A garota desmiolada.

     Aquela luz amarelada, pálida, trêmula e quase se apagando era a única coisa que se podia enxergar a quilômetros de distância. Sabrina vinha a perseguindo desde que foi surpreendida pelo temporal que começou no final daquela tarde. A luz foi a sua guia debaixo daquela chuva gelada e persistente fazia bastante tempo, mas a garota não sabia mais quanto tempo estava caminhando sem destino e desprotegida. Não tinha mais noção de que horas eram, nem de onde ela estava. Seu cansaço já estava insuportável e os seus pés e pernas estavam doloridos demais, não podia mais aguentar ficar de pé. Mas, somente mais alguns passinhos e finalmente chegaria a seu destino.

     Havia saído de casa aquela tarde sem rumo, estava muito decepcionada, e sentia uma tristeza incomum e agonizante, mas não fazia idéia do que havia acontecido pra ficar assim. Simplesmente não conseguia mais se lembrar. Em um momento estava arrumada para ir a uma festa, que havia combinado de ir com os amigos do colégio, inclusive, levaria para que todos pudessem comer alguns biscoitos que fez, de uma receita que aprendeu com a avó. No outro momento, a mochila onde os havia guardado ficou sobre a mesa da cozinha, esquecida e a garota saiu de casa sem rumo.

     Saiu assim de casa, angustiada, triste, preocupada, mas não saberia responder a ninguém, pior ainda a si mesma qual o motivo. O que havia acontecido pra ficar daquele jeito? Queria apenas aliviar aquele sentimento obscuro caminhando um pouco pelas ruas em volta de casa. Deu algumas voltas pelas ruas do bairro onde morava, indo e voltando por aqui e por ali, mas não estava vendo direito para onde ia, até que se viu em um lugar onde nunca havia ido antes na vida..

     "Como foi que eu vim parar aqui?" Se perguntou, aquela questão parecia impossível, a sua mente era só confusão.

     "Como que vou voltar pra casa? Não tem ninguém pra eu poder pedir ajuda." Se perguntou em lamento, dessa vez sentindo raiva de si mesma pelo que havia acabado de fazer.

     Não saberia voltar para casa sozinha, a garota não prestou atenção no caminho que fez, tamanha perturbação que estava sentindo. E também não havia ninguém ali por perto para ajudá-la, nem conhecido, muito menos desconhecidos, e parecia que não viria a aparecer nenhuma alma viva por ali tão cedo.

     Acontece que os sentimentos e os pensamentos confusos só fizeram piorar com aquela andança toda, e agora estava perdida, só para dificultar um pouco mais o que já estava impossível. O que era aquele sentimento esquisito que a estava afligindo tanto?

     "Que bela porcaria que eu fui fazer", disse pra si mesma, em voz alta, tentando se localizar naquele lugar estranho. Na verdade, desconhecido, porque olhou tudo em volta, e o que viu ali era até bastante agradável. Tinha bastante natureza por ali, diversas espécies de árvores ao longe, flores e plantas de muitos tipos na beira do caminho. Vasta vida selvagem também se escondia no meio do mato. Uma pedra, bastante grande, lhe chamou a atenção, estava de frente para uma estrada sinuosa, que seguia dentro da floresta, rumo a um ponto qualquer perdido bem no meio do monte à sua frente.

     Sentou-se sobre a pedra para descansar os pés e as pernas doloridos e tentar organizar os pensamentos. Ficou observando o lindo pôr-do-sol que começava a se formar naquele exato momento. Descrevê-lo aqui iria estragar a sua beleza, era um jogo de luzes muito bonito, de um colorido intenso, que fazia desde o amarelo ouro do sol até o azul profundo do céu acima, passando por alaranjados, avermelhados e arroxeados de tirar o fôlego. Parecia uma paisagem de outro mundo.

     Sabrina ficou ali sentada por um bom tempo, sem pressa, tentando organizar os pensamentos, descansando e olhando todo aquele espetáculo da natureza. Sua respiração se acalmou e conseguiu finalmente raciocinar direito. A natureza sempre lhe acalmava os sentimentos. Gostava muito de observar o vôo dos pássaros e, de tempos em tempos, um bando de pássaros barulhentos passava em revoada de volta para o ninho. Já era quase noite, algumas estrelas já começavam a brilhar no céu azul escuro da noite.

     "Talvez eu devesse ir até o final dessa estrada pedir ajuda, não tem mais nada nem ninguém aqui por perto." Pensou a garota decidida ao ver uma pequena luz se acendendo no final da estradinha logo que escureceu um pouco mais. E tão logo decidiu o seu destino ouviu um trovão ensurdecedor atrás de si, desses estrondos que assustam qualquer pessoa, até as mais corajosas.

     Automaticamente se virou para o lado de onde veio a assombrosa explosão sonora, e o que viu foi desanimador e apavorante ao mesmo tempo. Além de uma quantidade absurda de raios, uma chuva tremenda, daquelas que surgem de uma hora pra outra, estava já bem perto de onde a garota estava. Os raios, que horror, caiam um atrás do outro clareando, em fleches, toda a paisagem que havia escurecido de repente.

     "Preciso sair daqui correndo, e bem rápido", pensou Sabrina já a toda velocidade, desesperada, "talvez tenha algum lugar pra me esconder depois daquela curva."

     Tirou forças de onde não tinha e correu feito doida, floresta adentro pela estrada sinuosa. Logo percebeu que era inútil tanta correria, seu vestido de festa e os sapatos de dançar, da mesma cor, um azul bem clarinho, da cor do céu ensolarado, já estavam encharcados poucos instantes depois que saiu correndo. A chuva a alcançou depressa, seus cabelos longos e negros, como a noite sem luar, grudavam molhados e bem gelados nas costas. Sua única alternativa, afinal, era seguir aquela trilha misteriosa na direção daquela luz amarela, lá no alto do monte. Para onde mais poderia ir? Talvez devesse tentar voltar pra casa, mas não sabia mais o caminho. E aquela luz podia indicar a casa de alguém que pudesse ajudar. E pelo menos parecia estar perto, mais perto do que sua casa.

     Chegando mais próximo, alguns quilômetros floresta adentro, com os pés e as pernas bastante doloridos, de novo, a garota conseguiu ver afinal que não estava errada, havia sim ali, bem debaixo da luz amarela, um grande portão verde. Só mais um pouco, mais alguns passos e chegaria ao seu destino, mais um pouco e estaria a salvo da tempestade.

     Quanto tempo correu, quanto tempo andou? Sabrina não sabia mais, agora, apenas se arrastava por aquela estrada de terra batida, extremamente bem cuidada, não tinha nenhum buraco, não tinha lama, apesar da tremenda chuva que caia. A água da chuva corria ligeira pelas laterais da estrada, como dois córregos de água limpa, mas mesmo assim a garota tropeçava, uma vez aqui, outra ali, porque estava exausta, não aguentava mais andar, quase caiu diversas vezes.

     A chuva, e que baita chuva, não parava de cair, diminuiu um pouco, mas foi por um tempinho só, depois despencou, ainda mais volumosa. E o vento, além de muito frio, não estava ajudando, a empurrou o tempo todo na direção contrária, morro abaixo, mas a menina era insistente e finalmente conseguiu chegar, em um esforço que não reconhecia que podia fazer.

     "Mas este portão não é verde, ele é azul! Deve ser por causa dessa luz amarela que pareceu verde lá de longe." Pensou Sabrina, rindo logo em seguida, numa gargalhada sem sentido, esquecendo por um momento o seu desespero. Olhou pelas frestas da madeira do portão imenso, afim de ver se havia alguém ainda acordado naquela casa, aquela hora. O que pode ver, entre os clarões dos raios que ainda caiam, bem ao fundo, lá longe, enterradas num monte de pedras, uma porta e uma janela. Em frente à janela, iluminado por uma luz avermelhada que deixava escapar, um jardim bastante florido e mais adiante, mais próximo ao portão, muitas árvores, de todos os tamanhos, e no meio das árvores uma espécie de túnel formado por glicínias em flor, e depois ainda, uma escada pequena já ao pé do portão onde estava.

     Tentou abrir o portão, esforço inútil, estava trancado e não tinha campainha ali também. Gritou por socorro, esmurrou o portão, ninguém apareceu, ninguém a ouviu. "O que vou fazer? Não tem campainha, ninguém me ouve. Meu Deus, que fome horrorosa. Estou cansada demais pra voltar daqui." Pensou a garota, sem saber o que fazer, olhando tudo em volta. Talvez tivesse algum vizinho por ali, procurou, não havia. Lembrou-se de sua casa, lembrou também os biscoitos deliciosos que sua avó lhe havia ensinado a fazer, poucos meses antes de desencarnar naquele mesmo ano, e que fizera com tanto capricho para a festa que não iria mais.

     "Veja filhinha, como a massa fica bem mais bonita misturada à mão", lembrou-se chorando de saudades da avó que vinha sempre lhe visitar em espírito e também em sonhos. Esmurrou com mais força ainda o portão. "Será que ninguém vai me ouvir?" E bateu mais forte ainda no imenso portão de madeira, não, talvez sua força não fosse suficiente, estava fraca demais, então tentou gritar, mas não conseguiu. Começou a chorar, horrorizada com a sua sorte. Então caiu um raio bem perto dali, e mais outro, depois a chuva deu uma pequena amenizada. "Será que acabou finalmente essa chuva interminável?" Pensou a garota olhando automaticamente para cima, na escuridão infinita do céu, afim de conferir se realmente tinha parado o terrível temporal. Só então percebe, caprichosamente dependurado sobre sua cabeça um sino, daqueles bem antigos de bronze, que servia de campainha.

     "Tomara que tenha alguma alma boa em casa", pensou Sabrina segurando forte a cordinha que descia por debaixo do sino e balançou uma, duas, três vezes, caindo logo em seguida sem forças, e antes que perdesse totalmente a consciência, bastante fraca e entregue à própria sorte, viu que a chuva voltava a cair bem mais volumosa do que antes, a ainda mais fria.

 

Josemar Fonseca
Enviado por Josemar Fonseca em 02/09/2024
Reeditado em 13/10/2024
Código do texto: T8142650
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