AS MASMORRAS DE CALADHAR

 

 

Kael tentava acompanhar a destreza de Brognar em meio à densa vegetação. Apesar de ter sido criado nos palácios, o príncipe não era apalermado, mas simplesmente não tinha o treinamento de um guarda real. Este seguia por entre os arbustos e cipós, golpeando-os imperturbável com o pesado facão, mesmo quando a penumbra caía sobre eles como uma mortalha sinistra.

 

– Por favor, vamos descansar um pouco! – Sugeriu o nobre, agastado.

 

– Cale-se! Quer atrair atenção?! – Brognar rebateu rispidamente, ignorando o pedido. Kael não estava acostumado com aquele tratamento; porém, respeitava o guia, que o salvara do infortúnio. Era o guarda preferido de seu pai: um leão entocado pronto para defendê-lo de qualquer perigo – e morrer se fosse preciso. O rapaz então continuou a caminhada cabisbaixo, sem que respondesse, escondendo suas queixas infantis.

 

A terra ali era uma massa grudenta de sedimentos, que se agarrava às suas sapatilhas como piche. Cada passo parecia um mergulho em direção aos interiores lamaçais de um pântano. Enquanto isso, tal qual morcegos que riam dos viajantes, as copas das árvores assomavam-se enormes e taciturnas acima deles, e os seus troncos vertiam aos céus como negras colunas. Ao redor, ouviam-se os sons das cigarras, corujas e outros animais menos amistosos, todos eles acordando para a noite. Os mosquitos, então, apoquentavam de tal modo que Kael já estava com a pele enrubescida de picadas, repleta de brotoejas. O cenário todo era aterrador para qualquer forasteiro não acostumado com a selva.

 

– Argh!

 

Ele praguejava. O guardião, de seu turno, mantinha-se inabalável... até que escutou algo anormal.

 

– Abaixe-se! – Sussurrou o corpulento Brognar, pondo as mãos no cabo da espada, enquanto Kael buscava proteção.

 

Aguçando os ouvidos, o guia tentava captar qualquer movimento ou ruído, por menor que fosse. Um grasnar suspeito ou um estalo distante eram suficientes para pô-lo em alerta. Às vezes, Kael sequer era capaz identificar a perturbação, e, mesmo assim, Brognar o obrigava a tomar uma postura defensiva. Agora, uma movimentação estranha corria a mata, como uma onda horripilante e oculta, algo que fugia aos sentidos do guarda e o deixava inquieto. O príncipe percebeu: ele tamborilava o cabo, hesitante. Contudo, nada foi captado; então, eles continuaram.

 

Lentamente, foram adentrando a floresta, que se tornava cada vez mais densa, úmida e obscura. O sol ia para o seu descanso final no horizonte, bem atrás das árvores, cujas copas pareciam se incendiar com o brilho dos últimos raios. Brognar percebeu que a claridade minguava e apressou o passo.

 

– Temos que nos distanciar o máximo possível de Carthul enquanto ainda há luz! – Murmurou ele.

 

Carthul era a cidade mais ao sul do reino. Tratava-se de um grande enclave portuário que ficava na foz do largo rio Taranvel, circundado por grandes áreas de mangues e florestas amplamente inexploradas. A cidadela também funcionava como residência de verão da corte. No entanto, naquela temporada, não havia descanso, mas sim tormenta.

 

– Brog, pare! Não aguento mais! – Gritou o exausto Kael.

 

– Mais um pouco! Se chegarmos à pedra negra, conseguiremos abrigo.

 

Foram se embrenhando na escuridão como duas serpentes fugidias. Brognar, porém, os guiava impassível. Parecia conhecer aquelas matas tal qual os nativos selvagens. Seus membros massivos abriam caminho por entre o emaranhado verde-escuro, um labirinto insondável para o príncipe. Quando a noite já se abatia sobre eles, o veterano soldado puxou o braço de Kael e disse:

 

– Veja! A pedra negra!

 

Mesmo naquela penumbra, o príncipe vislumbrou uma grande formação rochosa, um verdadeiro totem das trevas, que só era possível divisar em contraste com o céu arroxeado.

 

– Acamparemos aqui esta noite. Estamos suficientemente longe de Carthul, então podemos acender uma fogueira. – Brognar ressaltou, imediatamente recolhendo alguns galhos e folhas secas.

 

O príncipe finalmente pôde descansar, repousando em uma pedra limosa. Estava exaurido, física e mentalmente, pois a viagem até ali, mais do que apenas uma aventura desgastante em meio à selva, tinha sido uma escapada insana das ambições dos homens.

 

Kael Antaris era herdeiro do trono, embora ainda fosse um mero rapazola. Desde cedo, recebera treinamento militar, pois o rei, seu pai Vorran II, esperava que ele o sucedesse. Afinal, a dinastia já durava dois séculos, sólida e imperturbável. Contudo, as coisas não iam bem naquela época. Havia uma conspiração de nobres para depor os Antaris, de modo que o rei Vorran temia o seu assassinato. Por isso, naquele verão, encaminhou Kael para longe da corte, para o distante porto de Carthul, como garantia de que, mesmo com a sua morte, o reino poderia se manter. O barão de Carthul, Dragan, seu aliado, asseguraria a posse do filho.

 

Entretanto, os planos do rei soçobraram logo que o filho pôs os pés naquele lugar, pois o barão era um homem inescrupuloso e almejava interesses próprios. Embora não compusesse a conspiração de nobres, queria a independência de Carthul, visando transformá-la em uma cidade-estado. Por isso, quando Kael desembarcou no porto, o seu fiel escudeiro, Brognar, que o pai encarregara de proteger o filho a qualquer custo, logo percebeu a perfídia. Contactando espiões, descobriu que Dragan pretendia sequestrar Kael como forma de barganhar a independência de Carthul. O plano só não deu certo porque Brognar agiu mais rápido e empreendeu uma fuga desesperada pela selva, antes que os soldados da cidade pudessem cercá-los. Planejava sumir em meio aos mangues e, depois, voltar para a capital de barco. Mas a sua estratégia estava para ser testada...

 

– Pronto! Trouxe charque para nos alimentarmos. – O guarda, então, fincou a carne em um graveto e colocou-a para assar na fogueira.

 

– Brog, que lugar é este? – Kael perguntou pensativo. As luzes do fogaréu bruxuleavam na pedra escura, revelando formas um tanto artificiais. Ao longe, o príncipe pôde observar uma cavidade que caía na completa escuridão.

 

– Esta é a Selva de Maghrak. Os nativos dizem que, no passado longínquo, uma grande civilização existia na foz do Taranvel, governada por bruxos poderosos. Estas pedras escuras seriam as ruínas de sua capital, que agora estão tomadas pela floresta. Mas tudo isso é lenda.

 

O príncipe, observando aquelas formas, pôs à prova o ceticismo de seu guardião. Elas pareciam remanescentes de torres e colunas, feitas de um material denso tal qual o ônix. Por isso, por mais escuras que fossem, reluziam ante a luz que emanava da fogueira. Aquele efeito lhe deu calafrios, pois suscitava imaginações de uma inteligência obscura e secreta, capaz de criar cidades inteiras de pedra negra, como que projetando as profundezas de um abismo desconhecido.

 

Seus pensamentos sombrios foram interrompidos por um assovio baixo, seguido de um estampido. O príncipe, então, olhou aterrorizado para Brognar, que colocava a mão esquerda rente à têmpora: ele havia sido atingido de raspão por uma seta, que por pouco não lhe acertara! O sangue vertia da lateral de sua face!

 

– Eles nos descobriram! Siga-me! Rápido!

 

Brognar desembainhou a espada e, puxando o braço do nobre, abriu caminho pela selva. Atrás deles, ouviam-se passos furtivos e gritos abafados de homens. Como eles conseguiram se aproximar sem que Brognar os tivesse detectado, Kael não saberia dizer, exceto se fossem assassinos recrutados dentre os nativos. As tribos às vezes concediam guerreiros dos mais dissimulados, excelentes sicários a serviço dos forasteiros que podiam pagar por seus serviços.

 

Kael então percebeu que Brognar os conduzia para a cavidade que ele vislumbrara momentos antes. A luminosidade evanescente da fogueira não conseguia ultrapassar a escuridão daquele vazio.

 

– Vamos, entre aqui!

 

Quando estavam próximos, com as flechas zunindo por entre as árvores, o príncipe notou que a abertura, na verdade, era uma grande garganta que se abria em meio à floresta, guarnecida por duas daquelas estranhas colunas de ônix. O conjunto evocava a mandíbula de uma víbora.

 

Acobertando-se daquela escuridão, os dois se enfiaram ali e aguardaram. Os perseguidores também se detiveram, mantendo-se igualmente silenciosos. Claramente, aqueles homens foram contratados pela conspiração, pensou Brognar, pois não eram soldados de Carthul, barulhentos e despreparados. Ele teria percebido sua aproximação. Ao longe, pôde observar um deles, que remexia as coisas deixadas perto da fogueira. De fato, era um dos nativos: baixo, atarracado, de pele morena, coberto de musgo. Portava apenas uma tanga e uma faca pontiaguda. Um perfeito camaleão da selva, inescrutável. Um grupo destes não podia ser identificado, senão por sussurros selvagens assemelhados ao pio de uma coruja ou ao serpentear de uma áspide: um estrangeiro não perceberia a diferença entre eles e a natureza. Todavia, a sua intuição mais cedo estava certa, de que algo se escondia pela penumbra como um lagarto rastejante. 

 

De toda forma, os companheiros lá estavam, ainda vivos, aguardando impacientemente qualquer indício de que os nativos deixassem seu esconderijo. Mas eles eram ardilosos... Os minutos se passaram sem que as partes da contenda se movimentassem e, à medida que a adrenalina baixava, Kael percebia que, atrás de si, vinha da caverna um bafo quente e fétido que soprava seus cabelos. Aquilo lhe deixou ouriçado. Até que Brognar, com um toque em seu ombro, sugeriu que saíssem sorrateiramente, pensando que tinham despistado os assassinos.

 

Quando deram o primeiro passo para fora da abertura, um farfalhar dos arbustos próximos denunciou uma presença. Com um grito grave, um homem baixo e musculoso projetou-se para cima de Brognar, que, com um movimento em forma de arco, tão rápido quanto um bote de naja, deferiu-lhe um violento golpe de espada. O assassino caiu desfalecido a centímetros de Kael, que assistiu à cena impotente e apavorado.

 

A seguir, dezenas de outras vozes puderam ser ouvidas. Era evidente que os dois estavam cercados. Em meio à escuridão, temiam que, a qualquer momento, um ou mais assassinos pulariam ao seu redor empunhando facas. A única alternativa era retornar à proteção da sinistra caverna.

 

– Corra! Volte para lá!

 

Brognar, então, conduziu-os de volta para a cavidade. Estranhamente, quando eles retornaram, os gritos dos nativos cessaram e o silêncio taciturno voltou, denunciando um temor supersticioso. O motivo lhes era desconhecido, mas o príncipe percebeu uma maldade subterrânea ali, algo que nem mesmo aqueles assassinos arriscavam perscrutar.

 

O tempo se perdia no abismo das sombras e as horas passavam como velas negras em um plácido oceano, que poderia, a qualquer momento, revoltar-se em uma tempestade. Brognar, o astuto servo do rei, veterano de grandes batalhas, percebia com seu faro de cão velho que aqueles nativos não sairiam dali, mas tampouco ousariam entrar na caverna. Esta era a única vantagem que tinham.

 

– Não sei o que tem aí dentro, mas se eles não querem entrar, nós vamos! Talvez achemos uma outra saída.

 

– Não, por favor! – O príncipe objetou, enquanto sentia seus ossos triturarem-se em espasmos de medo.

 

– Estamos cercados. Não há outro jeito. – O veterano respondeu sem emoção.

 

Brognar parecia desprezar a superstição dos nativos, mas Kael, embora apavorado, tinha sensibilidade suficiente para pressentir as emanações cruéis que saíam dali, as quais iam muito além do vapor pútrido de uma fera.

 

O guarda, então, puxou alguns gravetos próximos, friccionando a espada com violência sobre eles. Obteve parcas fagulhas, suficientes para que induzissem o fogo. Enrolando um toco com uma peça de tecido, criou uma tocha improvisada. Com isso, pôde vislumbrar o interior da caverna.

 

Kael estava certo: aquilo não era uma formação natural. A garganta negra descia e afinava-se tal qual um funil irregular até uma estreita passagem, de onde parecia vir a brisa fétida. A passagem era sustentada por colunas escavadas na própria pedra, indicando ação humana. Brognar, impassível, logo descia o escabroso declive, que se assemelhava a uma grande escada com degraus desgastados. Kael ia atrás, apavorado. Quando chegaram ao fundo, o impávido escudeiro exclamou:

 

– Esse bafo parece ser de alguma fera, um jaguar talvez. Pode ser sua toca. Vamos entrar cautelosos. Fique atrás de mim!

 

Pondo a espada pronta para o bote e a tocha à frente, Brognar iluminou o que parecia ser um corredor. Ele, então, adentrou-o, e o rapazola veio logo atrás, como um guerreiro guarnecido por seu escudo.

 

A escuridão era tamanha que sequer parecia natural. A tocha, nada mais que um toco incandescente, mal iluminava um palmo adiante. Mesmo assim, foram penetrando o corredor devagar, a respiração suspensa de medo e de asco, pois o bafo pútrido revirava seus estômagos. Quanto mais avançavam, pior ficava.

 

Depois de algum tempo, perceberam que aquilo ali tinha sido uma grande estrutura no passado. Isso era evidente porque o corredor, depois da abertura, era atravessado por várias passagens, a maioria delas obstruída por gigantescos pedregulhos provenientes do desabamento da edificação. Por isso, a esperança de encontrar uma outra saída impeliu-os para frente, apesar da atmosfera horripilante do local.

 

Logo eles se depararam com uma abertura que não estava bloqueada. “Cuidado!”, Brognar murmurou, enquanto projetava a tocha para dentro dela, espiando. Viu apenas outro corredor, bem pequeno e entrecortado por cavidades que se assemelhavam a celas, todas separadas por grades oxidadas. Claramente, tratava-se de uma antiga prisão, completamente fechada por dentro. Não vendo grande valor em entrar naquele recinto selado, o guia já se punha adiante no corredor principal, quando ouviu um sussurro.

 

– Shhh!!!...

 

Era quase inaudível, mas carregava um sofrimento oculto, como se fosse um suspiro emanado do próprio calabouço sinistro. Rememorava vagamente o gemido baixo de uma criança ou de uma mulher.

 

– Shhh!!!...

 

– Ouviu isso?! – Kael também escutara o uivo, desta vez reverberando fracamente pelas paredes cavernosas. Os dois logo voltaram ao corredor da prisão e, adentrando-o, foram seguindo o lamento, que parecia vir da última cela. Enquanto passavam pelas câmaras, percebiam esqueletos dentro de cada uma delas. Com horror, constataram que alguns deles... não eram humanos! Formas horrendas jaziam acorrentadas naquelas celas, restos de criaturas nunca vistas antes. Com aquela visão, até mesmo Brognar, que mantivera a compostura, aterrorizou-se.

 

– Que tipo de lugar é esse?! – Exclamou.

 

Enfim chegaram à última cela, de onde provinha o choro, e Brognar aproximou a tocha. Lá estava uma figura acocorada num canto, que parecia uma criança, mas algo de estranho havia nela. De repente, ela se virou. Com um sobressalto, os dois homens deram um berro de pavor e asco: o elemento vagamente lembrava uma pessoa, mas tinha uma pele cinza, de aspecto viscoso. O que poderia se chamar de cabeça era mais uma protuberância que saía do restante do corpo, dentro da qual havia uma cavidade, um buraco horripilante de onde emanavam aqueles sons. A criatura não tinha forma, não tinha rosto, era uma massa acinzentada com essa cavidade na cabeça. Quando se virou para eles, soltou um grito agudo, pavoroso, incomparável a qualquer coisa que eles já tivessem ouvido, e imediatamente tentou se libertar daquela cela, jogando seu corpo descontroladamente contra as grades enegrecidas.

 

Os dois companheiros, numa carreira louca, deixaram trôpegos aquele recinto bizarro, alcançando novamente o corredor principal, perplexos, aterrorizados e ofegantes.

 

– O que era aquilo?! Vamos sair daqui agora!

 

Dirigindo-se à saída, a passos largos, os pensamentos ainda desconexos em vista daquela abominação, finalmente vislumbraram a passagem... mas não conseguiram seguir adiante.

 

– Ah, essa não! – Suspirou Brognar.

 

Iluminadas por tochas, lá estavam as silhuetas de, pelo menos, dez homens, os quais desciam a escadaria arruinada da caverna e se avolumavam diante deles portando facas.

 

A saída estava fechada. Os assassinos, apesar de não ousarem entrar naquele corredor, observavam sua presa, à distância, com risadas debochadas. De algum modo, sabiam que os dois não sairiam dali com vida e o seu serviço, enfim, estaria completo.

 

Não restava a Kael e Brognar senão continuar pela macabra galeria, sem saber o que vinha adiante, exceto pela vaga percepção de perigo gerada por aquele vapor pútrido. Resignados, viraram-se novamente para o interior e, seguindo adiante, iluminados pela tocha anêmica, passaram por várias e várias portas. A maioria estava arruinada, mas, as poucas que ainda se mantinham abertas, eles não ousavam adentrar.

 

Enquanto avançavam, uma sensação apavorante foi tomando sua consciência, amplificada pela força do vapor que emanava dali: algo sórdido pairava naquelas catacumbas, um mal antigo e disforme. Não sabiam ao certo o que era, pois aquilo crescia em suas mentes como uma serpente saída de seus recônditos.

 

Enfim, chegaram ao que parecia a divisória entre dois ambientes. O caminho subitamente se encerrava numa estranha fissura, talhada na própria pedra. Ela evocava a bocarra de um animal feroz, dado que o umbral era contornado por... Facas? Dentes? Não saberiam dizer. A imagem era hedionda. E, como complemento, o ar tornou-se de uma pestilência densa. Kael não aguentou e pôs-se a vomitar em um canto.

 

– Nós vamos entrar aí?! – Indagou, tentando se recompor.

 

– Vê alguma outra saída? – Brognar retrucou.

 

Eles, então, adentraram por aquela passagem sinistra. Daí em diante, o corredor se alterou completamente: antes feito de pedra, agora era revestido de um material viscoso, quase como uma membrana pegajosa. O ar, cada vez mais intragável, praticamente os sufocava. Mesmo assim, Brognar conduziu-os fundo naquela vereda, até que subitamente paralisou: à frente, pelo que pôde vislumbrar da parca luz, havia um abismo. O chão desapareceu e seus pés quase falharam. Justamente desse precipício é que parecia vir o bafo odioso.

 

– Este é o fim. Não podemos mais avançar.

 

Quando disse aquilo, sua voz ressoou, tal qual um eco, mas abafado pela cobertura gosmenta das paredes. E veio uma resposta que congelou o sangue dos dois:

 

– Ajudem-me!

 

Era um murmúrio grave de um homem que parecia próximo. Brognar não percebeu ameaça naquela voz, por mais estranho que pudesse parecer. Projetou a tocha para frente, para o vazio, e horrorizado vislumbrou, bem ao lado do portal do abismo, uma figura grudada na membrana da parede, quase que inteiramente envelopada por ela, arfando de forma pesada, sorumbática.

 

– Ajudem-me! – Repetiu o sujeito.

 

Brognar, por mais apavorado que estivesse, decidiu agir. Sentiu institivamente que aquele homem traria respostas às suas dúvidas.

 

– Segure a tocha! – Exclamou para Kael.

 

O desconhecido permanecia numa espécie de casulo a poucos centímetros da abertura. Por isso, foi fácil fazer um corte lateral com a espada, dado que a massa gosmenta facilmente se decompunha. Todavia, quando Brognar efetuou esse talho no casulo, a estrutura colapsou e o homem precipitou-se no abismo. Num salto, o escudeiro conseguiu agarrar seu braço, ele mesmo quase caindo. Com a ajuda de Kael, arrastaram-no para a borda e, enfim, colocaram-no dentro da passagem.

 

Então tiveram um vislumbre de suas feições: eram magras, quase cadavéricas. Sua pele tinha uma cor acinzentada, macilenta. As roupas, meros trapos. Estava como um morto-vivo e mal conseguia pôr-se de pé. 

 

– Obrigado... Vamos sair daqui o mais rápido possível! – Sua voz parecia sair de algum precipício obscuro.

 

Os dois carregaram o homem com dificuldade pelo caminho gosmento, cada qual em um ombro, até vislumbrarem a cavidade por onde entraram; mas, num urro de desespero, viram que ela... estava se fechando! A porta dentada lentamente se cerrava, como que impelida por músculos preguiçosos de um bicho senciente, o qual percebera o grupo dentro de si. Correndo como doidos, puxando o moribundo desesperadamente pela gosma, passaram por ela no último instante. Brognar ainda teve o infortúnio de ter a panturrilha rasgada por uma das serras, antes que pudesse, enfim, desabar para fora da fenda. A cena era grotesca: com a passagem obstruída, aquilo ali parecia um grande e ignóbil sorriso inserido em uma face sem olhos, que, com sua feição macabra, invocava simultaneamente ironia, deboche e crueldade.

 

Tentando recuperar o fôlego, o que era difícil naquela atmosfera tenebrosa, os companheiros puderam se voltar ao sujeito macilento. Perguntaram a ele:

 

– Quem é você? O que é esta estrutura?

 

O velho hesitou. Inabalável, mesmo depois da quase-morte, parecia meditar em profundezas desconhecidas, como que evocando grandes histórias do passado. O semblante recuperava o vigor.

 

– Chamo-me Zar'Gathul... e estas são as Masmorras de Caladhar.

 

Queixos caíram e olhos se arregalaram.

 

– Zar'Gathul, o mago?! – Brognar sobressaltou-se incrédulo. – Não pode ser! Dizem que Zar’Gathul viveu há três mil anos! Seu nome não passa de um mito!

 

– Pois aqui estou.

 

Kael estava deslumbrado. Lembrava daquele nome em rodas obscurantistas da corte.

 

– Se é mesmo quem diz ser, pode explicar como está vivo?

 

– Por meio das artes esquecidas de meus inimigos, que me deixaram ali em tortura. Meu corpo e meu espírito foram embalsamados pelos líquidos de Xalthor! Fui atravessado por eras de vapores pútridos! Mas aqui estou, intrépido, depois de milênios!

 

O súbito entusiasmo daquelas palavras assustou os companheiros. Zar'Gathul, antes um cadáver ambulante, agora se impunha altivo.

 

– Vocês têm minha eterna gratidão, pois salvaram-me das brumas do esquecimento! Quais são os seus nomes?

 

– Este é Kael da casa de Antaris, príncipe herdeiro dos sete reinos. E eu, Brognar, guarda do rei Vorran.

 

– São nomes que me escapam... vastos foram os séculos em que passei dentre os mortos! No entanto, posso lhes dizer: príncipe Kael, você será rei em breve! Um notável rei, talhado pelas agruras! E contará com a minha ajuda, em agradecimento a esse ato de benevolência. Mas grandes são os perigos! Sim, grandes... posso perceber. A coroa está por um fio! Os inimigos se achegam de todos os lados!

 

Os companheiros, impressionados tanto pela repentina desenvoltura daquele homem, quanto pelas premonições desconhecidas e reveladoras, somente escutavam as suas palavras, que ressoavam fundo naquelas cavernas como uma faca que perpassa a carne podre. Sabiam que tinham, diante de si, um poderoso aliado.

 

– Escutem-me: estamos nas Masmorras de Caladhar, a antiga capital do Império Sha'raek! Os milênios passaram, o império caiu, e as masmorras permaneceram! Esta hedionda arquitetura foi criada do mais sólido ônix, capaz de suportar as eras. Obra dos malditos bruxos de Caladhar! Um câncer que se espalhou pelo mundo ancestral, agora apenas uma reminiscência, exceto por esta estrutura maligna que deixaram.

 

Ele continuou:

 

– Essa abertura serrilhada é a boca da criatura Xalthor! Um demônio antigo que era adorado pelos sacerdotes daquele império do mal. Suas entranhas descem até o inferno e vocês quase caíram em seu estômago! Viram as celas da entrada? Eram armazéns de comida desse ser hediondo. Populações inteiras foram absorvidas pelo monstro!

 

Com asco, os companheiros perceberam que, na verdade, estiveram dentro do esôfago da criatura. O corredor de pedra, que terminava na boca do verme, nada mais era do que uma proveta pela qual se encaminhava o alimento do ser macabro.

 

– E... o que era a criatura da entrada?... A massa disforme sem rosto?! – Kael indagou, trêmulo.

 

– Vocês devem ter topado com algum prisioneiro torturado pelos bruxos! Alguém que, como eu, permaneceu por éons nas infindáveis reservas da boca faminta, esperando para servir como comida do ser abominável; mas que nunca o foi, e, não tendo o meu poder, tornou-se um arremedo de vida, uma alma dilacerada, proibida de deixar o corpo! Pobrezinha!

 

Brognar, taciturno, querendo sair daquele antro, sugeriu ao feiticeiro:

 

– Zar'Gathul, por favor! Estamos cercados pelo lado de fora! Um grupo de assassinos bloqueia a entrada. Há alguma outra saída?

 

– Várias são as passagens de Caladhar!

 

O mago levantou-se num pulo vigoroso que os assustou. A seguir, proferiu algumas palavras inaudíveis: um feitiço que criou um fulgor espectral no recinto, revelando uma alavanca antes oculta pelas trevas. Zar'Gathul, então, acionou-a e uma passagem secreta despontou, para espanto dos companheiros.

 

– Contemplem a engenharia infernal de Caladhar!

 

Adentrando pela abertura revelada, eles desembocaram numa larga câmara, iluminada por uma luz vermelha fantasmagórica. Mirando o alto do salão, viram que ela provinha de um grande rubi situado no zênite do teto abobado.

 

– Que diabos...

 

– Esta é a Câmara dos Eleitos, por onde os sacerdotes de Caladhar comandavam o mundo! Não se aproximem: aquele rubi é o guardião! Espadas são inúteis aqui...

 

Os homens passaram os olhos pelo interior da câmara nefasta. Era um recinto circular, em cujas paredes situavam-se portões de ferro sólidos.

 

– O que são aquelas aberturas?

 

– A resposta para todas as suas inquietações! – Disse Zar'Gathul. Virando-se para Kael, que estremecia pequeno e irrelevante, o mago exclamou: – Príncipe, levanta-te! Está na hora de se portar como tal! Se passar pelo teste de hoje, grande será a recompensa!

 

O nobre fitou-o deslumbrado. Apesar de sentir-se intimidado por tudo aquilo, um sopro de ambição e destemor veio daquelas palavras, como se o escudassem numa aura primitiva de conforto.

 

– Vou distrair o guarda e, assim que a luta começar, vocês devem correr para o segundo portão à direita. Não demorem ou serão mortos!

 

Zar'Gathul, então, posicionou-se: caminhou lentamente em direção ao rubi, que ficava cada vez mais vermelho e preenchia a câmara com uma luminosidade infame. Levantando os braços delgados, gritou:

 

– Bruxos de Caladhar, pensaram que eu estava vencido?! Eis-me aqui, vermes!

 

Quando acabou de proferir aquelas palavras, uma tempestade de raios azuis saiu de suas mãos, iluminando inteiramente a câmara. Imediatamente, o rubi contra-atacou e lançou feixes vermelhos sobre o mago. Eles ficaram naquela luta assombrosa, ora a luz rubra aumentava, ora a azul, num violento tornado elétrico.

 

– Corram, tolos!

 

Brognar então tomou a iniciativa e disparou até a porta indicada, mas, por conta da perna ferida, seus movimentos eram desajeitados e oblíquos. Kael estava a três passos atrás quando o escudeiro tropeçou e caiu. No mesmo instante, ele foi atingido por um relâmpago escarlate, impelindo-o vários metros à frente.

 

– Brog!

 

Por um segundo, Kael vislumbrou o corpo do guarda, inerte, sem vida. Mas o seu lamento foi breve, pois uma outra descarga quase o alvejou. Num salto, ele recolheu a espada caída e empurrou o largo portão de ferro com todo o peso de seu corpo, adentrando a escuridão. Quando trespassou o umbral, uma claridade cegou seus olhos.

 

Pôs a mão sobre a vista, tentando se adaptar àquele fulgor. Para seu espanto, viu-se num saguão de pedra, revestido de tapeçaria fina, com largas janelas voltadas para o leste, de onde se via o sol nascente. O ambiente lhe era familiar. Olhou para trás: a porta de ferro havia sumido!

 

– Meu rei, o púlpito está pronto. O povo o espera.

 

Kael empunhou a espada e tentou identificar a origem daquela voz. Contudo, notou que ela não provinha do mesmo cômodo onde estava. Lentamente recobrando a visão, percebeu que havia voltado... aos aposentos reais! Ele havia atravessado um portal! Lembrando imediatamente de seu pai, o príncipe fez um movimento para sair daquele recinto, quando ouviu uma segunda voz:

 

– Ah, agora vou mostrar ao povo quem manda!

 

Kael reconheceu o interlocutor. Era Dragan, o barão de Carthul! Ele era o chefe da conspiração! Os espiões estavam errados!

 

Uma neblina escarlate obscureceu a vista de Kael, tomado instantaneamente por um ódio sanguinário: uma emoção que ele nunca sentira antes. Claramente, os conspiradores assassinaram seu pai e instalaram Dragan no trono. E lá estava ele, de volta ao palácio num golpe do destino, com uma grande adaga, enquanto o novo rei preparava-se incauto para o discurso de posse.

 

O mago estava certo: se ele queria a coroa, deveria dissipar a bruma do medo! Sacrificá-lo no altar de sangue! De fato, nenhum pensamento a mais passou por sua mente, que estava focada em apenas uma coisa: MORTE. O medo, a dúvida, a ansiedade, o pesar por Brognar e pelo pai: todos queimavam em meio às brasas do ódio. Um frenesi primordial, como uma torrente mortífera, inundava seu ser. Essa maré primitiva que estava esquecida nas estruturas inatas do homem, e agora ressurgia, mesmo depois de séculos de civilização. Quando essa torrente chegou ao ponto de transbordar, Kael afastou a tapeçaria e, numa carreira insana, berrou ao penetrar na câmara real:

 

– MORTE!!!

 

Dragan voltou-se assustado para ele. Paralisado pela surpresa, nada pôde fazer: Kael, num salto repentino, rasgou seu pescoço. Seus olhos reviraram para o Hades, o sangue escorrendo pelo salão numa onda rubra. Com um gemido, o conselheiro eunuco abandonou o cômodo apavorado.

 

O usurpador caiu desfalecido em pavorosos tremores. Kael então retirou a coroa ensanguentada, pondo-a sobre sua própria cabeça. Após, sentou-se no trono, soberano e altivo, quando uma risada delirante atravessou o salão vinda do além: era Zar'Gathul! Kael gargalhava junto, numa volúpia sanguinária.

 

LS Boynard
Enviado por LS Boynard em 28/10/2024
Reeditado em 28/10/2024
Código do texto: T8183844
Classificação de conteúdo: seguro
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