Os Sete Segredos do Meu Novo Castelo - Primeiro Segredo
Primieiro Segredo - Persona
— Henry... Henry, querido, acorde! Chegou uma correspondência para você! – Diz docilmente uma jovem mulher, de boa figura.
— O quê? – Responde o jovem de cabelo loiro desarrumado e barba por fazer, com a voz rouca de alguém ressaqueado. – Me dá essa carta aqui.
Henry sabe que apenas uma pessoa o procuraria via correspondência. Outros o procurariam ou mandariam alguém o procurar pessoalmente para acertar as contas.
"Querido irmão,
Como deves saber, nosso pai, o Marquês de Vertigínia, faleceu de morte natural há alguns dias, em sua cama. Em seu testamento, tu constas como herdeiro de pouca coisa, pois nunca mereceste. Ainda assim, no alto de sua generosidade, nosso pai deu-lhe as chaves e o comando de um castelo fronteiriço a MARTINEZ. Clame-o para ti ou eu o farei. Isto não é um pedido, é um aviso, tens um mês para estar no castelo, ou será domínio meu.
Sejas uma única vez alguém de tua importância e te comportas como um nobre, assumindo essa responsabilidade.
Atenciosa e carinhosamente,
Condessa Cecilia Bard-Schaft"
— O velho morreu mesmo? Maldita Cecilia. – Brada em voz alta, falando consigo mesmo.
Cecilia alimenta a dor de cabeça de Henry com a notícia.
— O que houve, querido? – Pergunta a jovem que acabará de trazer a carta em sua cama. Henry olha, em profunda confusão.
— Quem é você, mesmo?
— O quê? Você me fez promessas e juras de amor ontem a noite toda, propôs casamento e tudo, como não lembra de mim? – Responde, em confusão ainda maior a inocente jovem, segurando com uma das mãos o pingente em seu peito.
Henry se levanta, veste suas calças rapidamente e antes mesmo de abotoar a camisa, se dirige à janela aberta. Em seu caminho está a jovem, estática e atônita. O rapaz coloca as mãos em seus ombros, olha em seus olhos e diz:
— Peço perdão, querida... Parto do princípio de que "o que eu não lembro, eu não fiz".
Enquanto à empurra para o lado, corre e salta da janela.
Pasma por alguns segundos, logo a jovem notou a falta de algo, correu para a janela e bradou aos quatro ventos, já não vendo Henry em lugar nenhum.
— Alguém prenda esse homem, ele roubou meu colar! Peguem o Barão Canalha!!
"Barão Canalha" ... Henry já fora chamado assim outras vezes. Barão Errante, nobre bebum, nobre sem terras, Irreparável Canastrão, Nobre Golpista, Irrespeitável Figurão. Muitos mais apelidos foram dados a ele em seus breves trinta anos de idade vivida. Nunca foi de seu feitio se incomodar com o modo como o chamavam após aplicar um golpe ou cair na sarjeta.
Já não era o plano de Henry continuar nesta cidadezinha que nem mesmo sabe o nome. Viajou sem rumo por muito tempo e assim esteve feliz, por muito tempo. Tinha agora um destino, escrito nas costas da carta enviada por sua irmã.
O Marquesado de Mellorine, fronteira com Martínez, local outrora estratégico para o Reino de Bold, já completava duas décadas de ânimos apaziguados após os acordos de paz e de comércio assinados com a Nação Angeliña. Nada ocorreria na região, possível motivo do Marquês Frederic Bard tê-la dado ao "pior filho" no testamento. Henry, que já havia vasculhado e adorado toda a extensão do estado de Martínez (principalmente Las Chicas, um bordel da região), viu nessa uma oportunidade de dar algumas escapadas para as "calientes" cidades da Nação Angelina. Pretendia, a princípio, apenas ficar tempo o suficiente para apaziguar os ânimos de sua irmã e não perder sua parte da herança.
— Pode me levar para Mellorine, senhor? – Pergunta a um senhor em uma carroça de carga, provavelmente um velho mercador.
— Vou para lá, mas de graça nada feito, garoto.
— Posso pagar em ouro e pertences? – Diz, expondo seu mais novo colar e um sorriso amarelado.
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Logo ao adentrar a cidade, o burburinho começou. Uma breve caminhada já foi fagulha de fofocas pelo condado. Notícias correm como o vento. A morte do Marquês e o nome do novo governante herdeiro eram falados em todo lugar. Não que isso interesse ou incomode Henry, ele até gosta de ser um nome comentado...
Uma carruagem preta com detalhes em vermelho se aproxima.
— Olá, Srt. Henry. Vim buscá-lo e serei seu mordomo no Castelo de Best, é um prazer servi-lo novamente. – Diz o senhor de idade avançada e óculos redondos, em trajes formais, calvo e caricato.
— Olá, Albert. Há quanto tempo, não? Posso ir caminhando, não preciso da carruagem.
— Não é de bom tom caminhar sem rumo neste momento, meu lorde.
Henry encara seu novo e velho mordomo e, enfim, cede.
— Me deixe sentar ao lado da janela, ao menos. Quero acompanhar o movimento. – Diz, antes de se acomodar no banco estofado vermelho.
Notando o interesse de Henry, Albert conta um pouco sobre o local.
— Além da morte e da sucessão, o Marquesado de Mellorine está agitado devido ao movimento dos mercadores nesta época do ano. A Fiesta de Los Muertos Angeliños faz com que o vaivém de pessoas se intensifique. - Ao ver que capturou a atenção de Henry, Albert esboça um leve sorriso no canto da boca e continua. - A influência cultural de La Nácion nessa região é muito forte e por muito tempo foi preocupação dos antigos soberanos da região. Antes do finado Marquês, houve um período de muita repressão à cultura local. Essa é uma forma de boa parte da população comemorar suas origens.
— Já visitei diversas culturas, nações e... não sei... casas de massagem? Enfim... Viajei por várias regiões em toda porção de terra conhecida pelo homem, sabe, Albert? Pelo mundo todo. Nunca fui financiado por meu pai, é claro, sempre dei meu jeito de viver... Sempre admirei esse intercâmbio cultural entre diferentes povos. Todos somos capazes de enxergar o mesmo mundo de maneiras tão diferentes, capazes de produzir as mais diferentes iguarias, capazes de entoar as mais baixas ofensas e as mais belas poesias... de algum modo isso sempre me despertou a curiosidade.
Após contemplar o que havia dito Henry, Albert continua.
— O finado Marquês sempre contava sobre seu filho aventureiro com os olhos brilhando. Apesar da má fama, era seu preferido. As responsabilidades que adquiriu em vida tiraram seu sonho de viajar o mundo, mas projetou em seu filho mais novo o que quis para ele. Via realizado em ti o que sonhou para si. Neste breve tempo que nos reencontramos, vejo o porquê.
— Não o via há cinco anos. Apenas mandava cartas periodicamente. Mas o... "finado Marquês" não passará seu título ou suas terras a mim em definitivo, certo? Ele bem sabe que não sou de governar nem minha própria vida, por vezes, que dirá uma região como essa. – Disse Henry, ainda olhando pela janela, ignorando o que disse o mordomo.
— Esse é o mistério, meu lorde. O Marquês pouco falava sobre seus legados em vida. Deixou as regiões fronteiriças para seus filhos e a Condessa Cecilia foi agraciada com terras mais produtivas. Por fim, deixou uma carta para ti dizendo que serás o sucessor no comando de Mellorine. – Aproveitando a deixa, Albert entrega uma carta com o selo rompido e o nome de Henry. – A Condessa tratou de abrir no intento de descobrir a causa da morte, mas nada encontrou. Pediu para que repassasse o perdão pela atitude impensada ainda de cabeça quente.
— Tudo bem, conheço a Ceci. Lerei após conhecer o castelo e estar deitado em uma aconchegante cama. Não sei se estou preparado para ler agora. Agradeço, Albert.
Por fora, o Castelo de Best parecia imponente no alto daquela colina verdejante. Cercado de árvores, a simples missão de alcançá-lo não seria nada fácil para qualquer um que estivesse a pé. Sua pintura bege já descascada pelo tempo indicava sua idade. Serviu de fortificação nas guerras sacro-angelinas séculos atrás, mas, com seu muro destruído, serve apenas de morada.
Por dentro, nada caía aos pedaços, pelo contrário. A aparência interna era cheia de vida. Pinturas, retratos, esculturas, cores. Cada peça de arte tinha parte na construção deste ambiente. A cor predominante era a vermelha, como nos tapetes, detalhes em portas e pinturas. Os serviçais também utilizavam uma faixa vermelha em volta de suas vestes.
Uma das subordinadas de Albert se aproxima e se oferece a apresentar o castelo.
— Olá, milorde. Meu nome é Emilia e estarei às suas ordens. Sr. Albert me pediu que apresentasse o castelo ao milorde.
Ela logo capturou os olhares de Henry. De aparência jovem, pele morena clara e cabelos pretos, como as de um nascido na Nação Angelinha, a serviçal do castelo parecia ter sido educada desde criança a servir à Família Bard. Esse era um costume de seu pai, empregar familiares de seus empregados.
— Emilia, você é capaz de me contar mais sobre as obras de arte deste castelo? Sei que meu pai fazia daqui seu museu particular.
— Sim, milorde. O Marquês sempre nos agraciava com seu conhecimento sobre as obras que possuía, seria um prazer dividir um pouco desse conhecimento com o milorde.
No caminho até os jardins, Emilie apontava cada escultura, quadro, armadura... cada decoração que o falecido Marquês trouxe para o castelo. Henry prestou atenção a todos os detalhes. Sempre aficionado por história, característica que puxou de seu pai, aquele parecia um parque de diversões para o Barão Errante. O passeio, no entanto, foi curto. Logo chegaram aos grandes jardins do castelo.
Os arbustos ali, ainda que não passassem da altura do peito, formavam um labirinto. Um grande chafariz ao centro servia de ponto de referência. Ao lado desse ponto, aguardavam as primeiras figuras conhecidas por Henry: sua irmã mais velha, Cecilia; seu marido, o Conde William Schaft; o filho do casal, cujo nome ele nunca se importou em perguntar; e os serviçais cuidando o garoto que corria por todo o jardim.
— Olá irmão querido! Há quanto tempo! – Cecilia estranhamente o abraça. Nunca foi tão afetuosa e isso o deixa desconcertado por alguns segundos. – Infelizmente só voltamos a nos ver sob tais circunstâncias, mas fico feliz de revê-lo.
— Senti saudades também, Ceci. – Diz Henry enquanto se desvencilha do abraço e parte para cumprimentar o Conde William. – Olá, William. – Seco, apenas aperta a mão do homem, e sem nem esperar a resposta se vira novamente em direção a sua irmã. – Uma lástima, de fato... eu gostaria de ter visto o velho em vida mais uma vez. Não imaginei que já estava nas últimas, sempre foi tão saudável.
— Também fui pega de surpresa. Apenas recebi a carta informando a morte e uma parte de mim veio abaixo no mesmo instante. Por sorte, meu marido estava junto e me deu forças. Sem hesitar, viemos direto a Mellorine. - Ela toca o ombro de seu esposo enquanto fala.
— Estão aqui há muito tempo?
— Chegamos no início da semana, já fazendo os preparativos para o velório. Assim como fiz contigo, chamei todos os irmãos e espero a chegada deles ainda hoje para que velemos o corpo. Será uma cerimônia fechada para nós e nossos irmãos, sua única família viva, neste mesmo castelo. Como era desejo de nosso pai, o corpo será cremado em seguida.
Sem palavras, Henry apenas assentiu com a cabeça. Os irmãos saíram para uma breve caminhada no jardim, o Conde, por sua vez, se absteve da caminhada. Palavras e conversas nunca foram o seu forte. Apesar de comunicativos, os irmãos sentiam o luto. Após alguns comentários sobre as flores ou o clima da região, o silêncio tomava conta até que um ou outro voltasse com algum assunto de suas infâncias e memórias com o pai. De certo, estavam tentando digerir a situação.
Ao pôr do sol, novas carruagens paravam em frente ao castelo. Os outros irmãos chegaram quase que em sincronia. De cima de uma das torres, Henry e Cecilia acompanhavam as chegadas.
De longos cabelos loiros e olhos cor de mel, Lia Bard, a irmã mais nova, acompanhada de seu noivo, o Príncipe Barry, chegaram com toda a pompa que o terceiro na linha de sucessão ao trono de Bold deve ter. Algumas crianças acompanhavam de longe, curiosas para chegar mais perto do que jamais chegariam de um membro da família real.
O Príncipe não parecia muito confortável, apenas entrou as pressas. Lia ficou e cumprimentou, mesmo que num gesto de longe com as mãos, àquelas crianças que se deram a todo o trabalho de subir a íngreme colina.
— Barry não tem muito trato com o público, é isso que não o coloca a frente na linha de sucessão. – Comenta Cecilia, que assistia às chegadas de cima dos jardins.
— Deve ser apenas mais um príncipe mimado. Ao menos Lia cresceu bela e graciosa... sangue de meu sangue, não é? - Disse Henry, piscando e dando de ombros. Cecilia apenas deu um leve sorriso e fungou pelo nariz.
Em seguida, em uma carruagem menos pomposa, mas não menos aconchegante, chegava Roman Bard, dois anos mais velho que Henry, e sua noiva, Marcelline de Ettiéne, da nobreza de Bourbon. Ambos com cara de mal-encarados, certamente não estavam contentes de estar ali.
— Roman engordou. – Comenta Henry.
— Pois é. Aconteceu após encontrar sua noiva.
A penúltima carruagem a aportar em frente ao castelo foi a do irmão mais novo de Henry, Peter Mont-Blanc Bard. Mais novo que Lia, pouco menos de 20 anos, sua cara de menino e seu jeito ainda desengonçado denunciavam sua pouca familiaridade com a nobreza. É o único fruto do segundo e último casamento do Marquês Frederic Bard.
— Chamam ele injustamente de filho bastardo. Coitado, sofreu tanto com os comentários maldosos que se encolheu em sua própria mente. Pouco fala, pouco se comunica. – Diz Cecilia.
— Triste.
Por fim, sem alarde, o filho mais velho, Robbie Van Helse-Bard, acompanhado de sua consorte, Güila Van Helse, uma das comerciantes mais influentes do Velho Continente.
— A mulher de Robbie é muito mais imponente do que ele, não? Parece alguém de sucesso do lado de um otário. – Comenta Henry.
— Pare com isso, ele é seu irmão. - Disse Cecilia, rindo.
— Apenas um comentário.
Após acompanhar a movimentação pelas torres acima dos jardins, Henry e Cecilia se dirigiram à sala onde ocorreria o velório. Lá, cumprimentaram cada um dos irmãos, que há muito não se reuniam.
— A última vez que todos os irmãos se reuniram foi no casamento de Robbie, não? Peter ainda era criança e veja como cresceu. – Comentou Lia, falando em meio a todos que aguardavam sentados pelo sacerdote que conduziria a cerimônia.
— Não, Lia. Henry não estava lá e Roman se atrasou, quase não o vimos. A última vez foi no velório do Júnior, ainda no Palácio de Pulse. Parece que apenas a morte pode unir essa família, afinal. – Cecilia respira e se acalma antes de continuar. – Nosso Pai sempre convidou todos para seus bailes e festas. Poucas foram as vezes que alguém compareceu, os convites pareciam se perder nos quatro ventos... Ao menos o último jantar que promoveu aqui teve o comparecimento de quase todos os filhos, se é que isso pode consolar sua alma.
O desabafo de Cecilia não era apenas sobre este velório, claro, havia mais dentro de seu coração. Henry, por sua vez, faz uma expressão de confusão, não recebeu informação alguma sobre um jantar nos últimos meses. Apesar de sempre ignorar as cartas de convite para eventos de seus familiares, se dava ao trabalho de ler cada palavra.
— E Henry continua perdido, não? Olhe a cara de quem estava bêbado até hoje de manhã. – Disse Robbie, esboçando um sorriso de deboche. Como ninguém riu, ele também se conteve.
— Robbie! Poupe-nos de seus comentários desnecessários! – Disse Cecilia com voz de ordem. A esposa de Robbie também pareceu desconfortável. Henry nem reagiu, ao longo da infância e juventude conviveu de perto com a petulância do "Sr. Deselegante".
— Pare com as gracinhas, Robbie! Você sabe que o maninho não tem muito controle de si, não vale fazer graça disso. – Completou Roman, com ainda mais deboche. Era seu objetivo. Henry deu de ombros.
Cecilia se irritou, revirou os olhos e apenas se conteve. Henry, por outro lado, ferveu seu sangue em água morna. Com calma e eloquência, aguardou poucos segundos e destilou parte do veneno obtido nas ruas e tavernas que passou durante sua vida errante.
— Não estava perdido, Roman, estava me encontrando. Certamente aproveitei bem minha vida neste tempo, ainda que não tanto quanto você. Sabia que algumas das cidades pelas quais passei deixavam burburinhos a solta que quase competiam com os meus? Será que Porto Cades, Relvania, São Vicente te lembram de algo? – Henry para de falar por um breve momento, direcionando o olhar à noiva de Roman – Oh... perdão... Miralice?
— É Marcelline... – A mulher apenas murmura rapidamente seu nome para corrigi-lo.
— Nem te conto o que ouvi em Bourbon... - Diz Henry, com um olhar malicioso.
Logo que sua ficha cai, a mulher vira o rosto em um olhar mortal para seu cônjuge, que fica sem reação.
— Quanto a ti, Bob... Eu diria que meu autocontrole é melhor que o seu. Apenas um conselho: Procure por rapazes mais maduros daqui pra frente. Os mais jovens tendem a deixar escapar seus segredinhos pelos subúrbios de Tulipa Lilácea. Talvez sejam apenas boatos, não? – O olhar de Henry é penetrante. Robbie se recolhe e olha para sua esposa como se fizesse de desentendido.
Ao invés de se levantarem contra Henry, ambos cederam. Sabem do que o irmão é capaz. "Não se perturba Henry Bard", é o mantra que circula pelos locais que o Barão Canalha passa. Mas ele sabe que a retaliação deve ser forte, pois seus irmãos não fazem a mínima questão de sua presença neste castelo. Foi seu primeiro pensamento, desde que recebeu a carta de Cecília.
"Eu não sei se mereço tomar conta destas terras e deste castelo, mas sei que eles têm certeza de que eu não mereço... e eles certamente querem estas posses para si." - Pensou.
Um diferente clima de velório se instaurou após a breve discussão. Os dois provocadores se contiveram em suas cadeiras, mas não trocaram mais palavras. O desconforto de Cecília e Lia era evidente, e seus companheiros apenas trocavam papo furado. Peter, sempre absorto em seus pensamentos e de poucas palavras, pouco se fez presente ali.
O sacerdote entra na sala, ignora o clima de guerra fria e dá início à cerimônia. Henry parece distraído, nunca foi religioso e sua vida boêmia o afastou ainda mais da igreja.
A cremação ocorreu sem problemas. As cinzas serão guardadas em um santuário a ser construído no jardim, enquanto isso, permanecerão no antigo quarto do Marquês.
Ainda curioso. Henry esperava a oportunidade de perguntar a alguém. Quando vê que Emilia levava sozinha a urna com as cinzas ao quarto, se dispôs a acompanhá-la. Os outros irmãos ficaram na sala de cerimônia, Conde William parecia ter assuntos com Lia e o Príncipe, enquanto Robbie e Roman se resolviam com suas consortes.
— Emilia, me diga... quando foi esse último jantar que todos vieram, menos eu?
— Há cerca de um mês atrás, milorde. O Marquês exalava saúde naquele tempo, ninguém diria que estaríamos carregando suas cinzas por agora.
— E por qual motivo não fui convidado? – Pergunta Henry, ainda em tom neutro.
— Mas... eu mesmo lembro de escrever a carta para todos os convidados a mando do Marquês, inclusive o Srt. Henry. – Emilia parecia assustada com a informação.
— Tudo bem, tudo bem... não digo que foi erro seu, Emi. Posso te chamar de Emi? – Diz Henry, com a calma de um canalha e uma mão no ombro de Emilia. – Quero ver o quarto onde meu pai bateu as botas.
— Sim, milorde.
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Entrando no quarto, a esparsa claridade da lua já não iluminava o cômodo. O adentrar da noite exigiria a luz dos lampiões e velas naquele cômodo. Foi o que Emilia tratou de resolver, logo após deixar a urna em cima de um pequeno altar de madeira escura.
Henry senta-se à cama, aconchega-se, vasculha seus bolsos e recolhe a carta de seu pai.
"Querido Filho, Henry.
Desejava ver quanto cresceu pela última vez antes de partir, mas o tempo não me permitirá essa alegria. Há duas forças incontroláveis neste mundo, o passar do tempo e os sonhos de um homem tolo. Talvez eu tenha sido o homem tolo, afinal.
Minhas cartas não chegam a ti, mas sei que meus pensamentos chegam. Acredito que tu sejas meu filho que mais lembra a mim, por isso te dou esse desafio: faça cada pedaço deste castelo sua fortaleza, desde o jardim até o pé de minha cama. Proteja esta região de qualquer perigo que a ronda. Honre minha vida e legado como sei que honra seus próprios sonhos.
Com amor eterno, seu pai,
Frederico Bard."
Henry não é de chorar ou se comover. As lágrimas que caíram devem ser falsas, então? Até o Irreparável Canastrão pode chorar com as boas memórias. Emilia disfarça, se vira de costas e começa a dobrar roupas já dobradas, para não constranger Henry. Ele se senta ao lado da cama e a observa.
"Desde o jardim até o pé da cama... o velho adorava essas frases sem sentido"
Ao perceber uma faixa amarrada ao pé da cama, despretensiosamente tenta desamarrá-la, o que faz com facilidade. Subitamente, um buraco surge abaixo do tapete ao lado da cama e esta se ergue apenas de um lado, jogando Henry para o buraco.
— Milorde? – Emilia se volta para a cama e nada encontra além das roupas de cama bagunçadas.
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— Ei, garoto! Levante e me tire daqui! – Diz uma voz grossa, acompanhado do barulho de correntes.
— Ei, garoto! Pode ficar deitado, não precisa se apressar! – Diz uma voz estridente.
— O quê? – Ainda se levantando da queda e sem nada entender, Henry escuta tais vozes.
O quarto escuro onde ele se encontra dificulta a localização de qualquer coisa.
— Ele não está vendo nada, acenda o lustre.
— Sempre eu? Faça algo você de vez em quando.
— Logo!! "FÎRA"– Dizem as vozes, vindas de cima.
Henry vê uma bola de fogo cruzar a sala alguns metros acima de sua cabeça, atingindo e acendendo um lustre atrás de onde ele estava. A luz não é muito forte, mas permite que ele tenha a visão que nunca tivera. Já conheceu magos e lendas pelo mundo, mas nunca viu o que viu naquele momento. Duas faces flutuando pela sala, acorrentadas ao teto e exalando uma aura sombria em sua volta. Eram duas máscaras, unidas, como aquelas dos Teatros Helênicos, tendo uma a expressão de trsiteza (a tragédia) e a outra, de alegria (a comédia).
— Quem é você, garoto?
— Não o incomode! Apresente-se antes!
— Calado!
— "Calado" você!!
— É... o que é isso? O que são vocês? – Visivelmente perdido, Henry questiona os dois seres, aparentemente grudados.
— Eu sou Persona. - Disse a voz vinda da máscara da tragédia.
— E eu sou Persona. - Disse a voz vinda da máscara da comédia.
— Eu sou um demônio que foi preso e acorrentado injustamente por Frederico Bard. Disse, com voz carregada, a voz da máscara da tragédia.
— Eu sou um demônio que tentou enganar Frederico Bard e acabou preso e acorrentado nesta masmorra. Disse, animada, a voz da máscara da comédia, em uma ordem e trejeitos que pareciam sempre se repetir.
De olhos vazios, sem dentes, sem nariz. Apenas as expressões faciais. As vozes saiam magicamente pelo vazio que eram as bocas. A cena espantava Henry, mas, com coragem, se pôs a perguntar.
— Vocês conheceram meu pai, Frederico Bard?
— Eu fui um parceiro de Frederico Bard. E então ele me enganou e me prendeu aqui. Solte-me e o perdoarei.
— Eu fui um inimigo de seu pai. E então ele me capturou e me prendeu aqui. Não me solte ou eu o matarei.
— Não se preocupem com isso. Meu pai está morto. Morreu de morte natural. Ou será que vocês têm algo a ver com a morte dele?
As máscaras se entreolham antes de responder.
— Então chegou a hora...
— Se disséssemos que seu pai foi assassinado, você nos libertaria destas correntes?
— O quê? Do que vocês saberiam estando aqui? Não serei enganado por demônios.
— As paredes deste castelo têm ouvidos, sabe, garoto? Algumas, literalmente.
— Não sabemos quem foi, mas sabemos como encontrar essa pessoa.
— Como eu poderia acreditar em vocês?
— Seu pai te trouxe aqui, não? Apenas ele sabia da passagem secreta.
— Ele deixou um recado para você.
— O que ele disse? – Ainda receoso, a curiosidade de Henry começa a se aflorar.
— Encontre os sete segredos deste castelo...
— E eles te guiarão pela verdade.
— Por que ele simplesmente não diria quem estava tentando matá-lo? Por que o mistério?
— Ele mesmo não sabia. Uma parte da resposta está no último jantar.
— Encontre os sete segredos e descobrirá a outra parte.
— Como eu posso acreditar na palavra de... seja lá o que são vocês?
— Não temos compromisso nenhum com você, mas com ele, tínhamos.
— Ou você acredita, ou não.
Com tanta informação em pouco tempo, Henry toma fôlego antes de responder.
— Me ajudem, então. Por onde começo?
— Não é assim que se faz, garoto. Eu sou Persona, o demônio das mil faces.
— Precisamos firmar um trato com algum benefício para meu lado.
— Vocês querem liberdade, não? Quando eu encontrar o assassino, os libertarei.
As máscaras flutuantes soltam uma risada maligna e esquisita.
— Negócio...
— Fechado!
— Hoje você não encontrará o primeiro segredo.
— Ele tem hora para dormir.
— Volte aqui amanhã.
— E eu falarei onde pode encontrá-lo.
Henry não pretendia cumprir com o trato caso se sentisse enganado. Por outro lado, sempre ouviu sobre lendas de demônios e de como eram fiéis aos seus acordos e astutos com trapaceiros. Não via outra alternativa, no momento.
Um caminho se abriu atrás de Persona e Henry foi em direção a ele. Era uma escada que o devolveria à passagem secreta no chão do quarto de seu pai. As máscaras deram altas risadas enquanto o rapaz passava por debaixo delas.
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Emilia ainda estava ali, no quarto do Marquês. Pensara que Henry tinha corrido ao banheiro e apenas o aguardou. Quando saiu pelo alçapão debaixo do tapete, a serviçal pulou de susto.
— Perdão, Emi. Mas será que podemos fazer mais um tour pelo castelo? Estou curioso com algumas coisas.
— S-sim... milorde.