Vida à espera
Eu precisava contar a Kenjo que a filha que ele tivera com minha irmã Jova ainda estava viva. Era a atitude correta, expliquei para Draginya, a mulher sábia, em cuja choupana na borda de Meráshma Shuma deixei a pequena Vida, antes de partir em minha jornada pessoal.
- Vou levar o arroz para vender em Niskigrad, - expliquei - e aproveito para procurar meu ex-cunhado. Quando eu voltar, em duas ou três semanas, trago algum dinheiro para ajudar a manter Vida.
- Dinheiro aqui tem pouca serventia - redarguiu Draginya. - Se quer me ajudar com o sustento da sua sobrinha, vou lhe dizer uma lista de coisas que nos seriam bem mais úteis.
A lista incluía alguns cortes de tecido, um tijolo de sal-gema, um tacho de cobre e outros utensílios de cozinha. Costurar roupas novas era uma prioridade, porque além do camisolão de lã e uma muda que trouxera da vila dos "empoeirados", Vida não possuía mais nenhuma outra peça.
- Posso trazer também um par de tamancos - sugeri.
- Só se for para ir com você até a cidade; aqui ela pode andar descalça, como está acostumada - declarou Draginya.
- O que são tamancos? - Perguntou Vida curiosa.
- São sapatos... de madeira - expliquei, apontando para meus próprios pés. - Eu uso botas, mas como os seus pés ainda vão crescer muito, vamos começar com algo mais barato.
- E eu vou crescer mais, tio Jole? - Vida me encarou surpresa.
- Nós, que não somos kolac, crescemos até uma certa idade - expliquei. - Você ainda vai crescer, ficar do tamanho da sua mãe, pelo menos.
- Não há ninguém menor do que Vida entre os blistavi - acrescentou Draginya. - Até porque, um kolac tão pequeno lhes seria de pouca serventia.
Vida continuou a me encarar, embatucada com a súbita realidade de que ainda não atingira o seu tamanho final. Os empoeirados paravam de envelhecer no ponto onde haviam tomado posse de suas "estacas", e até onde se sabia, podiam passar séculos desta forma.
- Quanto a alimentação dela... - voltei-me para a mulher sábia, em busca de sugestões.
- Não vai mudar muito; ela vai continuar a não comer carne - ponderou. - Mas ao menos vai poder experimentar algo diferente de comida crua.
Lembrei-me do guisado de Draginya e comentei:
- Depois que experimentar o seu tempero, vai ser um caminho sem volta.
Draginya recebeu o elogio com uma risadinha.
- O melhor tempero é a fome.
- Bom... quando voltar, acho que vou acrescentar um saco de arroz e umas galinhas... vivas. Assim não vão precisar ir atrás de ovos de tartaruga e coisas do gênero.
Draginya disse que eu não precisava trazer tudo de uma vez, ou daí a pouco teria que voltar com uma carroça. Mas, até por conta do saco de arroz, no mínimo eu teria que alugar uma mula para vir de Moshvará até ali. E assim, despedi-me de Vida e de sua tutora, e tomei o caminho de volta para casa, me sentindo um pouco mais leve do que quando fizera o percurso em sentido contrário, guiado pela blistavi que um dia fora a minha irmã Jova.
* * *
Duas semanas depois, eu estava em Niskigrad, e terminara de vender meu arroz no mercado. Antes de comprar o que Draginya me pedira para levar para ela, decidi descobrir o paradeiro de Kenjo e sua nova família. Não precisei procurar muito; ele morava num sítio nos arredores da cidade e cultivava cebolas. Eu o vi logo que me aproximei da plantação, trabalhando em meio aos canteiros com o filho mais velho, que teria uns oito anos de idade.
- Kenjo! - Acenei.
Ele levou a mão em pala sobre os olhos, para tentar identificar à distância quem o chamara.
- É você, Jole? - Indagou em dúvida.
- Sou eu - identifiquei-me, aproximando-me. - Precisamos conversar.
E olhando para o garoto queimado de sol ao lado dele:
- Só você e eu.