Órbita - Parte 2/2
— Quem exatamente é você? - as palavras de Gilda caminhavam em cima de um bocejo
Um disparo oco criou eco pelo campo. A pupila dela relaxou em susto:
— Você trouxe guerra até a mim, outra vez? - as palavras agora se amontoavam no chão, sem movimento. Gilda foi se afastando sem tirar os pés do chão.
Outro disparo. Sombras em forma de pássaros e animais silvestres se revezavam em esconder a luz do sol, sons estridentes perfuravam os capazes de ouvir e as árvores chicoteavam umas às outras.
— O que você quer? - cada letra ensopada pela vontade de não estar vivendo aquilo - Por que está fazendo isso?
A criatura não entendia sua própria incapacidade de acertar a presa e precisava melhorar a estratégia se quisesse mais essa vitória. A bagunça ao seu redor devia estar nublando seu julgamento. Abaixou a arma e se endireitou em um movimento.
— Meu nome é Peat, muito prazer.
Gilda se dissolveu, organizando as pernas em forma de cruz e as asas pesadas, sem definição. Tocou o chão ao mesmo tempo em que todo o arredor se acalmou. Seus olhos encaravam forçadamente o recém-conhecido.
— Muito bem, então qual sua história, Peat? E o que posso fazer para você me deixar dormir em paz? - roucamente confiante.
Peat dobrou o pescoço, tentando acessar a cômica situação. Largou a arma no chão e espelhou os movimentos à sua frente. Se olhasse ao redor — o que não fez —, perceberia que o espetáculo de antes virou mera fotografia. Mas não deixou de perceber um conforto inquietante nos ouvidos.
Agora de perto, ela aparentava menos armadura e mais pássaro. Sem um plano coerente ainda, tirou o capacete de casca de árvore para revelar uma arrogante pele amarelada. Conscientemente gravando cada movimento de Gilda para prever o seu próprio.
— Minha história é insignificante - Escolhia as palavras escaneando compulsivamente por um ponto fraco — O que acha de um conto de fadas, ou melhor, uma cantiga de ninar?
A expressão vazia era um convite para que ele continuasse a falar.
— Muito bem, Gilda, vou te contar uma história: Da “deusa” que inspira desertores e se esconde em idiotas. Porém, se eu levar a sua cabeça, isso vai criar soldados.
A ameaça não pareceu surtir efeito.
— Essa sua luta, qual o tema? — A pergunta veio com um toque de curiosidade verdadeira, quase como um convite.
— Tema? — Atônito, não conseguia calcular se era um truque ou se ela estava mesmo interessada.
— Sim. As batalhas sempre me encontram, — o peso da fala atravessava-lhe o corpo — mas se a sua for suficientemente interessante, estou disposta a ajudá-lo. Você parece motivado, Peat. Qual a razão por trás disso?
Peat instantaneamente pegou novamente a arma, mirando diretamente nos olhos dela
— Qual o seu plano, criatura ardilosa? - Encheu as narinas de coragem.
— Meu plano? Lutar mais uma guerra inútil e descansar por pelo menos cem anos. Em um lugar novo, claro, já que esse foi descoberto.
— Inútil? - Se levantou em fúria, arma em riste e um potente desafino - fomos invadidos, pilhados e assassinados por um povo vizinho. E a nossa população profere rezas vazias em seu nome enquanto fogem como covardes.
Peat começou a caminhar selvagem em direção à deusa-pássaro, que o encarava com desdém. Ele ia aumentando o tom enquanto se aproximava:
— E você aqui, dormindo. Completamente aquém do que aqueles idiotas esperam de você.
Chegou próximo o suficiente para tocá-la com o metal frio da arma e só assim que ela saiu da própria inércia. Se cobriu um pouco com as asas e retomou o contato:
— Não tenho a melhor das memórias — os olhos estudavam a própria mente e a mão de Peat que segurava a arma — mas eu diria que já conheço essa história em outras versões. Sua guerra não é digna suficiente para que eu saia daqui, sinto muito.
Junto com o ponto final, se levantou e começou a ir em direção ao ninho de antes, decidida a retomar o sono. E enquanto o mundo ao redor voltava a ganhar movimento, o soldado demorou alguns segundos para retomar a própria consciência. Observava a movimentação fluida dela até o ninho e re-assistia a fala suave de Gilda, os rostos que tinha deixado em casa, experimentando a batalha “inútil” em suas entranhas projetar imagens através dos próprios olhos.
Quando retomou o controle, sua vista estava nublada, relendo toda a trama até aquele momento. Mesmo com a aparência calma, seu alvo parecia constantemente proteger um resquício de pele abaixo de ambos os ombros. Séculos de história e nenhuma linha descrevia aquele tecido à mostra.
Tensionou o braço, mirou e assistiu com um misto de dor e prazer à floresta que se invernizava. Um último grito ressoou pela mata matando tudo o que tocava, até que o nada chegou. Nem corpo, nem pena, nem ninho. O fim do falso templo em forma de floresta.
Peat começou a percorrer todo o perímetro exasperado: precisava de uma prova para levar pra casa, recrutar as tropas, começar e vencer a guerra. Nada.
Então gritou por Gilda. Por ajuda, por pena, por frustração. Nada.
Com as pernas e a garganta cansadas, ajoelhou para cavar a terra morta procurando um significado, mas era tudo o que tinha. Nada.
Juntou montes com as próprias mãos, enfiando aquela matéria nos próprios bolsos. “Era suficiente, era suficiente”.
Deitou na terra fria com a promessa de, no dia seguinte, caminhar para qualquer direção. Mesmo que o horizonte indicasse o mesmo vazio que preenchia os seus bolsos.
Em uma caverna longe dali, uma pantera gigantesca se contorcia para se limpar das penas.
— Uff, sempre me esqueço do quão relaxante é morrer.
E se pôs na direção de um violento barulho de rio.