Em Nome de Hita

Contra uma mãe dedicada, não há arma melhor do que seu próprio filho.

— Provérbio Hitaísta.

 

 

Rabar se lembrava bem daquele dia. Era ainda o período da ‘’Estação Seca’’ em Manchibur, como tio Filir, oriundo da gélida Ériga Oriental, gostava de chamar. Mas os nativos tinham um nome específico para isso, embora soasse inapropriado: ‘’verão’’.

De qualquer modo, as chuvas não davam as caras por bastante tempo nessa época do ano e, para compensar, a vóiller contava com um complexo sistema de abastecimento de água que vinha dos planaltos das regiões próximas. Com a baixa umidade, mais pessoas sentiam a necessidade de se refrescar, e as praias, idílicas praias salpicadas de dunas e coqueiros, lotavam, assim como os clubes situados à orla.

Mas não era do clima que Rabar se lembrava mais. Pelo contrário, as temperaturas em Manchibur variavam pouco durante o ano, e os dias eram muito iguais nesse quesito. Não, o fato marcante tinha sido outro, completamente diferente.

Para variar, estava de castigo. O único da família a ficar preso no galecão, enquanto todo mundo viajava.

Quer dizer, quase o único. Ele e a pequena Marium, que não tinha idade o suficiente para aproveitar uma viagem cansativa daquelas. Eram só os dois irmãos e Vereta, a babá, velha conhecida da família, mergulhados no silêncio profundo que contrastava com o movimento na rua.

Mas era como se não tivesse mais ninguém no galecão. Vereta não sabia que Rabar estava lá também, pois ele insistia em ficar trancado no quarto em tempo integral, sem dar sinal de existência, com comida de sobra no frigobar. E pedira à mãe para não dizer que havia mais alguém na casa, a fim de poupar sermões desnecessários de babás intrometidas sobre mau comportamento.

Mas uma ligação que recebera à tardinha foi capaz de mudar tudo.

Tateou o telec no pulso e atendeu, tão entediado que nem fez questão de olhar quem era:

— Alô?!

— Rabar, meu filho, que bom que você atendeu! Não saia daí do seu quarto, por favor! Já estamos chegando!

— Quê... Mãe...?!

Mas a chamada finalizou-se no mesmo instante.

Era uma voz de desespero, de aflição, de agonia.

Raramente via a mãe assim. Não era uma mulher de se preocupar à toa, mesmo sua vida não sendo o que se podia chamar de fácil. Fundadora de uma das empresas mais bem-sucedidas do espaço, sua atenção era muito disputada, e nunca estava em ócio. Tanto que o pai costumava recitar dois famosos poemas de Dorge Binze e um de Danvil Scurzar, em referência à rotina e às habilidades dela:

 

 

A MULHER DE NEGÓCIOS

 

A mulher de negócios

nunca está em ócio:

cuida do marido,

dos filhos,

batalha,

trabalha

para manter gente empregada.

Entre suas conquistas,

sustenta famílias

e, com suas habilidades comunicativas,

essencialmente femininas,

é a personificação do mercado,

que, na mulher típica, se vê representado,

pois é o relacionamento

a base de todo empreendimento.

 

 

A EMPREENDEDORA

 

“Por que empreendedora e não empreendedor?”,

me questionaria o leitor.

Mas reitero o uso deste termo

no feminino,

em vez do adjetivo neutro,

com grafia e pronúncia no masculino,

que parece ser mais abrangente,

mas aqui

foge do objetivo,

que é esmiuçar, em termos ideais

e, portanto, conceituais,

as características por trás desta figura,

tão presente no nosso imaginário,

o fim último

de todo empresário,

a quem cabe

o direcionamento de suas ações

de modo a alcançá-lo.

Isso implica no contínuo reajuste

à mudança de condições,

que se dá unicamente pela percepção

do aspecto dinâmico da realidade vivida,

movida,

sobretudo,

pelas pessoas,

suas mudanças de hábitos, gostos e costumes.

A mente empreendedora tem então seu objeto de estudo delimitado,

calcado

em captar outras mentes

e satisfazer suas necessidades.

 

Na Academia da Existência, aprendemos que a vida é feita de necessidades

e que o conhecimento sobre elas

nos levaria a uma vida mais digna e feliz.

As mulheres, geralmente como alunas veteranas,

desde cedo em pleno exercício,

seja no ofício

da intuição, da percepção, da atenção aos mínimos detalhes,

ainda mais quando são mães,

saem à frente da maioria dos homens.

Na Escola da Vida, levantam mais pesos,

pesos que a contraparte masculina,

costumeiramente novata,

se tentasse erguer de primeira,

teria sua musculatura severamente atrofiada.

 

A nossa vantagem, enquanto homens, está em possuir uma certa agressividade

e assertividade,

também positivas para os negócios,

mas que sempre foram perfeitamente assimiladas

pelas mulheres de mente mais apurada,

acabando por fechar este hiato.

 

Certamente, existem empreendedores de ambos os sexos,

mas todos eles miram numa mesma figura,

neste perfil de empreendedor ideal:

uma mulher,

a quem todos se esforçam para alcançar,

correspondendo pelo menos alguma parte

de suas infindáveis

habilidades.

 

 

AS SABEDORIAS FEMININAS

 

Há, neste mundo, uma série de coisas

que chamamos de sabedorias femininas.

Não são atividades exclusivas de mulheres,

mas, por essência,

a maioria

com certeza faz com maestria.

 

Interligadas,

nunca isoladas,

a primeira sabedoria feminina é o cuidado,

que é atestado

pela menor proporção de mulheres que são mais fêmeas do que mães

em comparação com a de homens que são mais machos do que pais.

 

A segunda sabedoria feminina é sua famosa intuição,

necessária à primeira

e intimamente ligada à terceira,

que é a maior atenção

aos devidos detalhes.

Maior atenção às pequenas peças que, apesar do tamanho,

fazem a engrenagem funcionar.

Tudo isso liga-se à percepção:

a percepção do dinheiro,

a percepção dos riscos,

e, sobretudo, a percepção de pessoas,

justamente o motor de cada engrenagem,

nada menos do que os componentes

deste corpo maior, que constitui a sociedade —

famílias, empresas e instituições —,

deixando a nós, homens,

valiosas lições,

sobretudo àqueles que valorizam as grandes mulheres no dia a dia,

buscando nelas também

todas essas sabedorias.

 

 

Subitamente, despertou-se da recitação daqueles versos, no idioma alto-sanoguês. Não tinha tempo para devaneios inúteis.

Preocupado com o que podia ter acontecido, retornou à ligação, que chamou exaustivamente até desligar.

Ligou de novo. O fato se repetiu.

Ligou mais uma vez, e deu no mesmo.

Mais outra, e nada.

Apostou uma quinta tentativa, a última. Mas ainda assim foi vã.

Respirou fundo.

Por alguns minutos, distraiu-se olhando a janela.

Era uma tarde típica de Manchibur: o céu azul e com poucas nuvens, o Astodeise brilhando um pouco acima do firmamento e lançando seus raios para além das vidraças, incidindo sobre o teto e as paredes circulares do galecão alaranjado-cintilante.

Pena que estava proibido de ir para a rua...

Lamentou o fato.

Ouviu a campainha tocar. Pela primeira vez, sentiu-se compelido a sair do aposento. Estava curioso para saber quem era que chegava, e se isso tinha alguma relação com o comportamento estranho da mãe no telec.

Após alguns minutos, avançou até a porta e se retirou.

Como toda construção daquele estilo, consistia num amontoado de casas com formato esférico, interligadas por um cilindro gigante, por onde passava o elevador.

Começou a ouvir vozes que, dada a distância, provavelmente vinham do andar de baixo.

Reconheceu uma delas: era de Vereta. E a outra?

Uma voz masculina, certamente. Mas espera um pouco, havia mais um homem naquele galecão?

Dobrou no passadiço, aberto pelas grades de proteção que ladeavam o corredor circundante, e entrou pela porta que se abriu da Espinha Dorsal, descendo no elevador.

As vozes agora soavam mais claras, e eram intercaladas com risos. Sem querer ser visto, escondeu-se atrás da parede e concentrou-se em ouvir o que conversavam.

— Desativou os robôs domésticos? — perguntava o homem.

— Desativei.

— E a menina? Onde ela está agora?

— Dormindo. Você viu a reação da Dona Simiana? Ela caiu direitinho e já está vindo para cá entregar o dinheiro!

— Mas a sua atuação foi muito boa. E a questão dos filhos costuma ser o ponto fraco da maioria das mulheres, inclusive as de negócios. Só foi ouvir que a filha dela e a babá estavam de refém por mim e já foi tomando as providências necessárias...

— Você tem razão, essa estratégia é melhor que qualquer sequestro verdadeiro. É bem menos arriscado, e nos poupa de muito trabalho!

— Eu falei para você que esse tempo todo em contato com o galecão dos Tarbatela valeria a pena, não falei?

Rabar saiu de trás da parede, horrorizado.

Imediatamente, os dois se deram conta de sua presença.

— Vereta — o homem falou com uma voz autoritária —, você disse que não tinha mais ninguém no galecão...

— E realmente, foi o que a Dona Simiana disse, mas... — Lançou um olhar de esguelha a Rabar, parecendo meio tensa.

— De que sequestro vocês estão falando? — perguntou o rapaz, quase sem acreditar.

Pelas Barbas de Hito, Vereta era uma pilantra! Uma pilantra!

Os dois não responderam, e nem precisaram. Pois, naquele momento, Rabar captou tudo.

Estavam tramando para roubar sua mãe, e logo debaixo do teto em que morava.

Rapidamente, sentiu a raiva ferver dentro de si. Ela já transbordava quando disparou:

— Lamento informar, mas o plano de vocês foi por água abaixo. Vocês foram pegos em flagrante.

— Fomos mesmo, é? — O homem desembainhou uma kadraga e apontou a arma para ele. — Tem certeza? — Riu com escárnio.

O sorriso de Rabar desapareceu. Seu semblante foi tomado por um misto de desespero e pavor.

Inclinou-se, contemplando o próprio figurino.

Estava sem kadraga.

Mesmo assim, arriscou usar seus poderes. Poderia perder muita energia, até mais do que imaginava. Ficaria fraco demais depois de gastá-los, mas era o único recurso que possuía.

Captou o oxigênio no ar e aqueceu o gás com o calor emitido pelos raios do Astodeise. De sua mão, emanou fogo.

As chamas se acumularam. Despejadas em jatos, atingiram a kadraga e a derreteram. Nada restou dela, senão um líquido pastoso, cheio de fumaça e fuligem.

Rabar cambaleou até o chão, fraco demais para continuar em pé.

Foi a vez de Vereta apontar-lhe a arma que tinha.

— Achava que eu não tinha kadraga, era? — gargalhou com uma expressão zombeteira.

Rabar silenciou por um momento.

— Bom, se me matar... vai assumir os riscos... que você mesma falou... — balbuciou o rapaz com a voz rouca e trêmula.

— Não estamos nem aí para isso! O plano já está a um passo para dar certo e não é você que vai estragar isso!

— Então... vai me matar mesmo? Vou logo avisando que esse galecão tem câmeras...

— Câmeras que foram tapadas! — rosnou Vereta, virando-se para o homem que teve seu nome revelado: — Aldomir, confere se tapou todas as câmeras mesmo! Naqueles mesmos lugares que lhe falei! Apenas por precaução. E rápido! Antes que seja tarde demais, e os pais deles voltem!

— Na hora! — O homem localizou a câmera daquele andar, presa sutilmente no teto, tapada com um pano preto, inibidor de imagem e som, pela ação da kadraga, que o ergueu. Na sequência, foi procurar as outras.

Rabar aproveitou ao máximo o contratempo:

— Como vão esconder... o meu cadáver...?

— Escondendo! — bradou a mulher.

— Pois é melhor já irem pensando num lugar... Não podem... simplesmente... sair... segurando um morto por aí...

— Para isso temos o porta-malas! Agora chega de conversa! Diga suas últimas palavras antes de passar a eternidade caindo no Abismo dos Tentáculos Agourentos! Sentindo o hálito quente de Adrag para sempre, sempre, sempre! Vai lhe fazer bem, eu tenho certeza! — Riu de uma forma revoltante.

Uma porta, de repente, se escancarou.

Ouviu-se a voz de Marium clamando por Vereta no andar de cima, que tinha vista direta para onde estavam.

Um tênue sorriso se formou nos lábios de Rabar, em meio à sua exaustão.

— Vai me matar... na frente... da minha... irmã? — falou num tom provocativo, pois sabia que precisavam dela viva para conseguir o dinheiro.

Apreensiva, Vereta voltou-se para a menina.

Ela vinha descendo a escada, uma passagem aberta pelas grades de proteção do corredor circundante, formando um corrimão.

— Fica aí, meu amor! Você pode se machucar! — abrandou a voz.

Escondeu a arma atrás das costas e apressou os passos na direção da garotinha.

Rabar esticou a perna até o meio da passagem.

Vereta tropeçou e caiu, derrubando a kadraga no chão.

Marium começou a chorar. Ela cobriu o rosto com as mãos e se encolheu no degrau, assustada.

Com uma rapidez espantosa, Rabar conseguiu pegar a arma.

Aos dezesseis anos, já tinha quase dois metros de altura, acompanhada de uma força descomunal. Parte dela ainda jazia em vigor, e segurava a kadraga, com toda a firmeza necessária para atirar.

Apontou a arma para Vereta e apertou o gatilho.

Mais fogo foi jorrado, dessa vez com maior intensidade. As chamas atingiram a mulher com força e a transformaram em cinzas.

Rabar não pensou duas vezes, e atirou em Aldomir também, que naquele momento vinha correndo ao encontro deles, depois de interromper o que estava fazendo.

O efeito se repetiu, e o homem que era sólido como pedra virou pó.

Rabar suspirou, olhando em volta.

O fogo se espalhava rapidamente pelo galecão, destruindo móveis e fragmentando as paredes. Com dificuldade, levantou-se, usando a kadraga para contê-lo e impedir que avançasse mais.

Jatos de água encheram o segundo andar da Esfera Central, até não deixarem nenhum vestígio de chama ou faísca.

Rabar abriu as janelas com o telec para o vapor sair.

Enquanto isso, o choro de Marium se alastrava. Era o choro de uma garotinha assustada, que tivera sua inocência de criança perturbada do pior jeito, por uma matança que resultou em fogo, água, cinzas e vapor.

Rabar foi ter com a irmã, tendo cuidado para não escorregar na piscina que foi formada.

Subiu a escada, meio cambaleante, apoiando-se no corrimão, exprimindo palavras de consolo e murmurando agradecimentos a Hita, a Deusa da Vida, por ter preservado a sua.

Sentou-se ao lado de Marium e envolveu-a nos braços, enquanto recordava dos últimos acontecimentos.

O elevador soou, anunciando a chegada antecipada do resto da família, que, além da casa revirada, encontraria o primogênito estranhamente contentado com o castigo.

Alexandre Braga
Enviado por Alexandre Braga em 22/11/2024
Código do texto: T8202803
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