O Retrato
Ela dançava a valsa dos monstros invisíveis no meio da sala à luz de velas. Na vitrola, aquele som conhecido, o barulho da agulha deslizando pelo vinil desgastado. Rodopiava em suas sapatilhas negras como uma bailarina de circo após o primeiro beijo. Pintava um sorriso em seu rosto pálido em meio às lágrimas que lhe deciam à face.
Não era tristeza. Era uma celebração ao encontro de si mesma, das suas verdades mais profundas e escondidas. Não era mágoa, sentimento inútil e negativo.
Ela aceitava seu destino como quem abraça o vento. Homenageava a si mesma. Cantava um canto mudo numa linguagem só sua e de mais ninguém. E por mais que houvessem outros ao seu redor eles não entenderiam do que se tratava. Não. Não havia ninguém ali com ela. Não agora.
Quem sabe um outro momento. Quem sabe em seu passado esquecido, naquelas páginas de livro, naquelas benditas entrelinhas que a gente não tem paciência de ler. Eles poderiam se encontrar lá. Naquele canto sombrio, perto de uma árvore com suas folhas caídas, como uma cama de lama.
E no ápice do refrão, aquela música tocava mais dentro dela do que na vitrola, ela parou. Ali mesmo. E sentou-se no sofá. Não havia mais o sorriso. As lágrimas se esvaíram. O rosto, ancioso por alguma demonstração de sentimento, ficou ali, estatelado e pasmado, sem expressão. E aquele rosto ficou no retrato. Foi exatamente aquele semblante que está registrado num porta-retratos qualquer, na casa da melhor amiga. E quem vê não diz. Não sabe. Não interessa.
Aquele momento. Aquele rosto e aquela dança. Tudo se esvaiu com o passar dos anos. Talvez nem exista mais. Ninguém nunca sabe aonde, exatamente, o tempo nos carrega. Somos marionetes da vida, fantoches vivos do destino.
Naquele dia ela se lembrou. Naquele dia, antes da fotografia, ela conseguiu ir ao fundo de si própria e enxergar o que havia apagado.
Jenifer, 14 anos, vítima de estupro pelo próprio pai.