Absinto Abissal
Nem tudo que expõe beleza aos olhos e apraz os sentidos, realmente traz beleza em sua essência. Lamento que descobri isso tarde demais. Não me resta muito tempo, mas devo contar minha história. Meu nome é Rory, e eu mesmo não acredito nas coisas que fui capaz de fazer...
Sempre fui um indivíduo curioso e aficionado pelos mistérios da vida, especialmente à dimensão sutil, oculta e feérica.
Fiz parte de alguns grupos ocultistas, herméticos e de seitas; até então, nenhuma que fosse maligna. E durante os últimos anos, incansavelmente, procurei por uma garrafa de absinto. Mas não era qualquer uma, além do teor eminente (90% de álcool!), ainda se tratava de algo único, segundo o que diziam, destilado por criaturas que não habitavam este plano terreno.
Após percorrer todas as lojas, tavernas, adegas e contatar mercadores clandestinos, por fim, encontrei. Pertencia a Enid, uma colecionadora, uma mulher octogenária, mas de incrível vigor e lucidez. Era uma garrafa bem grande, e ela a mantinha numa cristaleira — de vidro inquebrável, cujo material, mais tarde, descobri que havia um feitiço protegendo-o. O frasco permanecia junto com várias outras bebidas raras. Mas nenhuma tão valiosa quanto o Nionnach Brígh, o absinto ao qual eu procurava.
Não faltaram ofertas minhas àquela mulher idosa, ofereci altas quantias, tudo que eu tinha. Cheguei às portas do ridículo e tentei até seduzi-la — por pouco não obtive êxito.
Durante duas décadas, fui um artista plástico de grande expressão, estimado e rico, até que minha verve sumiu. Tornei-me um sujeito sem inspiração, sem uma gota de talento, incapaz de produzir novas obras. Por conseguinte, lembrei do famigerado absinto, capaz de conceder um talento descomunal e genialidade até nos mais medíocres, incutindo visões maravilhosas, experiências inenarráveis, mágicas, de fato. Desde então, passei a perseguir tal bebida dos deuses — ou dos demônios —, sempre obstinado.
Todavia, essa obsessão me custou caro, começando pelo fato de ter sacrificado minha própria idoneidade. Tentei roubar o absinto, mais de uma vez. A velha mulher me flagrou, numa das vezes, e apontou seu revólver para mim. Ameaçando-me, caso me visse novamente.
Não demorou muito e tentei de novo. Desta vez, com um plano melhor arquitetado, e com mais pessoas envolvidas. Contratei um sicário — que matava a preço fixo — e também um feiticeiro. Tive êxito.
Mas nem tudo saiu como o planejado... Logo que o pistoleiro se retirou, o feiticeiro buscou me trapacear. Para a minha sorte, eu também estava armado e atirei nele, três vezes, poupando munição, caso me ocorresse mais algum imprevisto. A essa altura, tudo já havia sido encaminhado para os extremos. Antes de morrer, o sujeito removeu o feitiço da cristaleira e, finalmente, pude abri-la! Fiquei eufórico. Aquilo havia me custado tanto, consumindo-me tantos anos, que parecia inacreditável, mera alucinação, contudo, era real!
Não perdi tempo. Coloquei o absinto numa caixa protegida que, por sua vez, guardei em minha mala. Corri dali o mais rápido que pude — era uma casa afastada e sem vizinhos — e um cocheiro já me aguardava.
Nem dormi. Assim que cheguei à minha residência, logo tratei de apanhar os manuscritos, onde detalhava o ritual daquele mirífico absinto. O ritual era em parte mundano e em parte ocultista e cerimonial. O aspecto mundano se referia ao ato de preparar a bebida e, ao final de tudo, a ingestão do líquido. Já a segunda parte, constituía-se nos preparativos mágicos. Peguei um copo arredondado, limpo, nunca usado e previamente consagrado; a colher específica para tal conjuntura, água gelada e açúcar. Deixei o coquetel pronto.
Tracei um triângulo virado para cima, desenhando uma linha em sua superfície — representando o ar e seus respectivos elementais —, posicionei um incenso numa das extremidades, e logo o acendi, observando a forma que surgia através da fumaça branca. Tirei um canivete do bolso e fiz um corte no meu dedo indicador da mão direita, apertei até que começasse a sangrar, e com o líquido escarlate, escrevi umas palavras dentro do triângulo, dizendo-as em voz alta, num idioma celta primitivo. Na sequência, bebi o absinto.
A primeira sensação foi minha cabeça girar, também me senti bastante enfraquecido, drenado, mas em instantes, o que eu mais buscava ver começou a surgir... Do bocal da garrafa saía uma fumaça verde, bem como do incenso, e ambas começaram a se misturar, numa espécie de dança imaterial.
A imagem logo se transmutou, adquirindo contornos antropomórficos, uma silhueta feminina, sinuosa e com asas de borboleta. Por fim, a bela criatura já estava manifestada, mas de costas para mim. Meu coração disparava, era um misto de apreensão e êxtase, mas que num átimo se transformou em horror, quando a delicada figura se virou para mim e fitei seu rosto, que apesar de belo, o reconheci de imediato... Era Enid! A velha colecionadora que encomendei sua morte, a dona do absinto, no entanto, sessenta anos mais jovem! Que alucinação diabólica era aquela?! Será que eu estava bêbado, louco, tendo um pesadelo?!
Ela sorriu para mim e eu tremi, intensos calafrios percorriam meu corpo. Dei alguns passos para traz, mas tropecei e caí, ainda sem desviar meus olhos dos dela... A vida é imprevisível; há tempos queria ver a famigerada Fada Verde e, agora que a vi, estava sendo consumido pelo temor.
— O que você tanto teme? — perguntou-me a bela criatura. — Pensei que ficaria feliz por rever um rosto conhecido.
— Perdi a sanidade, é isso? Tanto trabalho, tanto tempo, para no fim terminar desta forma, louco, solitário, com medo e arruinado — falei, já não conseguindo conter as lágrimas.
— Não seja tão dramático. Aliás, todos os gênios são loucos e tristes. E não era isso que você buscava, recuperar sua genialidade, seu talento e obter inspiração infindável? — disse a Fada, com sua voz branda e deliciosa.
— Mas a que preço?! Pensei que já havia pagado todos!
— Em breve você saberá.
Minha verve retornou, voltei a pintar telas sublimes, e até fiz esculturas, algo que não era a minha especialidade. Em questão de semanas, já fazia exposições nas cidades mais insignes do mundo, como Londres, Roma, Paris, Viena, Berlim e Madrid. Recuperei meu prestígio e riqueza. Porém, sentia-me mais exaurido que nunca. E enquanto minha criatividade só aumentava, meu vigor físico diminuía. Eu já havia perdido trinta quilos e não parava de perder peso. Chegou ao ponto de brotarem ideias magníficas em minha mente; contudo, não consegui mais segurar o pincel e reproduzi-las... Meu desfecho foi falecer em cima de uma tela inacabada, junto a uma poça de absinto e vômito.
A Fada — cujo nome verdadeiro era Faylinne, da Corte das Unseelie, que depois descobri que eram as mais sombrias e traiçoeiras — permitiu que eu escrevesse minha história nestas páginas. Mas agora chegou o momento de arrastar minha alma para o Annwn, o submundo, fazendo com que eu a sirva, por tempo indeterminado.