“O que as janelas não mostram”

O velho morava numa casa que ninguém notava. Ficava depois da estrada de terra, onde os ônibus não passavam mais e as crianças evitavam ir por causa das histórias. Diziam que ele era rabugento. Diziam que falava sozinho. Diziam que, uma vez, teve família e perdeu tudo. Mas ninguém sabia ao certo.

O nome dele era Joaquim. Tinha 72 anos, uma barba branca sempre por fazer e um rádio antigo que tocava músicas dos tempos em que ainda se sonhava com o futuro.

Todos os dias, Joaquim caminhava até a cidade para comprar pão e leite, passando pelo casarão cinzento que abrigava o orfanato. Nunca olhava diretamente para as janelas, mas sabia de cor o som das crianças brincando no pátio, o barulho dos risos, das brigas, da bola batendo no muro. Às vezes, quando o vento trazia vozes, ele ouvia trechos de histórias sendo inventadas. Isso o fazia parar por um instante. Mas logo seguia, como se não quisesse que ninguém notasse que ainda se importava com alguma coisa.

Até o dia em que ela apareceu.

Tinha doze anos, sardas no rosto e um caderno sempre debaixo do braço. Era nova no orfanato. Gostava de inventar nomes para as nuvens e escrever cartas para pessoas que ainda não conhecia. Um dia, viu o velho passar e decidiu acenar. Só isso. Um aceno tímido.

Joaquim não retribuiu. Mas, naquela noite, demorou mais a dormir.

No outro dia, ela acenou de novo. E no outro. E no outro. Até que ele, vencido pela insistência gentil, tirou o chapéu e fez uma leve reverência.

Foi o bastante para que, no dia seguinte, ele encontrasse uma folha de papel no portão de casa. Nela havia um desenho: um homem com barba branca sentado à sombra de uma árvore, lendo para uma menina de tranças. Embaixo, com letra arredondada: “Ainda não aconteceu, mas quem sabe um dia?”

Ele guardou o desenho na gaveta da cômoda. Não disse nada. Mas, pela primeira vez em anos, limpou o jardim.

Os dias passaram e os bilhetes continuaram. Às vezes poemas, outras vezes pedaços de histórias, sempre deixados discretamente por ela. Ele começou a responder. Primeiro com pequenos desenhos, depois com frases curtas, até que um dia escreveu: “Você acha que pessoas tristes podem voltar a sonhar?”

A resposta veio com um sorriso largo no papel: “Acho que sim. Mas elas precisam de ajuda.”

E assim nasceu uma amizade. Silenciosa, respeitosa, feita de bilhetes e de tardes em que ele passava pelo portão só para vê-la escrever no pátio. Um dia, ela o chamou de “meu velho amigo”, e ele quase chorou. Outro dia, ela escreveu: “Se o senhor fosse meu avô, acho que eu seria a neta mais feliz do mundo.”

Ele respondeu: “Se você fosse minha neta, eu teria alguém por quem esperar o dia inteiro.”

Algumas semanas depois, o orfanato anunciou que ela seria enviada para outra cidade, para um novo abrigo. Era regra, diziam. Joaquim soube pelo padeiro. Não esperou mais. Vestiu seu melhor casaco, foi até o orfanato, e pela primeira vez em muitos anos, falou alto diante de estranhos.

— Eu vim por ela. Pela menina dos bilhetes. Pela menina que me devolveu a vontade de esperar o amanhã. Se ela quiser, quero adotá-la.

Silêncio. Olhares desconfiados. Mas também lágrimas.

Quando ela saiu correndo e o abraçou como se já pertencesse àquele gesto, tudo ficou claro. Ninguém mais duvidou.

Ela se chamava Clara.

E, no lar que passaram a dividir, os dias eram feitos de chá, histórias inventadas, música no rádio antigo e janelas abertas. Não precisavam de muito. Apenas um ao outro — e um caderno em branco, sempre pronto para o próximo capítulo.

Sandro Malheiros
Enviado por Sandro Malheiros em 20/04/2025
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