Estranha ligação

 

     A luz esverdeada que entrava na enfermaria atravessando as grandes vidraças era de uma tonalidade fascinante. A vista era praticamente a mesma dos quartos vizinhos, aquela profusão de vida e encantamento, que atravessava cheia de cor e brilho as janelas. As duas meninas ainda estavam no quarto da enfermaria, que era um cômodo bastante amplo e confortável. Paloma já havia desperto, e como já passava a hora do almoço já tinha ido comer, voltou ao quarto para descansar mais um pouco por ordens de Dona Carlotita.

Sabrina ainda dormia, sono bastante pesado, porém muito inquieto, devia habitar em algum pesadelo constante e terrível. Foi inútil para Paloma tentar acordá-la nas diversas vezes que a isto se propôs, mas não desistia. Precisava ajudar a sua nova amiga.

     “Que bom que já despertou menininha! Está tudo bem com você?” Perguntou-lhe a doce velhinha ao retornar dos compromissos, entrando no quarto bem de mansinho.

“Eu estou bem Madame, mas Sabrina…parece que…tem pesadelos terríveis e…não consegue despertar.” Respondeu a menina loira, de gestos delicados e modos muito corretos, demonstrando muita afeição e preocupação por Sabrina.

     “Deixe-a descansar um pouco mais, logo ela melhora. Mas eu sinto que tem algo mais te preocupando menininha.” Perguntou Madame Sofia olhando bem fixo os olhos, muito negros e brilhantes de Paloma.

     “Tenho medo Madame. Porque o vampiro veio atrás de mim?”

     “O mais leve descuido foi suficiente menininha. Para você ser pêga bastou que ficasse impressionada com a presença dele aqui. Esse medo o atraiu até você.” Respondeu a senhorinha com a voz decidida.

     “Mas ninguém o viu se aproximar!”

     “Essas criaturas são difíceis de se ver meu anjo. Poucos de nós tem habilidades para isso.”

     “Eu me sentia tão forte, nunca tive medo dessas coisas.” Disse Paloma com o olhar vago, na direção de Sabrina. “Por que ele a atacou de novo Madame?”

     “Eu ainda não sei menininha, mas já passei instruções a todos para que mudem as vibrações dos próprios pensamentos e sentimentos. Temos de pensar positivo e irradiar luz para afastar essa criatura de uma vez por todas daqui. “ Falou Madame Sofia com a voz decidida, depois instruiu Paloma a ficar alí até que Sabrina despertasse ou até que ela pudesse retornar a noite.

     Enquanto vigiava o sono inquieto de Sabrina, Paloma resolveu aproveitar o tempo e colocar a leitura em dia. Paloma amava histórias em quadrinhos e contos de terror. As meninas ali na enfermaria nunca haviam sido apresentadas formalmente, mas Paloma sentia por Sabrina uma amizade muito forte, diferente da amizade que sentia pelas outras crianças e jovens dali.

     Entre uma página e outra do livro de contos que escolheu para ler, Paloma ia observar mais de perto o sono inquieto de Sabrina. Vez ou outra tentava despertar Sabrina do sono inquietante. Devia estar tendo um terrível pesadelo de onde, desesperada gritava por socorro e chamava muito pela avó.

     A noite, quando Madame Sofia retornou, Paloma contou tudo o que aconteceu, com detalhes do desespero em que a sua amiga estava envolvida. E se propôs a passar aquela noite ali cuidando do sono dela.

     “Não é necessário menininha, vá dormir. Eu passo a noite com ela.”

     “Mas Madame, a senhora trabalhou o dia todo em suas obrigações, e eu apenas descansei…” Tentou explicar Paloma a Madame Sofia quando foi interrompida.

     “Pare de bobagem criança. Todo mundo sabe que eu não preciso dormir igual a vocês. Eu preciso de muito pouco descanso, amanhã conversamos mais.” Foi o que disse Madame Sofia à Paloma, que, sem ter argumentos a obedeceu se despediu e foi descansar mais um pouco. Estava se sentindo contrariada mas precisava obedecer à sua benfeitora. Madame Sofia lhe havia acolhido naquela casa há bastante tempo. Ela devia muito àquela senhora idosa e bondosa.

     Assim que Paloma saiu e fechou a porta atrás de si, Madame Sofia se voltou toda atenciosa para Sabrina que gemia e suava durante aquele sono difícil. Então, como fizera à Paloma de manhã, com os olhos fechados e em prece, as mãos se iluminaram como o sol. Irradiou uma luz poderosa que direcionou bem na testa de Sabrina e em poucos segundos mergulhou no mundo dos pesadelos que aterrorizavam a menina. O que viu era triste e medonho.

 

     ‘Em meio à névoa escura e fria, que subia bem no coração da floresta densa, estava a menina caminhando sozinha, procurando algo de que não se lembrava mais o que era, muito menos o motivo daquela busca. Sentia apenas necessidade de continuar procurando. Quando encontrasse, talvez se lembrasse.

     Andava já bem exausta e procurava insistentemente, e, a cada árvore com sombras sinistras que passava, o susto era maior e mais horripilante. E o frio, como era terrível, já não sentia mais os pés e as mãos. Ainda estava com o seu vestido de festa, e os sapatos da mesma cor, mas agora estava tudo coberto de lama.

Mas para onde ia? E porque saiu de casa? A sua memória era somente pedaços mal contados de uma história de horror sem sentido.

     “Onde é que eu estou? Vovó! Cadê a senhora?” Gritava Sabrina toda tristeza e solidão. Recordava-se da chuva do dia anterior, e do portão verde, que na verdade era azul, e a luz muito amarela.

     “Aquelas pessoas…elas pareciam legais…por que eles me deixaram sozinha? Onde estou agora?” Pensava a menina triste, tremendo de frio e de medo do escuro que encobria toda vista em volta.

     O silêncio era total, mas era interrompido de tempos em tempos por gritos e gargalhadas sinistras. Quando de súbito surge uma voz doce e conhecida: “Venha até mim Sabrina! Siga a minha voz, desperte e saia desse pesadelo. Isso tudo que te aflige é só ilusão!”

     “Madame! Grita a menina bem alto, surpresa. “Onde a senhora está?”

     “Estou aqui meu amor, somente siga minha voz…”

     “A senhora pode me ver? Eu não a vejo…por favor me ajude, só enxergo sombras…que horror…eu não…não aguento mais…os gritos…o frio…”

     “Estou aqui ao seu lado menininha.” Respondia a velhinha compadecida pelo sofrimento da menina.

     “Mas eu não vejo a senhora…me leva embora desse lugar…”

     “Apenas siga o som da minha voz.” Insistiu a Madame Sofia docemente. “Você precisa sair daí sozinha, apenas se acalme e verá a luz da saída.”

     Então a menina fechou os olhos em completo desespero e em um pranto penoso saiu correndo dali, muito amedrontada, para o mais longe que podia.’

 

     Os dias e as noites se sucederam, semanas se passaram, um mês acabou, depois o outro. As meninas se revezavam de dia para cuidar de Sabrina, e a noite, sempre que podia, Madame Sofia a visitava, e sempre paciente e amorosa a tentava trazer de volta à consciência de todas as formas que sabia. A medicina comum alí não poderia ajudar. Era, antes de tudo um problema espiritual o que afligia a menina.

     Certa manhã, quando já passava o fim da primeira semana do terceiro mês do sono inquieto e interminável de Sabrina, a menina loira, que foi sua primeira acompanhante na enfermaria, retorna mais uma vez, entre tantas, para os cuidados da manhã. E já sem expectativas de obter sucesso, ao escovar os longos cabelos negros de Sabrina, lhe chama carinhosamente, como num hábito rotineiro que nem se pena mais em como fazer, apenas chama a amigo. O que fez com bastante frequência, pois já estava muito apegada emocionalmente à nova amiga.

     “Acorde Sá! Estamos todos te esperando, com saudades!”

     “Paloma? Onde está você?” Foi apenas o que Sabrina disse, em voz alta, sem abrir os olhos, depois de muito tempo, então se calou. E como não mostrasse mais sinais de que fosse falar mais alguma coisa, Paloma saiu correndo para procurar Madame Sofia, precisava lhe contar o acontecimento. A senhorinha estava no jardim da frente dando aula de botânica medicinal para um grupo de jovens.

     No jardim, Paloma, interrompendo a aula de Madame Sofia, lhe conta a novidade. Todos ficaram surpresos com as notícias da “bela adormecida”, que foi o apelido carinhoso que todos chamavam Sabrina. Dispensando a turma com promessas de retornar ao mesmo assunto da aula na próxima semana, a senhorinha acompanha Paloma até a enfermaria para verificar a melhora aparente de Sabrina.

     De volta a enfermaria Paloma dá um grito de alegria ao ver Sabrina de pé, em frente à janela.

     “Conseguiu enfim retornar menininha. Quanta alegria em te ver!” Falou serenamente a senhorinha com a sua voz doce e trêmula.

     “Paloma me chamou Madame, igual a senhora fazia.” Disse Sabrina se voltando para a amiga. “Mas agora foi diferente, só agora eu percebi que estava dormindo.”

     Formou-se um longo tempo de pausa na conversa das três, que se entreolhavam sem saber o que dizer, até que finalmente Sabrina pergunta:

     “Quanto tempo eu dormi?”

     “Ah minha filha! Foi bastante tempo. Foram sessenta e cinco dias.” Respondeu a senhorinha calmamente.

     “Nossa! Mais que horror! Preciso urgente voltar pra casa. Papai e mamãe devem estar loucos atrás de mim.”

     “Você não se lembrou ainda, não é criança?”

     “Como assim Madame? O que eu tenho que lembrar? Hoje mesmo tenho que voltar pra casa!” Afirmou a menina bastante decidida. “Agradeço toda hospitalidade e cuidado, mas eu preciso ir, urgente!”

     “Peço que fique mais alguns dias menininha. Se recupere melhor, depois nós te ajudaremos a ir.”

     “Fique Sabrina. Ao menos conheça nossa casa.” Insistiu Paloma.

     “Como ficar? Papai e mamãe estão preocupados!” Respondeu Sabrina chorando, pensando no longo tempo perdida longe de casa.

     Em num gesto de muito carinho, Madame Sofia abraça a menina lhe afagando os longos cabelos. “Você já se lembrou do caminho de volta?”

     “Pensando bem, acho que ainda não. Como vou voltar?” Falou a criança chorando ainda mais.

     “Se acalme Sá. Vamos dar um passeio na cachoeira que fica aqui perto. Vamos conversar um pouco. Quem sabe a sua memória não vai voltando aos poucos.” Disse Paloma lhe pegando as mãos carinhosamente. “Que tal um piquenique?”

     Sem alternativas para argumentar, Sabrina concorda em ficar mais alguns dias naquela casa. E para se movimentar um pouco aceitou o convite para o piquenique, Sabrina amava cachoeiras. Madame Sofia prometeu que a ajudaria a encontrar sua casa assim que a menina estivesse mais forte. Paloma convidou Sabrina a dormir no quarto dela naquela noite. Na manhã seguinte seria o piquenique, iriam à cachoeira logo cedo.

     As meninas passaram a tarde toda conversando. Falavam sobre tudo, como velhas amigas. Sabrina até se esqueceu de sua preocupação, e entre os assuntos mais discutidos foi o motivo por que o vampiro as atacou dois meses atrás. Só não conseguiram entrar num acordo sobre o porquê de Sabrina ter tido tão grave recaída para ficar tanto tempo em sono profundo. Nasceu naquela tarde uma grande e verdadeira amizade. Naquele início de noite o sono de Sabrina foi profundo e sereno. Sonhou que sua avó vinha lhe visitar, e a levava de volta para casa.

Josemar Fonseca
Enviado por Josemar Fonseca em 24/09/2024
Reeditado em 27/09/2024
Código do texto: T8159198
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