O ESPALHA BRASAS - IV PARTE

O ESPALHA BRASAS - IV PARTE

Enquanto no coração do Atlântico, os recém esposos se preparam para gozar os prazeres, todos os prazeres que esta ocasião tão profundamente propicia, Julieta, quando em vez dá consigo cogitando sobre esses apetecidos cenários e desejos que, o destino não lhe quis presentear. Desta tristeza, Julieta dá parte ao espelho ou às paredes do seu quarto ou ainda ao travesseiro, testemunhado por longas noites de insónias. O espelho testemunhava-lhe o gotejamento de lágrimas, tantas vezes caídas uma após outra, as paredes faziam-lhe ecoar os suspiros saídos do coração e da alma e o travesseiro assumiria a condição de confessor e interlocutor passivo e compreensivo. Julieta, nos seus quinze metros quadrados de privacidade, no espelho e no travesseiro do seu leito, encontraria o confessor certo e seguro e o único capaz de não a pôr a ridículo por um amor que nunca chegaria a ser correspondido, porque na prática, ele nunca se havia cumpliciado. Julieta questionava-se sobre o porquê, os porquês de se achar assim angustiada e inconsolável.

Os próximos dez dias de lua-de-mel, serão uma tortura, não já pela certeza de ter visto casar o homem da sua vida, mas principalmente porque não o irá ter debaixo de olho. Julieta tentará superar a angústia com a presença física e próxima do objecto do amor e desejo, que só o fim da lua-de-mel poderá fazer esquecer. Mas, enquanto esta não acaba, as noites não terão fim. O choro, os monocórdicos monólogos com o travesseiro, os suspiros, a inquietude física e da alma, serão uma constante. Até que, um novo interlocutor e nunca antes notado companheiro da madrugada e da melancolia, passaria a partilhar e a dividir angústias. Falo do rouxinol, que pela madrugada dentro trinava empoleirado e ocultado na ramagem de uma frondosa oliveira.

A insónia de Julieta, fê-la descobrir este solitário cantor da madrugada, quando constatou que, vinda da noite, da luarenta noite, ecoava o mítico e nostálgico canto. Primeiro, abriu uma portada da janela para que o gorjeio entrasse e atentamente daria ouvido ao melodioso e solitário cântico. Posteriormente, abriria a outra portada da janela e com esta já toda escancarada, o sonoro cântico enchia-lhe o quarto. Posicionada com o ouvido de lado, como que a perscrutar som mal audível, alguns trinados receberiam como aplauso, lágrimas saídas de um rosto sofrido de amor não correspondido.

Julieta sentia vontade de agradecer a este companheiro da noite, a partilha de mágoas e resolveu ir até junto da sua casa para o ver e ouvir desfiar a nostalgia na sua ampla janela, cuja cortina, feita de ramagem, o escondia e resguardava, conferindo-lhe privacidade que, nem o sol da noite, qual candelabro, o deixava vislumbrar. Nessa expectativa, Julieta, em camisa de dormir dirigiu-se pé ante pé, até junto da solitária oliveira e sentando-se numa pedra ainda aquecida pelo sol que de dia lhe batia, escutá-lo-ia atentamente. A um tempo, ouvidos no rouxinol e cabeça em Franklim, a triste moça, sentada, debruçar-se-ia sobre si e com a cara entre as mãos, escondia da noite a face chorosa e do rouxinol os suspiros embargados. Já a madrugada ia alta e o sono terá tomado conta da pequena ave, por esta não mais se ter ouvido.

Perante isso, convalescida e agradecida ao companheiro da noite, mais uma noite nostálgica, Julieta regressaria ao seu quarto para um sono repousante e esvaído de insónia.

Ainda antes de adormecer, quis homenageá-lo com um poema cúmplice.

Meu companheiro e solitário amigo

Que, soltas o cântico na madrugada,

Ensina-me a partilhar contigo,

A ausência pela pessoa amada.

Ai, quem me dera saber cantar

Para esquecer a minha mágoa,

Cantaria toda a noite sem parar

E viveria como o leito, sem água.

Sem esta, o rio é menos sofredor,

Porque não lhe conhece a erosão,

Assim é aquele, sem verdadeiro amor

Por viver feliz, sem enganos ou ilusão.

Se pudesse ao coração falar

E dizer-lhe porque tanto sofria,

Não sei se voltaria a querer amar

Ou tão-só viver na nostalgia.

Sabes como ninguém, solitário rouxinol,

Emitir teu cântico de bela melancolia,

Que, difundido na noite e longe do sol,

Disfarças toda a tristeza, em pura alegria.

Quem me dera também ser assim

E disfarçar toda a minha mágoa e dor

Saberia enganar todos e a mim

E viveria feliz, mesmo no desamor.

Esquecidos de tudo e entregues a si mesmos e aos prazeres envolventes, Cidália e Franklim fazem da lua-de-mel, momento inolvidável. O arquipélago Açoriano, bem plantado no centro Atlântico, tornar-se-ia o roteiro certo, pela diversidade morfológica, gastronómica, cultural, histórica e até linguística. Todas estas vertentes seriam amplamente exploradas. As nove ilhas, dos três grupos, seriam exaustivamente fotografadas ou filmadas. A pequena ilha do Corvo, de falésias abruptas, com cerca de setecentos metros de altura, sobre o Atlântico, é muito procurada para expedições oceanográficas, e como tal reconhecida pela UNESCO como área declarada de reserva de biosfera, mereceria atenção especial dos esposos. Dela, guardam imensas fotografias e vídeos e memória viva de encantos de beleza no seu estado quase primário.

O périplo insular prosseguiria pleno de entusiasmo e curiosidade. A cidade de Angra do Heroísmo, património Mundial da UNESCO, atestada pelo seu grande valor arquitectónico, monumental e histórico, seria amplamente dissecada. Dela guardariam dezenas e dezenas de fotografias e diversas gravações vídeo. Finda a visita ao arquipélago Açoriano, demandariam o Madeirense e lá aproveitariam as águas tépidas e as areias finas de Porto Santo, gozando dois dias de praia. Terminariam a viajem nupcial na ilha da Madeira, dela tendo também guardado registos técnicos e de inapagável memória. Ainda antes do regresso, não quiseram deixar de saborear o bife de atum acompanhado do famoso vinho madeira.

Enquanto se deliciavam com as diversidades insulares, os jovens nubentes estreitavam afectos. Afectos, que o imaginário de Julieta reproduziria amarguradamente, por não lhe terem calhado em sorte. Todo o tempo que durou o período de lua-de-mel, afirmar-se-ia como uma tortura e um sofrimento dorido, nunca antes sentido. Nem o dia de casamento foi tão nostálgico e doloroso. Tal como no luto, não é o próprio dia do funeral, aquele que se afigura como o mais doloroso, mas a ausência continuada dos dias vindouros pela pessoa amada que, custam a digerir e a aceitar. Crê-se que a analogia tem pertinência e só o esquecimento e o tempo reporão a estabilidade emocional. Julieta, sabe e crê que esta fase irá passar, mas até lá, está consciente de que ainda sofrerá muito.

O regresso ao continente do jovem casal seria um alívio para Julieta, que, com a presença de Franklim, parece recobrar energias e ânimo para vencer a paixão não correspondida. A presença física e próxima, do objecto amado e desejado, fá-la-ia viver silenciosa e unilateralmente a paixão, mitigando-lhe toda a dor que um afastamento sempre proporciona. Embora, Franklim não lhe pertença de facto e ela o saiba e o respeite, o coração não o deixará jamais olvidar. Terá de conviver com esta realidade, não permitindo a si mesma qualquer indício revelador do seu sentimento, a Cidália, para não infernizar a vida aos três. O bom-senso de Julieta, permitirá criar uma relação de confiança com a “rival” Cidália, nunca esta sendo levada a desconfiar do que vai na alma da jovem cozinheira.

D. Felícia, está feliz com o regresso do filho e nora e até já fala que, quando tiverem um filho varão, se deverá chamar Vasco, tal como o avô e em homenagem a este. Esta sugestão mereceu toda a atenção e aplauso de ambos.

- E se for menina, como se vai chamar D. Felícia?

- Bom, isso é convosco. Eu só dei de sugestão o nome do falecido, como homenagem póstuma a um avô que a esta hora estaria bem feliz, por vos ver casados…

Esta conversa morreu por aqui e surgiu informal, embora com recado sugestivo e atendido.

A actividade do Espalha Brasas retomaria a plenitude e Cidália, apesar de sentir saudades dos pais e irmãos, parece abraçar o projecto delineado por Franklim, colocando-se à frente da pastelaria. O restaurante mereceria toda a atenção do marido, o qual, tem na qualidade do trabalho desenvolvido pelo Sr. Sousa e Julieta, o suporte para o seu bom-nome e prestígio já alcançado. A organização de jantares de empresas, casamentos, baptizados, encontros ou simplesmente as rotinas diárias de serviços que, ao fim de semana ganham particular ênfase, são o garante da consolidação do projecto ambicioso de Franklim, o qual, promete a si mesmo materializar. A equipa de colaboradores efectivos do Espalha Brasas é pequena e perante inusitados dias de movimento, Franklim recorria a prestadores avençados. Franklim, é decididamente um homem com olho para a vida, conforme profetizava o pai, a que ele fazia jus. Paralelamente à actividade de restauração, viria a criar uma empresa subsidiária de mão-de-obra, especializada em catering.

Seis meses passados após o casamento, D. Felícia andava intrigada por não ouvir nem ver, quaisquer sinais de gravidez em Cidália. Não queria perguntar, por achar deselegante e em conversa com Gervásia, questionou-a se já ouvira falar de gravidez na nora, ao que a filha lhe responderia, ser ainda cedo.

- Minha mãe, os casais modernos, não são como no seu tempo…Vocês casavam e a primeira coisa, era engravidar. Eu mesma, só tive o primeiro filho ao fim de dois anos.

- Sim. Tudo isso é verdade, mas…

- Mas, o quê?

- O quê, o quê…A minha preocupação é em saber se ainda viverei mais dois anos, para ver um netinho…

Percebe-se a ansiedade e o estado de espírito de quem já viveu muitos anos e que, vê a esperança de vida encurtar-se apressadamente. Gervásia compreendeu a preocupação da mãe e confortou-a, lembrando-lhe que já tem vários netos.

Na verdade, o jovem casal nada tem feito para evitar a gravidez e esta não tem acontecido. Ao fim de seis meses, é notória a preocupação de ambos, e mais particularmente em Franklim. Algo terão de fazer e acertaram uma consulta conjunta em obstetrícia e infertilidade no Dr. Túlio Fonseca. Da consulta, não deram conhecimento a ninguém para evitarem serem metralhados com perguntas.

Feitos exames e análises preliminares aos dois, o Dr. Túlio concluiu que, aparentemente não via razão para não acontecer a gravidez. Deu a entender que o psíquico poderá estar a condicionar e que um episódio de ansiedade poderá ser o responsável pelo quadro. Aconselhou-os a terem uma vida sexual normal e sadia e que a desejada gravidez, aconteceria com naturalidade. Disse-lhes que situações como a deles acontecem vulgarmente e que raramente são prescritos tratamentos. Disse-lhes ainda que, a não acontecer gravidez dentro de um período de um ano, não é alarmante.

Perante esta conversa, o jovem casal mostrar-se-ia optimista e seguro da qualidade clínica do Dr. Túlio, testemunhada por mais de trinta anos de bons serviços na área da infertilidade. Em nota de rodapé e despedida, o Dr. despediu-se com um cumprimento caloroso aos futuros papás.

O casal procurará guardar segredo desta consulta e sempre que possível evitará abordar o tema, embora D. Felícia ande inquieta por não ouvir qualquer zunzum. Nunca como agora, ela manifestou vontade de ser avó.

O negócio corre próspero e Julieta é parte responsável no seu sucesso. Os seus dotes culinários e de gestão na cozinha são largamente apreciados por Franklim, o qual faz questão de lembrar que o sucesso também lhe cabe em grande parte. Julieta é competente profissional e nela reside uma ambição que guarda para si e que a seu tempo e na melhor oportunidade, porá em prática.

Ao fim de mais de seis meses de casamento, Cidália revelaria saudade dos familiares e amigos e que o muito amor que tem pelo marido, não consegue evitar. Franklim percebeu e já lhe manifestou disponibilidade e incentivo para ir passar alguns dias a Vancouver, com ela. Ao ouvir do marido esta predisposição, Cidália, inicialmente retraiu-se, para logo a seguir mostrar receptividade. Percebeu que pode contar com o amor de Franklim.

O desenraizamento familiar e de amigos terá sido mal preparado e responsável por este estado de espírito e quem sabe, o mesmo que inibe a gravidez. Possivelmente, o Dr. Túlio tenha toda a razão do mundo, quando crê que a personalidade e a ansiedade, associada à saudade, sentida por Cidália, o explique.

Posto que a jovem, já só tem o pensamento no Canadá, o que falta definir está pendente na ida ou não do marido, embora este já lhe tenha manifestado vontade de a acompanhar. Ela fez questão de lhe dizer que a saudade está nela e não nele e por isso, reforça-lhe a ideia para ficar a gerir o negócio. Na verdade, Franklim apesar de gostar de fazer companhia à esposa, não se sente motivado para esta deslocação, por isso, quando a mulher lhe sugeriu que ficasse, aceitou-o.

A deslocação está prevista para um período de três a quatro semanas, o suficiente para o “desmame”, sem pôr em perigo o reenraízamento afectivo aos familiares e amigos.

Franklim anunciaria estas mini férias da esposa aos seus colaboradores, sendo que Julieta, ouviu e não revelou qualquer curiosidade, embora pessoalmente ficasse feliz por poder ter Franklim por próximo. Na véspera da partida, Cidália recomendaria a Julieta que, na ausência dela, prestasse apoio ao marido, nos mesmos termos em que o fazia antes, tendo recebido desta, confirmação e empenho.

Franklim iria levá-la ao aeroporto e despedir-se-iam, cabendo a cada um deles estados de espírito diferentes. Ela vê a ansiedade esbater-se e nele a saudade, ganha espaço.