A gata vampiresca

Lady Tremaine preparava sopa para o seu marido, cuidando para proteger sua barriga gestante do fogo. Seu parceiro fora mordido por um morcego e se sentia mal desde então. Por isso, a grávida colocava tanto vigor nos condimentos adicionados. Faria o homem melhorar, sem dúvida. Se ele partisse, parte dela partiria também: aquela que colocava tanta esperança na sopa preparada. 

 

Era grata a Deus por colocar Lord Tremaine em seu caminho no momento de maior fragilidade. Abandonada pelo noivo e dispensada do trabalho como padeira em curto período de tempo, estava perdida e perto da fome. Contudo, aquele herói apareceu e lhe mostrou uma saída. Uma que não era o fim da linha, mas o início de uma grande alegria. 

 

Lembrava vividamente quando conheceu a mansão de Lord Tremaine, sete anos atrás. Seus passos hesitavam em meio a tanto luxo, já que temia ser vista como aproveitadora. Agarrava firme a mão do prometido e baixava a cabeça constantemente.  

 

Apesar dos receios, o companheiro a apresentava com orgulho aos funcionários, que ficaram genuinamente alegres em conhecê-la. Isso pois retornara o brilho perdido nos olhos de Lord Tremaine desde a morte da primeira parceira. Desejaram sorte ao casal, até porque almejavam um ambiente de trabalho pacífico. 

 

Percebendo a recepção agradável, Lady Tremaine começou a se sentir em casa. Afinal, como não ficar à vontade se a cada passada sentia era envolvida pelos braços confortáveis de seu amor? Restava apenas a apresentação mais importante: a da sua enteada, Cinderela. 

 

Logo a encontraram. Ela estava feliz em seu quarto: penteava os cabelos de uma boneca enquanto cantava lindamente. A voz dela era doce e a vontade de Lady Tremaine era tirar o companheiro para dançar aquela ciranda em uma ode à sua nova vida perfeita. 

 

Com empolgação contagiante, Cinderela pegou outra boneca e perguntou à Lady Tremaine se podiam brincar juntas: 

 

“Essa era a favorita da minha mãe e, como o pai disse que você seria minha nova mãe, pensei que ia gostar dela também”, a garota disse enquanto puxava a mulher pelo braço para perto da casa de bonecas. 

 

Desde aquele dia, madrasta e enteada se deram muito bem e Lady Tremaine sempre brincava com a pequena Cinderela. Afinal, como resistir àqueles olhinhos pidões e sorriso tão gentil da menina? Seus momentos com a criança eram sinônimo de diversão e esquecimento da dor do passado. Instantes preciosos nos quais voltava à simples alegria da infância. 

 

Entretanto, daquela vez, a sorte não lhe sorriria. Depois de sete anos de união feliz e uma gravidez em andamento, Lord Tremaine morreria devido a mordida do morcego. Ademais, antes de padecer, passaria adiante a maldição da mordedura. Seu corpo nunca foi enterrado, que sumiu misteriosamente antes da data do funeral.

 

Em situações normais, Lady Tremaine faria tudo para encontrar o corpo de seu companheiro de mais de meia década objetivando se despedir. Todavia, nem teve tempo para organizar uma busca, pois, sem a perspicácia de Lord Tremaine, os negócios ruíram e a decadência bateu à porta. 

 

O desespero foi maior em comparação ao abandono sofrido pela mão do noivo anterior. Afinal, não estava mais sozinha. Assim, não era consigo sua preocupação, mas com suas dependentes. Como sustentaria Cinderela e as duas bebês em formação no seu ventre? Novamente, a mulher beirava o abismo. Havia, entretanto, uma diferença: não receberia mais a interferência divina, e sim, a diabólica. 


Uma semana depois

Cinderela abocanhava o ombro de sua madrasta. Esta merecia ter suas vísceras arrancadas. Afinal, só um monstro manteria alguém em cárcere privado naquele quarto imundo. Cada gota de sangue era mais prazerosa que a anterior. Entretanto, o gosto saboroso tornou-se desgostoso quando a jovem percebeu o que ocorria.  

 

Gritou horrorizada, sabendo que via mordida passava adiante o legado terrível deixado pelo pai. Independentemente do quão sofrida fosse sua prisão, precisava resistir a essa pestilência. Não aceitaria ficar maníaca como Lord Tremaine, dado que não queria justicar o encarceramento imposto a si. E, com isso em mente, despertou do pesadelo. 

 

A jovem assustada encarou um copo d’água em sua frente, sentindo a boca salivar imediatamente. Todavia, nem saliva seu corpo tolerava. A garganta espasmava e a baba espumava para fora. Já não mais sentia a pele enrugada ou seus fracos músculos e era impossível controlar membros que não lhe pertenciam. Paralisada na cama, a morte se aproximava com um sorriso perverso.  

 

Teria o mesmo destino sombrio do pai. Era impossível escapar, ela sabia. Não à toa, sua madrasta a trancou nesse quarto em vez de cuidar dela como cuidara do marido. Se o mau não tinha cura, que ao menos não se espalhasse. Os enfermos enlouqueciam e uma mordida deles que fosse já era um atestado de condenação.  

 

Em meio a lamentos, até viu Lord Tremaine em sua frente. Ele sorria para a filha, revelando dentes afiados que antes não existiam. 

 

“Eu fiz um pacto para me salvar. Você também pode, Cindy. Aquele morcego me deu um presente, que não me arrependo de transmitir a você”, disse. 

 

Enquanto piscava os olhos apavoradamente a fim de afastar a alucinação, seu corpo, antes travado, convulsionou. Sua alma se movia agitada dentro do organismo descontrolado e ameaçava sair pela boca. Em pânico, a jovem falhava em manter os lábios colados.  

 

A aparição insinuante do pai ainda estava presente. Cinderala sentiu algum alívio em ainda vê-la, mesmo sendo consequência de sua sanidade deteriorada. Afinal, sentia saudade e sofria por não conseguir realizar um funeral. Aos poucos, a imagem de Lord Tremaine sumia assim como seu sopro da vida. A jovem daria tudo pela presença dos pais um segundo extra antes de partir.

 

“Não faça isso, filha. Você ainda pode viver. Se disser sim, viverá eternamente. Aceite o pacto também”, ele pedia desesperadamente diante do padecimento de sua pequena. 

 

No dia seguinte

Lady Tremaine caminhava pela mansão em direção à capela no jardim. Outrora, o lugar era belo e cheio de funcionários para mantê-lo assim. Entretanto, após o episódio que levou a fortuna e a vida de Lord Tremaine, estava abandonado. A poeira se acumulava nos móveis e no piso, pois a viúva grávida e sozinha não conseguia dar conta da limpeza antes feita por vários. As infiltrações nas paredes eram evidentes, tais quais as rachaduras nos locais em que o finado batia a cabeça em seus surtos. 

 

“Oh, que maldição atinge essa família, meu Deus? Deixamos de ser bons cristãos e abrimos as portas para o Diabo?”, se perguntava a gestante. 

 

A cada passada, o temor de Lady Tremaine aumentava. Começava a escurecer, porém não podia acender as lâmpadas, porque a luz já fora cortada. Com seu barrigão de gêmeas, não poderia fugir de um ataque de Cinderela. Trancara a enteada em um quarto tão logo percebeu os primeiros sinais da mesma peste do pai dela. Contudo, a praga concedia força sobrenatural. Não importava quantas barreiras fossem postas, a jovem escaparia, ávida por transmitir a mordida.  

 

Não era por si que Lady Tremaine temia, mas sim por Drizella e Anastácia, que carregava no ventre. Arriscou-se no trajeto perigoso até a capela querendo proteção Mariana para ambas. Se sucumbisse, pouco importava, contanto que suas bebês se salvassem. Elas eram o seu tesouro, valiam mais do que as riquezas perdidas pelo ex-esposo. 

 

No corredor até o jardim, imperava o silêncio e a mulher não pretendia mudar isso. Apoiava o pé cuidadosamente, temendo atrair Cinderela. Não havia móveis ao redor, pois todos já tinham sido vendidos. Então o que justificava aquelas sombras ambulantes? E aquele som? O QUE ERA AQUELE SOM?

 

Lady Tremaine não quis olhar. Seu coração acelerado ameaçava furar o peito, os olhos não estavam diferentes. Seguiu naquele passinho quieto, rezando Ave Marias consecutivas e ignorando seus sentidos. Mesmo assim, os vultos aumentavam e os sons também. Ela sabia quem estava ali, mas, mantendo o olhar nos próprios pés, não precisaria aceitar a verdade. 

 

Sua tática se findou quando um corpo sólido a empurrou. A queda machucou suas costas, mas poupou a barriga. Por isso, um breve sorriso brotou em seus lábios antes de levantar o rosto e encarar sua algoz. 

 

Era a porta para o jardim. Tudo isso para ser a porta para o jardim! Com as mãos trêmulas, Lady Tremaine destrancou a fechadura, respirou fundo e abriu a passagem. Do outro lado, era visível ao longe imagem da Virgem, protetora de todo mal. Não existia razão para hesitar, ou existia? Em pânico, confiou em sua fé e correu o máximo que pôde até a capela, só para encontrar Cinderela

 

“O pacto exigiu primeiro você e, depois, o Príncipe Encantado”, disse a enteada logo antes de atacar. 

 

Três dias depois

O Príncipe não demorou para reagir ao ataque de Cinderela. Puxou uma injeção do bolso, a qual foi rapidamente auto-aplicada. Assustada com a precaução do monarca, ela perguntou do que se tratava.

 

“Soro antirrábico”, o nobre respondeu arrogante.

 

Os olhos da jovem se arregalaram. Temendo o que viria a seguir, fugiu correndo. Todavia, cometeu o erro de abandonar uma importante pista de seu paradeiro: um pé de sapato.