O futuro de Vida
Kenjo chorou quando lhe contei que sua falecida esposa - agora convertida numa "estaca" entre os blistavi - não só tivera uma filha, mas que essa filha estava viva e saudável, aos cuidados de Draginya, a mulher sábia.
- E o que você vai fazer a respeito? - Indaguei.
- Eu gostaria de ir lá vê-la, - declarou ele, depois de enxugar as lágrimas - mas minha mulher atual nunca iria concordar que eu trouxesse uma "empoeirada" para dentro de casa. Isso é contra as leis da natureza...
- Ela não é uma "empoeirada"; é só uma criança cuja mãe morreu e virou "estaca" - atalhei. - Você não se importa que ela seja criada longe dos meio-irmãos e do próprio pai, naqueles ermos de Meráshma Shuma?
- Mas Jova era sua irmã antes de ser minha mulher - replicou Kenjo, sem se dar por vencido. - Você é tio de Vida. Se não tem nada contra os "empoeirados", porque não a cria você mesmo?
Suspirei.
- Eu moro sozinho; sou agricultor e comerciante. Não tenho tempo para cuidar de uma criança da idade dela.
- Você não disse que ela está na casa dessa curandeira, Draginya? Talvez seja melhor que continue lá, pelo menos até ter idade para começar a trabalhar com você; então, você poderia trazê-la aqui, para que ela me conheça e aos irmãos.
Kenjo estava irredutível, mas ao menos consegui que ele se comprometesse a ajudar na manutenção da filha que (ainda) não queria conhecer.
- Eu vou lhe dar umas résteas de cebolas e queijo - assegurou-me. - Você pode trocar no mercado por outras coisas, ou levar para essa Draginya.
Resolvi não pressionar muito meu ex-cunhado porque ele era mais pobre do que eu, além de ter muito mais bocas para sustentar. A oferta que me fizera, e que sequer eu sabia se seria renovada da próxima vez que viesse a Niskigrad, era o máximo que eu iria conseguir. Além do mais, numa coisa ele tinha razão: Jova havia sido minha irmã por muito mais tempo do que fora esposa dele.
Eu tinha a obrigação de cuidar da minha sobrinha. A blistavi que agora ocupava o corpo de Jova, contava com isso.
* * *
Um mês se passou até que eu pudesse voltar à choupana de Draginya, na orla de Meráshma Shuma. Previsivelmente, tive que usar uma carroça para levar tudo o que havia comprado, mas ao menos agora eu já tinha uma ideia clara do que iria fazer a respeito do futuro da minha sobrinha - e isso partia do princípio de que, ao menos em parte, Kenjo tinha razão.
- Assim que você completar dez anos, vai para uma escola - expliquei para Vida. - Lá você irá aprender a ler, escrever, e fazer contas, que é o máximo que uma mulher pode conseguir por essas bandas do reino.
- Por que quer que ela vá à escola? - Indagou Draginya, braços cruzados como se reprovasse a ideia.
- Porque, dentro de alguns anos, espero que ela possa começar a me ajudar quando eu precisar ir ao mercado - expliquei pacientemente. - E para isso, Vida ao menos vai ter que aprender a ler e escrever.
A menina pareceu animada com a perspectiva de futuro que eu acabara de revelar, embora provavelmente não soubesse exatamente do que eu estava falando - apenas a parte de que iria viajar comigo e ver a cidade lhe interessava.
Enquanto Vida estava ocupada descascando as cebolas que eu trouxera para fazer sopa, expliquei à Draginya o motivo subjacente para levá-la nas futuras idas à Niskigrad.
- Vou tentar fazer com que ela conviva com o pai e os filhos dele, mesmo que seja de longe. Mas Vida ainda é muito nova e não tem nenhum traquejo social; para isso, vai precisar ter contato com mais gente.
Draginya me lembrou que mesmo que eu estivesse pensando na escolinha da vila, em Moshvará, por conta da distância seria inviável que Vida a frequentasse, caso continuasse a morar ali, na beira da floresta.
- Por isso pensei em só levá-la para morar comigo quando fizer dez anos - ponderei. - Até lá, Vida já deverá ter se desenvolvido o suficiente para ficar com uma cuidadora, enquanto lido com os meus negócios.
Draginya acabou aceitando a minha proposição, embora estivesse insegura quanto ao modo como Vida seria recebida por outras crianças. Mas, como lembrei à ela, ainda tínhamos alguns anos para prepará-la para aquele momento.
Ou, ao menos, era o que eu esperava.