A Calculista (Final do Primeiro Capítulo)

 

A Gratidão dos Simples

O Reconhecimento dos Camponeses a Celine

 

  A pequena praça parecia encolher diante da euforia dos camponeses. A alegria estampada em seus rostos refletia a gratidão genuína que sentiam por Celine. Eles se aproximavam um a um, carregando presentes simples, mas cheios de significado, como mandava a tradição herdada de seus antepassados. Cada gesto, cada palavra de agradecimento era um reflexo da importância de sua intervenção.

 

  Entre os aldeões, a jovem camponesa Jeanne, com seus olhos cansados, mas cheios de sinceridade, se destacou ao se aproximar de Celine. "Eu gostaria de lhe oferecer um presente, Mademoiselle, mas estou viúva há vinte dias. Tudo o que tinha foi gasto no enterro do meu marido. Não me resta muito..." A tristeza nas palavras da camponesa contrastava com a determinação em seu olhar. "Mas, se você aceitar, posso lhe dar um dos meus vestidos. Você ficaria tão linda como uma princesa."

 

  Celine sorriu, gentilmente tocando o ombro de Jeanne. "Não se preocupe com presentes caros. Já é mais que suficiente ter a gratidão de todos aqui. Sim, eu aceito o vestido, e o vestirei com orgulho."

Os camponeses continuaram a trazer presentes, um após o outro, até que se acumulassem de tal forma que foram necessárias duas carruagens para transportá-los. De utensílios simples a pequenas obras de arte locais, tudo tinha um valor sentimental para os aldeões, e isso tocou Celine profundamente.

 

  A comitiva de Celine se preparou para pegar a estrada, com as carruagens carregadas e os cavalos prontos para seguir a margem do rio. O grupo partiu em direção à cidade do castelo, deixando para trás a aldeia, mas não os corações daqueles que viviam nela. ‘Uma verdadeira filha de curandeira” — Falou acenando para Celine que lhe retribuiu de igual forma.

 

O Encanto da Princesa

Entre Deveres Reais e o Amor de Pai

 

  "Majestade..." O Mordomo-Mor tentou chamar a atenção do rei, mas não teve tempo de terminar sua frase.

"Papai, me desculpa!" exclamou a pequena princesa, correndo em direção a ele. Seus olhos brilhavam de entusiasmo. "Eram tantos tecidos lindos, e me demorei para escolher. Quero estar linda na minha festa!"

 

  O rei, embora inicialmente preocupado, não pôde deixar de sorrir ao ver sua filha. Com um gesto afetuoso, pegou-a pela mão e, juntos, começaram a caminhar em direção ao jardim real. O Mordomo-Mor, ansioso, continuava a seguir de perto.

 

  "Majestade, faltam apenas algumas horas e não teremos mais tempo para a caçada real se não partirmos logo", insistiu o Mordomo-Mor, visivelmente preocupado com o cronograma.

 

  "Ah, não vejo a hora de caçar o maior cervo deste reino!" O rei respondeu com entusiasmo. "Preparem tudo! Não quero esperar mais!" Ele ordenou, com o tom imponente que se esperava de um monarca.

 

  Em seguida, olhou para a filha com ternura. "Leve-a para a rainha e diga-lhe que logo voltarei com o jantar." O rei não disfarçava seu orgulho da caçada que estava por vir.

A pequena princesa, no entanto, não estava pronta para ser levada tão facilmente. Quando o rei e o Mordomo-Mor se afastaram, ela rapidamente se escondeu por trás de uma das grandes estátuas do jardim. Ao longe, a cuidadora, Madame Giselle, chamava por ela, sem perceber seu esconderijo.

 

A Jornada de Celine

Entre a Simplicidade de Verdant e os Mistérios da Corte

 

  Celine vinha em direção à cidade do castelo, sua comitiva carregada com os presentes que o ancião e os camponeses de Verdant fizeram questão de que ela aceitasse. Vestia um deslumbrante vestido azul-escuro, adornado com delicados bordados dourados que lembravam os campos de cevada ao vento. A seda suave e fluida envolvia seu corpo, com mangas longas e ajustadas, o decote ornado com finas rendas que subiam até seu pescoço. O vestido, ainda que simples em comparação aos trajes extravagantes da nobreza, conferia-lhe uma aparência refinada e imponente. Para os desconhecidos que a avistassem, Celine poderia facilmente ser confundida como uma nobre da corte, uma verdadeira dama a caminho de uma missão importante.

 

  Enquanto a carruagem avançava pela margem do rio que serpenteavam junto à estrada, Celine admirava a paisagem, deixando os pensamentos vagarem. "O que os lordes poderiam querer de mim a ponto de me mandarem buscar?", refletia, mas logo afastou a inquietação: "Depois eu penso nisso."

 

  À distância, vindo da cidade do castelo em direção à aldeia de Verdant, cinco cavaleiros seguiam pelo mesmo caminho. Um deles, atento à estrada, logo notou as carruagens à frente.

— Meu lorde, não sabia que nobres damas da corte ou pessoas de tamanha importância visitavam aldeias tão pequenas — comentou o servo do Lorde Etienne de Clairmont, intrigado.

 

  Os olhos do lorde, disfarçado como um modesto vendedor de ervas, se fixaram na comitiva. Ao cruzarem o caminho próximo a uma imponente árvore de carvalho, símbolo da força e antiguidade da região, sua atenção foi inevitavelmente atraída pela figura feminina que ocupava a segunda carruagem. Os olhares se cruzaram por um breve instante, e algo na forma como a mulher se portava lhe parecia diferente, nobre, embora ele não soubesse quem ela era.

 

  — Milady — disse o lorde, reverenciando a bela mulher com toda a cortesia de um Lorde, seguido pelos seus homens.

Celine, surpresa com o gesto, respondeu com a graciosidade de uma dama da corte. Sua voz suave ecoou pela estrada, agradecendo a saudação dos cinco cavaleiros, sem saber que um deles era justamente o Lorde que a havia convocado para o castelo.

 

  Ao chegarem à aldeia de Verdant, o lorde finalmente pôde ver de perto a situação que os camponeses enfrentavam e ouvir a nova proposta segundo as leis do reino. Sua frustração foi imediata. Tudo parecia escapar de suas mãos, e a calculista, aquela mulher que ele havia julgado com tanta curiosidade, tinha de fato se revelado uma adversária formidável.

 

  O lorde Etienne de Clairmont observava o pergaminho à sua frente, os traços precisos e os cálculos detalhados marcavam o documento que ele estava prestes a assinar. As mãos tremiam de leve, não por fraqueza, mas pela indignação de ter sido superado pelos camponeses em algo que ele julgava ser sua maior habilidade: estratégia e negociação. Não havia como fugir daquele resultado. Recusar-se a assinar significaria abrir uma brecha para que os camponeses apelassem diretamente ao rei, expondo-o como alguém que desrespeitava as leis reais.

 

  — Como vocês conseguiram esse documento tão bem elaborado? — perguntou o lorde, o tom incrédulo, enquanto analisava os detalhes da justa divisão. — Eu reconheço a validade dos cálculos e a justiça da proposta, mas quem foi capaz de fazer isso?

Os camponeses se entreolharam, temerosos em revelar o nome, até que Jeanne, uma jovem viúva, avançou com certa hesitação, mas não sem coragem.

 

  — Meu lorde, foi uma mulher que nos ajudou — disse ela, de forma respeitosa, inclinando levemente a cabeça. — Ela escreveu os documentos segundo as leis do nosso rei.

O lorde, que já demonstrava certo desconforto, repentinamente mudou sua expressão para um interesse intenso. Seus olhos se fixaram em Jeanne, e a fúria brilhou em seu olhar.

— Quem? Qual o nome dela? — perguntou ele com uma voz fria e firme, quase cortante.

 

  Jeanne respirou fundo antes de responder.

 

  — Celine, meu lorde. O nome dela é Celine. 

 

  Assim que a jovem pronunciou o nome, a expressão do lorde mudou novamente, desta vez para uma raiva contida. Seu orgulho, ferido duas vezes no mesmo dia, inflamava suas emoções. Uma mulher — uma simples mulher — havia desafiado sua posição e vencido. Ele não podia aceitar aquilo. Virou-se imediatamente para seus soldados, que, até então, estavam disfarçados de vendedores de ervas.

 

  — Encontrem essa mulher. Tragam-na até mim — ordenou o lorde, sua voz saindo em um tom quase rouco de frustração.

 

  Os soldados, sem hesitar, se livraram dos disfarces, revelando suas armaduras e armas, prontos para obedecer. No entanto, antes que pudessem partir, Jeanne, com um misto de coragem e temor, interrompeu o lorde mais uma vez.

 

  — Perdão, meu lorde, mas... o senhor pode ter cruzado com ela na estrada — disse ela com delicadeza. — Quando veio para nossa aldeia, pode tê-la visto em uma das carruagens.

 

  As palavras de Jeanne apenas aumentaram a fúria de Etienne. Ele percebeu que, além de ser enganado pela engenhosidade dos cálculos, também havia deixado passar a mulher responsável por sua humilhação. Duas vezes, no mesmo dia, ela o havia vencido. Sua raiva crescia, mas ele sabia que, no fundo, a estratégia dela havia sido impecável.

 

Uma nova missão e novos amigos

 

  Celine entrou em seu aconchegante quarto na cidade do reino de Lothaire, um espaço modesto, mas acolhedor. Ao olhar ao redor, ela logo percebeu que não haveria lugar suficiente para guardar todos os presentes que os camponeses a haviam agraciado em gratidão. Com um suspiro leve, atravessou o corredor e foi até o outro lado da rua. A pequena placa na porta exibia em letras elegantes: "La Maison des Fleurs - Gerenciada por Madame Marguerite", uma pousada local famosa pela hospitalidade e conforto.

 

  Depois de arrumar cuidadosamente todos os presentes e tomar um banho quente e merecido, Celine trocou suas vestes de nobreza. Deixou de lado o vestido refinado de seda azul com detalhes dourados e rendas, optando por algo mais simples e familiar. Escolheu um vestido de linho cru, de cor suave e sem adornos, ajustado à cintura por um cinto de couro. Seus pés descalços encontraram as botas simples de camurça, usadas para dias de trabalho na aldeia. Sentiu-se novamente em casa, mais confortável na pele de uma filha de camponeses do que numa dama da corte.

 

  Ela saiu silenciosamente da pousada, caminhando pelas ruas de pedra até a taverna, que carregava o nome rústico de "Le Vieux Chêne", em referência a uma antiga árvore que marcava a entrada da cidade. Lá dentro, o calor das conversas e o cheiro de comida fresca preenchiam o ar. Celine se aproximou do balcão e pediu um copo de vinho tinto, algo simples, mas reconfortante. Em um só dia, ela havia derrotado um dos homens mais habilidosos do castelo — o Lorde Etienne — em sua própria estratégia. E ainda o fizera sem ele sequer perceber sua verdadeira identidade.

 

  Sentada com o copo de vinho nas mãos, Celine permitiu-se um sorriso discreto. “Ah, como queria ver o rosto dele quando os camponeses lhe entregaram os documentos...” pensou, levando o copo aos lábios. O sabor doce e amargo misturava-se com a satisfação do dia.

 

  Do outro lado duas mesas após a sua, três jovens conversavam animadamente em uma mesa. Embora tentasse focar em seus pensamentos, não pôde deixar de ouvir trechos da conversa. Falavam sobre o lorde que havia sido humilhado naquele dia, sobre como ele havia subestimado os camponeses e, surpreendentemente, sobre a "misteriosa dama" que os ajudara.

 

  — Dizem que foi uma mulher, mas ninguém sabe ao certo quem ela é — comentou um dos rapazes.

— Quem diria, hein? O próprio Lorde Etienne, derrotado! — riu outro, balançando a cabeça.

— Aposto que ele está furioso. Aposto que ele vai encontrá-la — disse o terceiro, olhando ao redor como se esperasse vê-la entrar pela porta.

 

  Celine manteve a cabeça baixa, o capuz do vestido cobrindo parte de seu rosto. Sorriu de novo, um sorriso ligeiro, mas desta vez de precaução.

 

  Depois de terminar seu vinho, pagou ao taverneiro e saiu sem chamar atenção. A noite estava fresca, e ela caminhou em silêncio de volta à La Maison des Fleurs. Ao entrar, subiu as escadas devagar, já sentindo o peso do dia em seus ombros. Abriu a porta do seu novo quarto, ainda cheio de presentes, e olhou para a cama. Um misto de cansaço e satisfação encheu seu coração. Sentou-se por um momento na beira do colchão macio, ouvindo ao longe o murmúrio da cidade adormecendo.

 

  “Uma legítima filha de curandeira...”, lembrou-se das palavras de Jeanne. Com um sorriso no rosto, Celine deitou-se, pronta para o próximo desafio que o destino lhe reservava.

 

Fim do capítulo um

 

A Sales
Enviado por A Sales em 09/11/2024
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