O Pintor
O Sol estava favorecendo a antiga rua. Calçada por pedra muito bem cortada e colocada é uma reminiscência do Império; Pedro II teve casa no antigo bairro da Vila Real da Praia Grande. Luzes e sombras favoreciam o homem de meia idade de pintava com realismo extremado o casario velho que por lá existe.
Embora não seja mais executada ao ar livre, e usando de técnica dita por muitos antiquada, por reproduzir com muita exatidão o local, o homem trabalhava com calma e fumava muito, coisa também não vista com tanta freqüência hoje.
Os pincéis carregados de tinta estrangeira, levemente molhados na terebintina, corriam soltos na mão do homem vestido com um velho jeans, camisa xadrez de mangas curtas e um tênis que já mostrava uso, mas ainda bem inteiro.
Como já era o quarto dia que ele pintava as casas, sempre no mesmo horário para não ser prejudicado pelo jogo do claro-escuro, que pode corromper totalmente a iluminação, o quadro já possuía forma definida e era retocado no ateliê do artista, visivelmente. Já na primeira vez veio com o fundo preparado e seco, e a cor fazia crer que fora usada a terra de sena queimada, principalmente. O castanho-avermelhado, em tom escuro, autorizava chegar a esta conclusão.
De vez em quando o pintor abria a mochila que agora também faz parte da tralha usada na pintura ao ar livre. Retirava uma garrafa sem rótulo e num pequeno cálice de vidro grosso, tomava um gole do líquido. Ele mesmo preparava a beberagem, composta por vodca, mel e cravo. Gostava do que fabricava para consumo próprio. Ninguém nunca o viu bêbado.
Algumas pessoas, como sempre acontece, paravam para ver o meticuloso trabalho do artista. Sempre trocavam alguma palavra com ele, e ficavam admirados com a perfeição do quadro.
Esta cena já foi muito comum, mas a pintura contemporânea é feita no ateliê: difícil não ser de modo diferente. Uma característica do pintor eram seus cabelos, compridos e muito bem cuidados, mostrando ondulações volumosas, como as que vemos nos antigos mestres. Hoje um pintor só é reconhecido se estiver com a sua maleta. É um homem igual a todos os outros. Mas este tinha certo mistério, talvez pela cabeleira antiga, ou por estar trabalhando na rua.
No antigo bar todo em pedra, como todas as construções do local, alguns homens apreciavam o chope branco e o preto, considerados os melhores da cidade. Talvez fosse um pouco cedo, ainda não eram cinco horas da tarde, mas o bairro universitário comportava este tipo de procedimento; ali tudo isto era normal, mesmo o pintor de cabelos encaracolado e bigode grande.
Outro curioso foi ver o trabalho do pintor. Trocou com ele algumas palavras e se encaminhou para o bar famoso pelo chope. Sentou-se e pediu uma garrafa d’água. Quase todos o conheciam. Era o catedrático de Cálculo, homem querido pelos alunos, amante do jazz e da boa pintura. Estava com o rosto bastante contraído, mostrando tensão e ansiedade. Um dos freqüentadores perguntou se ele estava se sentindo bem.
- Estou perfeitamente bem, creio. Mas vou pedir uma bebida forte. Aquele homem tem vindo aqui sempre?
- Apareceu há quatro dias, parece.
- E por acaso alguém o conhece?
- Aqui não mora. Deve ser do Rio, o bairro virou point.
- Ele é do Rio sim. Ou melhor, era. Conheço seus retratos pintados por colegas.
- Ora, então o homem é famoso!
- Muito famoso. Seu nome é Victor Meirelles.
Todos desconheciam o nome. Victor Meirelles pintou para Pedro II uma das belas obras brasileiras, “A Primeira Missa no Brasil”, executada em Paris, pela facilidade de encontrar material excelente de pintura, que demorou dois anos para ser concluída e que se encontra no Museu Nacional. Morreu faz tempo, muito tempo, em 1903.
Mas o professor não falou absolutamente nada com ninguém...