas já estavam falando em mandá-lo embora, em desfazer a comunidade. Como última tentativa, haviam se decidido pela contratação de uma empregada diarista. João teria que levantar para que ela pudesse arrumar a casa.