A dúvida de Madame Sofia

     A Luz dourada do sol já estava bastante alta no firmamento azul e infinito. As desventuras daquela manhã haviam sido severas com todos moradores da casa de acolhimento de Madame Sofia. Esta casa havia sido construída desde há muitos séculos atrás, por ela e Dona Carlotita. Duas irmãs que se viram sozinhas no mundo, abandonadas pela família ambiciosa e depois pelos maridos cruéis e degenerados. Se viram soltas pelo mundo, desprotegidas das criaturas sinistras que dominavam aquela região, e talvez o mundo todo. Elas não saberiam dizer, não conheciam mais nada no mundo, conheciam apenas aquele pequeno pedaço de chão onde cresceram, tiveram filhos, depois morreram, abandonadas à própria sorte.

     Quando se viram abandonadas, sem casa, sem proteção, sem vida. Haviam sido assassinadas, a sangue frio, e os corpos jogados, à mercê do tempo, das intempéries. Viam aquela imagem horrorosa, delas mesmas se decompondo, vagarosamente, expostas a tudo, enquanto sentiam que ainda estavam vivas, respiravam, tinham fome, e que fome horrorosa. Sentiam o frio, o calor, a sede, sentiam tudo, igual quando estavam presas aos corpos, que devagar viraram pó e cinzas.

     Vagaram pela floresta, por dias, semanas, meses em busca de abrigo, comida, calor humano. Ninguém as via, e elas, sempre juntas, não viam ninguém. Parecia que não havia mais nenhuma pessoa no mundo todo, naquele pequeno mundo que elas conheciam.

     O que encontraram, depois de muita procura, depois de serem obrigadas a fugir, todos os dias depois do seu pós vida, daquelas criaturas horrorosas que lhes roubaram a paz e a energia, foi uma caverna gigantesca escavada ao pé de um morro, onde passaram a primeira noite de paz. Naquela noite longínqua nos séculos, mais precisamente duzentos e trinta anos, acenderam uma fogueira simples e se protegeram do tenebroso frio do inverno, e por incrível que pareça, as criaturas horrendas não se aproximavam da luz que o fogo espalhava em volta. Tinham apenas uma a outra, e nada mais. Finalmente conseguiram descansar e, no dia seguinte, decidiram nunca apagar aquele fogo abençoado que as protegeram dos ferozes algozes. As criaturas sinistras que aterrorizavam tudo na noite escura gargalhavam, maldosas, cheias de ódio e rancor. Sofia e Carlotita, com o tempo descobriram, com a experiência, que a força que possuiam unidas, do amor de uma para a outra, uma luz em seus próprios pensamentos e sentimentos, que também era capaz de afastar aqueles vampiros. Energia esta que cultivaram desde as duras batalhas da vida, que travaram contra tudo que as tentaram prejudicar. Tinham uma crença, maior que qualquer religião, uma crença no amor maior, por tudo e por todos, independente se as amavam ou não. De dia irradiavam a paz e o amor que tinham no coração, a noite, enquanto descansavam o fogo, que nunca mais se apagou, as protegiam.

     Passaram mais algumas semanas naquela vida dolorida e sofrida, e é certo que estavam melhor que antes, mas ainda assim era difícil. De dia buscavam o alimento, e qualquer coisa para distrair os pensamentos daquela situação difícil. Como podia? Naquele mundo doido, sabiam que estavam mortas, eram apenas espíritos, mas ainda assim tinham necessidade de comida, calor e proteção. E em qualquer descuido, qualquer desequilíbrio nos pensamentos e sentimentos eram atacadas impiedosamente pelas criaturas sinistras e maldosas que atacavam sem dó.

     Aos poucos, com muita paciência, bastante trabalho e cooperação uma com a outra, conseguiram construir naquela caverna qualquer coisa parecida com uma casa, um lar, afinal. E as criaturas sinistras, a cada noite, e com mais afinco ainda tentando atacar aquele reduto de amor e união, sem conseguirem se aproximar, mas nunca desistiram. Mas as irmãs permaneceram firmes, não se entregaram e felizmente, dentro da caverna lar, nunca entraram.

     Depois de muito trabalho, ao final do primeiro ano, conseguiram limpar todo entorno daquela caverna e plantaram um lindo jardim, uma horta farta, e um belo pomar. Tudo sozinhas, então, perceberam, que em pouco tempo, ali também os vampiros não atacavam. E algum tempo depois, perceberam, conseguiram enxergar que em volta, muitas outras pessoas, com igual vontade e luminosidade que elas, estavam construindo para si lares de igual proteção e cuidado. A pequena comunidade que nasceu começou então a trocar entre si, experiências, conhecimento e proteção, aumentando assim o terreno onde os terríveis vampiros dificilmente se atreviam a atacar.

     Um dia apareceu um jovem, bastante alto, com a voz muito grave, pedindo trabalho e abrigo, pois não sabia onde estava, nem para onde ir, nem com quem falar, e o que fazer nessa vida estranha que começou depois de morrer. “Gui é o meu nome Madame”, dizia o jovem timidamente, mas sorrindo tão docemente que ficou ainda mais difícil de negar o pedido, que seria naturalmente concedido a qualquer um que o fizesse. Então o trabalho rendeu, em pouco tempo havia uma bela casa, com muitos quartos, à espera de almas desgarradas, soltas pelo mundo em busca de comida, proteção e trabalho.

     “Você se lembra o que aconteceu no dia em que morreu, meu amigo?” Perguntava Sofia, que acabou virando Madame, de tanto que o seu amigo lhe chamava assim.

     “Minha irmã me envenenou Madame, mas eu a perdoei. Espero que um dia ela me encontre, pois está perdida no mundo, vagando com aqueles vampiros sinistros que gargalham a noite toda tentando nos assustar.” Respondia o gigante tristemente.

     A vizinhança aumentou, a comunidade cresceu, a casa de Madame Sofia e Dona Carlotita também, e mês a mês, ano após ano foi se construindo naquela comunidade incomum, uma vida após a vida igual à vida que era antes, quando estavam vivos. Ou será que a vida real era esta, agora? Conseguiram juntar, de livros à remédios, de camas à panelas, e tudo o mais que se tivesse noção de precisar para uma vida mais confortável. Aprendeu-se a fazer de tudo um pouco, e a se construir de tudo o que fosse necessário, e a vida ficou ainda mais prazerosa e tranquila.

     Mais pessoas chegaram com o tempo, trazendo consigo mais conhecimento, mas força de trabalho. Alguns ficaram, a vida ali era boa, não tinham mais nenhuma necessidade além do que encontraram ali. Outros se foram, algum tempo depois, no desejo de tentar encontrar o caminho de volta à vida física.

Depois de cem anos aquela casa, e toda comunidade em volta, era a cópia exata de uma outra casa grande qualquer, de qualquer outra comunidade, com tudo o que há numa vida normal, cheia de gente trabalhando, estudando, se divertindo, e tudo começado do nada. Eram apenas as pessoas, e a vontade de viver e trabalhar, se proteger, se unirem para construir algo melhor para si.

     A luta com os vampiros era coisa frequente, eles queriam dominar e destruir tudo, com força e crueldade. Mas todos sabiam, e isso foi Madame Sofia e Dona Carlotita quem aprendeu, e ensinavam a todos, a única coisa que eles não toleravam era a luz interior, sentimentos bons e pensamentos positivos. Esta fórmula fez tanto efeito que os ataques deles estavam cada vez mais raros, e ultimamente, nos últimos quarenta anos precisamente, não houve nenhum ataque, até o dia em que Sabrina apareceu, e depois fugiu, sabe-se lá para onde.

     Naquela tarde Madame Sofia dispensou a equipe de buscas de Gui para a sua missão, depois voltou de imediato para sua pesquisa. Ela estava realmente muito preocupada com todos os problemas que Sabrina estava passando, mas não podia fazer mais nada além de esperar. Gui, Giovana e Carlos poderiam ou não demorar em sua missão, dependia muito de onde Sabrina estava, e do estado de sua mente.

     Como ela, em toda sua experiência com aquelas criaturas, não havia percebido, será que aquela criança havia dado algum sinal de sua real situação e Madame Sofia simplesmente ignorou? E ignorou porque? Afinal era apenas uma criança, sem juízo, como qualquer outra criança.

     Lá fora a equipe de Gui já havia atravessado o grande jardim circular da entrada e estavam alcançando a escada que subia até o portão. Gui precisava se abaixar um pouco para atravessá-lo e se desviar do sino pendurado bem na frente. Giovana e Carlos passavam tranquilamente. Desceram pelo único caminho possível, a estradinha de terra sinuosa. Paravam a cada transeunte que encontravam pelo caminho, perguntando o paradeiro da pequena garota de pele muito branca, dos cabelos longos e negros como a noite sem estrelas. Paravam em cada portão que encontravam, chamando algum morador simpático, perguntando sobre o possível destino de Sabrina. Sem sucesso. Foram descendo o morro em direção à cidade próxima e todos que eram interrogados davam a mesma resposta.

     “Infelizmente não a vi, mas mando notícias se souber de alguma coisa.”

     As respostas pareciam combinadas, até que, em dado momento, em um lugar próximo à grande pedra que marcava o início daquela estrada, ao interrogar uma senhora simpática, mas com ares de profunda preocupação, foram surpreendidos com sua resposta.

     “É a minha netinha!” Dizia. “tentei adverti-la dos perigos que estava passando, mas ela é cabeça dura e muito imatura, não me ouviu e saiu correndo em direção à floresta e se perdeu lá dentro. Eu não consigo ir atrás dela sozinha, o vampiro a está perseguindo e torturando. Pobre menina!”

     “A senhora sabe onde ela está?” Questionou Giovana.

     “Nos leve até ela.” Falou Gui decidido. “Nós vamos ajudá-la a se livrar desse vampiro.”

Josemar Fonseca
Enviado por Josemar Fonseca em 11/10/2024
Reeditado em 11/10/2024
Código do texto: T8171111
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