À ESPERA DE UM GRANDE AMOR
Nos últimos anos, a vida lhe pregara inúmeras peças. Já tinha perdido a conta de quantas vezes sentiu-se traída, iludida pela própria sorte. Definitivamente sorte era uma palavra que não tinha sentido em seu dicionário, talvez nem existisse. A tempestade era iminente e se anunciava no horizonte próximo ao seu apartamento. Um vento frio precipitava-se com fúria janela adentro. Ela, preocupada com as gotas que já caíam, nem percebia o ruído que vinha do corredor. Rapidamente correu até o armário do canto, que estava com a gaveta entreaberta, e pegou uma toalha para se enrolar.
Foi então que ouviu. Seriam passos? Quem estaria ali? Uma onda de calor subiu até sua face. Pânico. O rumor só aumentava. E a agonia também. Desde criança, seus medos foram sufocados. O carinho e a proteção dos pais tornaram-se indispensáveis para que a frágil garotinha pudesse ir, aos poucos, amadurecendo e tomando consciência de suas incertezas.
– Calma, Dóris, muita calma. – Pensava em voz alta procurando driblar o medo, que de repente tomava forma, ocupando lugar e espaço na sua mente. A adrenalina subiu. Indício de que seu sexto sentido estava mais apurado, mais presente do que nunca. Sentia-se mais segura, sabendo que as mulheres, além da sabedoria, possuíam a intuição mais desenvolvida, talvez por instintos de sobrevivência, não sabia ao certo. Mas isso realmente não importava naquele momento.
Num ímpeto lembrou-se da porta e, com passos lépidos e incertos, saltou até ela para trancá-la. No mesmo instante em que toca a maçaneta, sente que alguém também a toca pelo lado de fora. A imagem de sua mãe logo lhe vem à memória, como uma assombração emergida das trevas:
– Minha filha, tenha muito cuidado! Moça sozinha na cidade grande é um perigo. Tanta coisa ruim acontecendo por aí. Quase não durmo, de tanta preocupação com você!
Agora sabia que a mãe sempre falava a verdade. Tantas vezes a ouvira e nunca quis lhe dar atenção. Mas hoje, sozinha dentro da casa, com um estranho se aproximando, só sabia e só queria pensar na velha mãe, que já a tinha desamparado nesta vida.
A porta é forçada. Um grito rouco e tímido sai de suas entranhas.
– Socorro! Quem esta aí? Por favor, vai embora!
Primeiro aquela mão, morena, dedos grossos e alongados, unhas maltratas. Depois um braço peludo e roliço, avança em sua direção. A porta era a barreira física que se transformou num escudo de proteção. A cada segundo, seu escudo cedia, coisa de centímetros, mas ela já sabia que não agüentaria por muito tempo.
– Dóris, Dóris! Volte para casa, minha filha, venha para perto de sua família. Aqui no interior você sempre estará em segurança, contra tudo e contra todos. – Novamente a velha se manifesta como um espírito a lhe atormentar ainda mais.
Vencida pelo cansaço, e já não podendo mais empurrar aquela porta, a garota abandona sua posição e, desesperada corre até a janela. A toalha subitamente cai pelo caminho. Quando aquele homem entra no quarto, encontra Dóris em tormento, despida e em pé no parapeito da grande janela. A visão é sinistra. Ao fundo, os trovões, os relâmpagos, o dia tornando-se noite, a escuridão e a incerteza tomando conta de tudo. Lá estava ela implorando pela vida, agarrada àquela janela como que agarrada a sua última esperança.
Passo a passo o intruso aproximou-se. Ruídos lentos, pesados, carregados de ódio e rancor. Fixando o olhar, Dóris só viu refletida maldade. Um brilho apagado, manchado de sangue, era a única demonstração existente e que transparecia naquele rosto.
Suas esperanças de fazer a vida na cidade, formar-se, arranjar um emprego, encontrar um grande e eterno amor de repente começaram a dançar em sua mente. Sim, queria amar e ser amada. Queria construir um castelo como nos sonhos. Amar, amar, amar... eternamente amar.
Sonha acordada com a grade paixão de sua vida – que nunca chegou - quando aquela mão gélida e calejada lhe segura fortemente na perna. As sensações são oscilantes. Medo, ódio, dúvida, alegria, paz, amor. Já não consegue distinguir umas das outras. O que havia acontecido nestes poucos anos de sua existência era insuficiente, tinha a convicção de que ainda faltava algo. Sua vida ainda não tinha sido completa.
Com um grito horripilante saindo de sua alma, Dóris lança um vôo solitário no ar. Em queda livre. Livre de tudo, nua como veio ao mundo. Sabe que lá embaixo um grande amor estará a sua espera, pronto para abraçá-la, abrigá-la, protegê-la. Até o temporal parece ter acalmado. Ao longe vê o sol ainda encoberto pelas nuvens negras e carregadas. Percebe que ele está lá, firme e forte, inspirando confiança. Quando seu corpo toca o chão ingrato, já não sente mais nada, apenas conforto e esperança. Enfim encontrava seu grande amor.
Curiosos aproximavam-se aos poucos. Ficaram ali, parados, perplexos. Ninguém falava nada. Tão somente observavam aquele corpo tão jovem, despido, cabelos ao vento, esparramado no chão de cimento duro da calçada. Uma poça de sangue, próxima ao meio-fio, era o único sinal da vida que se esvai...
– Pobrezinha, – falou o velhinho que chega por último e se aproximou empurrando a multidão. – Tão linda e morrer deste jeito, pulando do décimo terceiro andar! Deve ter sido uma grande desilusão. Vai ver que perdeu um grande amor!
Oséias Santos de Oliveira
Professor, diretor de escola, membro da ASES / Associação Santa-rosense de Escritores
Santa Rosa – RS
oseias.ol@uol.com.br
* Conto publicado na Obra 102 que Contam, organizada pelo escritor Charles Kiefer.
Editora Nova Prova - Porto Alegre - RS