Maria Fumaça
Príncipe Henrique, de Apolo
Estava relutante para conhecer a noiva escolhida para mim. Contudo, casamento era assunto melhor do que guerra. Apesar de que, nesse caso, fosse tudo conectado.
Soube que não era minha alma gêmea à primeira vista. Chamava-se Larissa, primogênita do rei de Ares. Era imponente, para não dizer assustadora. Olhou-me em desafio e eu não soube dizer se fui aprovado. Somente constatei que nosso exército parecia mais interessante do que eu.
– Somos um reino pequeno, incluindo em poderio militar. Por isso, meu pai está articulando nosso casamento. Uma aliança com Ares nos beneficiaria belicamente. – expliquei.
Ela não pareceu decepcionada, já sabia daquilo. Subitamente, senti ser egoísta. Afinal, nem pensei nas emoções dela acerca desse arranjo.
– Não importa. Cumprirei a missão dada por seu pai de transformar Apolo em um império. Começaremos atacando o maior dos reinos: Ares. – Larissa afirmou categoricamente.
Instantaneamente, suei frio. Compreendi minha aversão inicial à moça: ela era como meu pai. Ambos só sabiam conquistar territórios via matança. Tal constatação só me certificou de que não a queria. Seria impossível implementar o poder suave com oposição da própria esposa.
– Por que pretende invadir seu próprio reino e conquistar sua própria família? – perguntei assustado.
– Em Ares, nós seguimos a maldita Lei Sálica, que exclui mulheres da herança. Porém, quando Apolo dominar Ares, minha família saberá que sou digna! – Ela soava tão perversa que recuei.
Apesar disso, solidarizei-me. Em Apolo, não seguíamos a Lei Sálica e, graças a isso, pudemos nos vangloriar de diversas rainhas honrosas. Essa regra só servia para reinos perderem grandes monarcas.
A compaixão me fez hesitar. Por que não me casar e permitir seu plano? Meu pai ficaria feliz, garantiríamos direitos femininos em Ares e eu... ceifaria vidas em uma guerra com baixas chances de vitória.
Considerando nossa inferioridade militar, seria perigosíssimo atacar a maior potência bélica da região. Aliás, nem faria sentido, posto que eles não invadiam territórios há décadas. Era improvável que fôssemos o próximo alvo. Nesse contexto, o poder suave era a solução. Investindo em nossa arte, seria possível exportá-la. Desse modo, seríamos conhecidos e influentes.
Por sinal, foi como nos invadiram. Empresas arianas eram mais comuns que as locais; as livrarias mal tinham obras de Apolo; músicas de Ares estavam entre as mais executadas e até a religião deles conquistava mais adeptos. Essa era a guerra à qual deveríamos destinar soldados. Mas como?
Maria Fumaça
A última coisa que vi enquanto padecia foi o sorriso da minha madrasta. Ao fundo, o horror das minhas irmãs postiças soava bastante falso. Talvez estivesse viva se continuasse ignorante. Entretanto, preferia morrer consciente e, por isso, tinha zero arrependimentos.
Meu pai possuía uma empresa ferroviária e, após minha mãe falecer, erroneamente se uniu com uma interesseira. Assim, encontrou seu fim. Já eu, fiquei nas mãos daquela víbora. Fui expulsa do quarto e realocada para dormir na lareira. As roupas não escaparam da borralha, rendendo-me a alcunha de Maria Fumaça.
A intenção era me ridicularizar, para não tomar dela minha herança por direito. Contudo, abracei esse apelido, pois me lembrava dos trens. Ser a Maria Fumaça era uma memória constante de quem realmente possuía os trilhos.
Felizmente, essa determinação me deu oportunidade de fazer justiça. Quando a Morte apareceu, não pôde me levar. Afinal, tinha assuntos inacabados. Assim, ganhei o direito de ser fantasma e me vingaria. Só não sabia como.
Príncipe Henrique, de Apolo
Era o dia do casamento e já via sangue em minhas mãos, tanto do meu povo quanto do de Ares. Dona Larissa e meu pai combinaram a estratégia do golpe para aproveitar o elemento surpresa. Meus protestos foram inúteis.
Naquele momento, vagueava esperando inspiração divina. Não aparecer na cerimônia pouco adiantaria, pois meu pai se aliaria com Larissa de outras formas, incluindo casar ele mesmo. Portanto, restava apenas um meio: desaparecer. No médio prazo, não surtiria efeito. Apesar disso, ganharia tempo precioso.
– Me ajude, por favor. – Ouvi uma voz do além.
Procurei a fonte sonora, mas só encontrei uma densa névoa. Apertei os olhos, porém só havia um par de sapatos. O que estariam fazendo ali? A névoa lembrava a forma humana, quase como… um fantasma. Ouvi uma risada a seguir, talvez pelo espanto.
– Sou a Maria Fumaça e esses sapatos representam o que me prende ao plano dos vivos. Cuidado para não acabar com eu. – A fantasma alertou.
Minha surpresa aumentou. Quando busquei inspiração divina, não esperava que realmente o sobrenatural me encontrasse. Não soube reagir. Todavia, a curiosidade do meu olhar foi estímulo suficiente. O espírito continuou:
– Eu era filha do dono da companhia ferroviária, meu pai e eu fomos assassinados por minha madrasta. Por favor, leve meus apelos adiante. Preciso vê-la punida para alcançar a paz e ir ao outro plano.
Aquela aparição era tão inesperada que até esqueci porque estava ali. Respondi:
– Ninguém vai punir ninguém sem provas.
– Então seja minhas mãos. Tentei fazer justiça, mas, contrariando o que pensei inicialmente, essa forma fantasmagórica não permite me vingar. Acabe com a vida de Margarida Tremaine por mim.
Eita! Eu conhecia aquele nome.
– A viúva Tremaine já está morta, o caso comoveu todo o reino de Apolo. Hoje, seu nome está em uma lei que protege mulheres do feminicídio. – contei.
Pensei ver olhos arregalados naquele ser de névoa. Estaria reconsiderando sua sede de vingança? Afinal, depois de saber desse destino terrível, era impossível não se solidarizar pela mulher. O carma fizera seu trabalho.
– Parece que as duas filhas dela foram fruto da violência do primeiro marido, que foi atrás dela após se divorciarem. – Continuei. – Quando se juntou ao seu pai, estava fugindo dele. Talvez ela estivesse numa saga contra os homens em geral. Não muito diferente de você. Em nome da sororidade, peço que a perdoe. Sei que não é adequado um homem lhe falar isso, mas só eu estou aqui. – Pedi hesitante, temendo sua reação.
Depois de minutos silenciosos, nos quais presumi que repensava a situação, ela falou:
– Se você acha tão admiráveis os movimentos sociais, por que não começa um? Ouvi seus lamentos e desconheço algo que uma revolução não resolva. Falte o casamento e convoque o povo para as ruas. – A névoa pareceu sorrir. – Um pequeno agradecimento pelas suas palavras.
Maria Fumaça
O príncipe foi embora e eu não podia alegar que meu coração estava apertado, pois não tinha um. Naquele momento, a sede de vingança de outrora já não demonstrava mais força. Se minha madrasta morrera após casar com um agressor de mulheres, só sentia pena.
Incrível como essas questões que me impediram de conquistar o outro plano pareciam tão menores. Minha única dor era ser incapaz de impedir o sofrimento daquele que me ajudou. Será que ele seria condenado à vida fantasmagórica se falhasse?
O peso das vidas perdidas na guerra atormentaria seu coração. Um coração que me ensinou a perdoar. Pensando bem, talvez ele não guardasse rancor e pudesse alcançar direto o outro plano. Diferentemente de mim, que nessa ânsia em resolver a vida dele, ainda não alcancei a paz para morrer.
– Morte? – Surpreendi-me ao encontrá-la subitamente, já que ainda possuía assuntos inacabados.
– Não, sou a Vida. – respondeu calmamente.
– Mas você é igualzinha à Morte.
– Morte e vida são a mesma coisa. A vida gera morte, pois tudo que nasce deve perecer. Permitindo, assim, a seleção natural. Do mesmo modo, a morte gera vida, pois um ser morto é alimento para outro ser vivo.
– E por que agora você é a Vida se antes se apresentou como Morte?
– Se sente pronta para ir em paz?
– Não! Preciso ajudar o príncipe. – disse desesperada. Não sabia o que fazer, mas ir ao outro lado não ajudaria em nada.
– E por que? – Morte/Vida sorria.
– Preciso impedir aquele que me ajudou de sofrer como eu.
– Você achou uma nova vida a partir da morte. Isso é raro e bonito de ver. Estou orgulhosa. Por isso, merece uma oportunidade.
– Como assim?
– Dou-lhe um corpo de carne que vive e, portanto, procria. Use essa fertilidade para levar vida ao reino de Apolo e não a morte que a guerra trará.
Após escutar essas palavras, finalmente senti meu corpo pesado, meus membros eram mais do que fumaça. Comecei a pular de alegria e minhas pernas mexeram. Estava viva novamente. Portanto, poderia ajudar o príncipe!
– Muito obrigada, Vida. – Ela não estava mais, então precisaria agradecer quando a visse novamente na forma da Morte.
Príncipe Henrique, de Apolo
Ao convencer a primeira camponesa a lutar ao meu lado, fiquei feliz achando que tinha o dom da retórica. Ledo engano. Reparando em seus sapatos, notei serem os mesmos de Maria Fumaça. Entretanto, minha alegria só aumentou. Como não se encantar diante desse milagre? Era excelentíssimo agouro. Nesse contexto, jurei que não desistiria até ser ouvido pelo rei. Afinal, se os mortos ressuscitaram para me ajudar, eu não podia deixar a ideia morrer.