Pequena Grande Poula

Poula estava de mudança. Sairia de Treze Tílias rumo a Joinville, pois sua mãe conseguira um excelente emprego como diretora de um colégio lá. A filha estava contente pela nova conquista materna, mas temia perder laços com seus amigos e nunca mais formar outros. Isso porque possuía acondroplasia. 

 

Sabia que outras condições eram mais estigmatizadas que a dela. Mesmo assim, não estava livre do preconceito. Era grata por nascer em uma época na qual pessoas com nanismo não eram mais bobos da corte desumanizados. A crueldade humana sempre foi sem limites. 

 

Seu décimo quinto aniversário seria no segundo semestre daquele ano. Iniciaria, portanto, o ensino médio na mesma instituição em que sua mãe seria diretora. Não esperava uma festa de aniversário chique. Nem tinha quem convidar, seus amigos não viriam de tão longe… O que queria de verdade era que, junto da edelweiss que seu pai sempre dava a ela, viesse um passaporte para a morada dele no Mundo das Fadas. 

 

Os cromossomos paternos não lhe concederam seus olhos cor de mel, nem o cabelo castanho claro, que gostava de usar curto. A genética recebida do progenitor foi o sangue feérico. Portanto, possuía asas e habilidade telecinética, configurando-a como fada veloz. Todavia, por ter acondroplasia, suas asas não eram desenvolvidas o bastante para voo. 

 

Essas asas atrofiadas eram facilmente ocultáveis em suas roupas feitas sob medida para seu corpo específico. Além disso, graças à sua habilidade mágica, poderia voar de igual maneira. Então nunca se incomodou muito com essa questão. Havia desafios maiores em ter nanismo. Entretanto, uma dúvida persistia em sua mente: será que seu pai nunca a levou para o Mundo das Fadas temendo que uma fada não alada fosse ser discriminada? 

 

Seus pais eram separados há muito tempo e, quando ainda eram casados, viviam com os humanos. Desse modo, Poula era uma fada a qual nunca conheceu seu mundo. Nas vezes em que via o pai, ele se dirigia a ela, nunca o contrário. Por isso, almejava conhecer o outro lado de sua ancestralidade. Afinal, estava farta de ouvir as histórias sobre seus bisavôs maternos e a saída deles do Tirol Austríaco. Ansiava novidades na sua genealogia, ora! 

 

Ao pisar no novo colégio, Poula tirou esses pensamentos da mente. Seu aniversário era só mais para frente. O desafio do momento era outro: cruzar o corredor até a sala de aula sabendo que todos os olhares estavam voltados para si. Com prazer, encarava feio cada rosto surpreso. 

 

Como esperado, no primeiro dia de aula, os professores exigiram uma apresentação dos alunos. Tão logo os olhares se voltaram para Poula, um riso contido foi captado por todos. Devido a isso, o professor presente deu uma bronca na turma, condenando a ação e exigindo que o culpado pedisse perdão. 

 

A vítima da história não esperou que alguém assumisse a atitude. Fez ela mesma uma investigação com seus olhos de águia e resolveu a questão. Utilizando seus poderes de telecinese, fez com que a cadeira do engraçadinho fosse para trás, fazendo-o cair. Um grito agudo foi ouvido e, dessa vez, ninguém conteve a risada. Bem-feito! Não se mexia com Poula e saia ileso. 

 

Ao final da aula, fez um balanço do que achara da instituição. Era muito maior do que a antiga e oferecia atividades extracurriculares. Por outro lado, sentiu pouco ou quase nada de acolhimento por parte dos alunos. Saiu emburrada da sala, com o coração apertado de saudade daqueles que ficaram para trás.  

 

Ainda assim, estava esperançosa. Afinal, aquele colégio oferecia treinos para olimpíadas científicas! Não perdeu tempo em coletar as informações sobre eles. Nunca tivera a oportunidade de participar no seu colégio antigo, mas achava física fascinante. Gostaria de prestar essa olimpíada ao menos uma vez a fim de descobrir se era tão habilidosa quanto pensava ser. 

 

Era impossível não se interessar pela área considerando ser uma fada veloz. Tinha noção de que telecinese era sobrenatural e nenhuma teoria a racionalizaria. Todavia, conhecer as leis da natureza era uma forma de autoconhecimento.  

 

Poula teorizava que manipulava o vento e, assim, movimentava objetos. Provavelmente, alterava-se a temperatura ambiente, criando um gradiente de pressão que estimulava o deslocamento do ar. O fantástico era esquentar o ar tão rápida e meticulosamente sem fonte de calor. Por mais que pensasse usar a energia de seu alimento, ainda assim estaria quebrando leis da termodinâmica. Com esse raciocínio em mente, sentia dominar melhor sua habilidade.  

 

Diante disso, esse treino mágico era essencial, porque a telecinese lhe era necessária no cotidiano. Pegar um ônibus era uma tarefa complicada devido aos centímetros faltantes para atingir a estatura média. Como alcançar o leitor do passe? E como alcançar a pia no banheiro do terminal? Era mais fácil esperar a distração alheia e usar mecanismos sobrenaturais até a sociedade decidir implementar acessibilidade.  

 

Poula  lamentava pelos que não tinham a opção da feitiçaria. Infelizmente, para alguns, a vida era desgostosa como um leberkäse. Pois sim, era talvez fosse a única de Treze Tílias a não gostar desse prato. Já para outros, a vida era deliciosa como um apfelstrudel. Quanta injustiça…

 

. . . 

 

No dia seguinte, seria a primeira aula de educação física. Poula estava ansiosa. Fariam uma grade pensando nela? Mesmo sem problemas de mobilidade, algumas práticas esportivas não eram recomendas pelo impacto na coluna. 

Futebol de cinco, eis a proposta do professor. Olhares em sua direção foram frequentes. Deviam pensar que a escola queria pagar de inclusiva. Assim, talvez nunca fizesse amigos ou inimigos, mas nunca seria esquecida. Que maravilha... Sendo filha da nova diretora então, chamaria ainda mais atenção. Por isso, guardaria para si essa informação. 

 

– O futebol de cinco é exclusivo para cegos e, desde 2004, está nos Jogos Paralímpicos. O Brasil é uma potência, com cinco ouros e um bronze. – O professor explanava. 

 

Poula era a única plenamente atenta na explicação. Não julgava as conversas paralelas. Afinal, se tivesse seu grupinho, faria o mesmo. Só desejava que o falatório acabasse logo para o sentimento de exclusão passar e se divertir com o esporte. 

 

Quando todos entenderam as regras, os times foram selecionados. Haveria rodízio, pois não havia quadras para tantos jogos simultâneos. Poula não foi escalada inicialmente, talvez pela coluna, mas assistir aos outros foi tão divertido quanto jogar. 

 

Os adolescentes corriam aleatoriamente e raramente chutavam a bola. Assim, a plateia gargalhava. Era espantoso que, com treino, alguém conseguisse transformar aquilo em um jogo fluído. 

 

Após o professor constatar baixo risco de choques e Poula sentir-se confiante, ela entrou em campo. Tentou focar no sininho da bola, mas falhou sempre nas recepções. Pela reação da arquibancada, estava chutando o ar e correndo na direção oposta. As risadas eram contagiantes e rapidamente já ria junto. 

 

A aula foi ótima. Nenhum suado, todos satisfeitos. Nesse contexto, Poula conseguiu seu primeiro papo com uma companheira de turma, que estava ao seu lado quando tirou a venda. 

 

– Que humilhação, hein? Imagina se fosse contra profissionais? – A colega comentou rindo. 

 

– Não sei como eles conseguem. – Respondeu alegre. 

 

Naquele cenário em que todos caçoavam a dependência visual mútua, Poula zoava junto. Afinal, não era o alvo da piada, mas parte de um grupo que tornava sua fraqueza motivo de diversão. Desse modo, finalmente começou a se sentir incluída.