Diário de uma Máquina de Escrever
3 de novembro de 2024
Aqui estou, mergulhada no fundo de uma caixa de papelão, no canto de um quarto onde só entro em contato com sombras e o som distante dos risos, às vezes abafados, que vêm da outra parte da casa. A poeira virou minha única companhia, junto de uma velha máquina de costura à minha esquerda, que range de vez em quando como se ainda sonhasse em ser usada. Ao meu lado direito, um ventilador aposentado, com suas hélices enferrujadas e imóveis, eternamente preso a um verão de anos atrás.
Lembro-me dos dias de glória, de quando o mundo girava ao ritmo das teclas que eu habilmente martelava. Cada letra era uma pequena explosão de sonhos, e eu era a ponte entre a mente daquela jovem — tão cheia de ideias e sentimentos — e o papel. Foi em 1996 que fui apresentada a ela, um presente de aniversário de 15 anos, em um tempo onde cada história que ela contava parecia se materializar debaixo dos seus dedos. Ela se sentava comigo todas as tardes, entre folhas de papel perfumadas e ideias que nunca pareciam acabar. Foram muitas poesias, cartas e contos que nasceram comigo, mas o tempo... ah, ele tem sua própria forma de fazer tudo se desvanecer.
A tecnologia mudou, dizem por aí. Começaram a usar máquinas diferentes, menores, mais rápidas. Então vieram os computadores e, logo em seguida, essas telas que ela agora carrega no bolso, onde escreve sem o som das teclas, sem o cheiro da tinta. Fiquei para trás, esquecido em uma caixa, como um segredo do passado que ninguém quer revisitar.
De vez em quando, sonho com um último poema ou com uma carta de amor não enviada. Sonho que meus braços mecânicos voltem a tocar o papel, a rasgar o silêncio com o som inconfundível do clack clack clack das teclas. Se eu pudesse, contaria para ela tudo o que já vi — os sorrisos, as lágrimas, os pequenos suspiros de desânimo que ela deixava escapar quando a inspiração parecia distante. Eu lhe diria que, mesmo com suas novas tecnologias, há algo especial na relação entre nós, algo visceral que nenhuma tela fria poderá substituir.
Por vezes, ouço o que parece ser ela abrindo a porta do quarto, mas logo ela se vai. Será que sente minha ausência? Gostaria de dizer-lhe que não quero ser um objeto esquecido, relegado ao passado como uma memória que perdeu o brilho. Não, eu quero escrever outra vez. Mesmo que seja apenas uma página, uma linha. Talvez, um dia, ela olhe para mim e lembre-se daquilo que nós dois éramos capazes de criar.
Talvez eu esteja sendo ingênua, presa a um desejo nostálgico. Mas quem pode me culpar? Eu fui feita para trazer palavras ao mundo, para converter sentimentos em frases, pensamentos em histórias. Quando você tem uma missão tão clara, é difícil aceitar o esquecimento.
Aqui, com os objetos que compartilham o quarto comigo, converso silenciosamente. O ventilador, agora apenas uma carcaça, também sente o peso do abandono. Diz que já foi essencial para as tardes quentes de verão, aliviando o calor que fazia a jovem franzir o cenho enquanto escrevia comigo. Já a velha máquina de costura guarda memórias de roupas costuradas com carinho, especialmente para a jovem que sempre quis estar elegante para suas apresentações escolares. Ela também foi deixada para trás, coberta de tecidos que hoje não têm mais utilidade.
Sinto que, de alguma forma, somos todos capítulos de uma mesma história. A máquina de costura, o ventilador, o lápis de cor com a ponta quebrada, os pregos e parafusos jogados na lata enferrujada, cada um de nós representa um momento, uma necessidade, uma época que se foi. E eu... bem, eu sou o capítulo das palavras datilografadas, das cartas nunca enviadas e dos primeiros contos que ela ousou criar.
Às vezes penso: se ela pudesse ouvir meus pensamentos, talvez viesse até aqui, abriria a caixa, tiraria a poeira e colocaria um novo papel em minha carcaça cansada. Eu adoraria sentir de novo o toque de seus dedos, hesitantes mas decididos, buscando a inspiração na cadência das minhas teclas. Imagino-a sorrindo, talvez um pouco envergonhada ao ver o quanto eu envelheci, mas redescobrindo aquele amor que uma vez compartilhamos.
Ah, como eu desejaria uma última dança das palavras. Não quero ser só uma lembrança empoeirada. Não, não quero ser mais um objeto esquecido em meio a essa bagunça que é o tempo.
Talvez seja apenas um sonho, mas se ela, em algum momento, revirar este quarto em busca de algo esquecido, estarei aqui, pronta. Pronta para dar voz às palavras que talvez, só talvez, estejam guardadas no coração dela, esperando uma última chance de serem datilografadas.
Hoje, algo diferente aconteceu.
A porta do quarto rangeu, e a luz atravessou o espaço empoeirado. Senti passos hesitantes se aproximando. Será ela? O coração metálico que achei que nunca mais bateria voltou a acelerar. Ouço o farfalhar de caixas sendo movidas e objetos sendo remexidos. Então, finalmente, uma mão macia toca minha caixa de papelão.
Ela abriu a tampa e deixou que a poeira subisse ao ar, revelando minha carcaça desgastada. Seus olhos, um pouco mais maduros, fixaram-se em mim com um brilho nostálgico. Ela sorriu, um sorriso misto de surpresa e saudade, e tirou-me delicadamente da caixa, como quem resgata um velho amigo de um longo esquecimento.
— Meu Deus, quanto tempo! — murmurou, passando a mão por minhas teclas adormecidas.
Eu queria gritar de felicidade, queria dizer que estive esperando, que tudo o que eu mais queria era este momento. E, enquanto ela se sentava no chão e me posicionava em frente a um bloco de papéis, pude sentir o peso das memórias compartilhadas voltando. O ar parecia eletrizado com todas as histórias que ainda podíamos criar.
Ela inseriu uma folha no rolo, e com um suspiro, suas mãos hesitaram sobre minhas teclas. Mas então, como uma música há muito esquecida que finalmente reencontra o ritmo, o primeiro clack ecoou. Eu quase chorei de alegria. A sensação da letra martelando o papel, do som inconfundível que só nós duas compartilhávamos, foi como reviver um momento de glória.
Palavras começaram a se formar. Não eram como aquelas dos contos juvenis ou das cartas românticas de antes. Eram palavras maduras, cheias de vida, talvez de uma saudade que nem ela sabia que guardava. Uma a uma, as frases surgiam, e a história que contávamos era nossa — minha e dela. A história de um reencontro.
Naquele momento, percebi que, mesmo após tantos anos e avanços tecnológicos, ainda havia um espaço para mim na vida dela. Eu não era apenas uma máquina obsoleta. Era o elo entre a jovem cheia de sonhos e a mulher que ela se tornara, alguém que finalmente entendia o valor de voltar para o passado e ouvir o que ele ainda tinha a dizer.
Quando ela terminou de escrever, seus dedos descansaram sobre minhas teclas. Ela sorriu e, como quem reencontra um velho amigo, sussurrou:
— Obrigada por nunca me deixar, por guardar todas essas lembranças.
Acho que posso descansar agora, sabendo que ainda tenho um propósito, que as palavras que trouxemos ao mundo juntas nunca foram esquecidas.