Órbita - Parte 1/2

Levantou-se meio desajeitada, esticando o protótipo de asas que surgiram em uma antiga manhã de domingo. Observou pena por pena se organizar em um movimento dominó, até todo arrepio se desfazer. Colocou as pernas no chão, sentindo um incômodo que lembrava uma cãibra. “Dormi demais”, espreguiçou-se despretensiosamente.

Se ela tivesse parado para observar ao redor — o que não fez —, teria notado uma leve brisa que entortava galhos e transformava vazios em instrumentos musicais. Teria notado que a floresta em que escolheu acampar já estava vestida de outono, sem os antigos prazeres das épocas mais quentes.

Também não observou que, à sua esquerda, uma árvore tosca se escondia à espreita. Não era bem uma árvore, mas ela não teria percebido, mesmo que eu tivesse descrito diferente antes: seus olhos se mantinham entreabertos com a simples missão de não se fechar.

Não que ela fosse desatenta, mas estava exausta. Estava exausta há tanto tempo que o presente já havia se fundido ao passado, o suficiente para criar uma noção única de perfeita exaustão.

Continuou o processo lento de espreguiçar, que era pouquíssimo verbo. Na verdade, continuou o adverbial processo do despreguiço.

— Clak

Estava exausta, e o barulho à sua esquerda não era despertador suficiente. “Clek”

Bem, agora talvez fosse.

Mudou a direção do movimento para a esquerda, para onde seu ouvido-soldado percebera a alteração do ambiente. Tentou focar os antigos olhos de águia, mas a verdade é que já estava tão tão cansada… Tentou perceber algo e percebeu o dançar dos galhos e a canção de ninar da floresta. “Acho que só preciso descansar, antes que chegue a próxima guerra”. Refez o preguiço rapidamente: se envolveu nas próprias asas e adormeceu em segundos.

A criatura no meio da floresta, estática, não acreditava no que estava vendo. Era essa a grande guerreira que tanto escutou falar?.

Pensou em enforcá-la, aproveitando o aparente estado inerte, mas não era jeito de matar uma lenda. Precisava esperar e olhar nos olhos de Gilda antes do golpe fatal, ver em detalhes o fim da vida de alguém tão gigante quanto ela. Organizou um campo improvisado com alguns galhos e folhas para cobertura, um fogo fraco para aquecer noite à dentro, comeu parte das rações que tinha trazido consigo e se fez confortável para encarar a presa.

Tinha uma beleza no jeito que Gilda dormia, um potencial de se metamorfosear em algo diferente da natureza frágil que a cena vendia. Automaticamente, apontou a arma rústica que carregava mirando no casulo penoso. Não atirou. O movimento que havia previsto não veio, a guerreira continuava estática em seu descaso. Relaxou os músculos e aproveitou a lente de aumento da arma para observar melhor o seu arredor.

A Floresta era estranha: no centro uma estrutura intrincada com uma madeira retorcida que iniciava embaixo da terra e se auto-misturava até formar belos nós que terminavam em cama. O “colchão” era simplesmente um amontoado de penas desconhecidas e algumas penas das asas que o ocupava. Ao redor da cama, árvores grandes e pontudas se enfileiravam, levemente inclinadas para o centro. Esse padrão se repetia virtualmente infinito, em um quase-culto.

Quando a criatura percebeu o que estava evocando, cuspiu no chão. “Falsa Deusa.” As palavras se perderam em um redemoinho de folhas que o orbitavam, causando severas cócegas. As tentativas dele de equilíbrio imitavam os “cliks” de um relógio.

Achou seu próprio centro, apenas a tempo de encarar olhos enormes e vermelhos, a poucos centímetros dos próprios. Um riso dentro do peito saiu como o primeiro disparo.

— Finalmente! Bom dia, Gilda…

Luiza Bicalho
Enviado por Luiza Bicalho em 16/10/2024
Reeditado em 16/10/2024
Código do texto: T8174711
Classificação de conteúdo: seguro
Copyright © 2024. Todos os direitos reservados.
Você não pode copiar, exibir, distribuir, executar, criar obras derivadas nem fazer uso comercial desta obra sem a devida permissão do autor.