JANELAS D’ALMA
Pelas ruas eu seguia. Ia.
A olhar a folhas que rodopiavam.
A sentir o vento.
Ia.
Pensava no passado e no tempo.
Pensava: O tempo passa como fumaça. O tempo passa pelo buraco da fechadura como uma sombra. O tempo é nada. É neblina.
...
Via-me menina.
Uma criança a caminhar por aquelas ruas.
Tão crente no mundo. Tão cheia de sonhos, de esperanças.
Via-me sorrindo... a correr de mãos dadas com um menino. Lindo, lindo.
Que é feito de um tempo tão bom? Que é feito de um menino? Dos seus castanhos olhos radiantes? Que é feito de uma boca que tanto sorria?
Tudo está morto? Ou existe um guardador da infância da gente?
...
Eu ia tentando me convencer que tempo é nada. E querendo que tudo tivesse em algum canto guardado.
Por fim concluía: tenho um armário no peito e guardo o menino, a menina. As ruas... as luas... as estrelas... guardo o que os olhos viram. O que não viram. O que senti.
Será que ele morreu? Morri?
Se eu estou aqui a olhar?
Olhos, janelas d’alma.
De repente me invade uma calma.
Tudo está guardado. O infinito guarda e eu que sou um grão tudo guardo.
Sou um grão. Sou imensidão.
...
Onde andará o menino que corria?
Onde andará?
Estendo a mão.
Há uma busca tão grande. Tão intensa.
Será que algum dia ele pensou em mim?
Penetro em um jardim sombreado. O jardim do passado.
Vou admirar as flores. O desenvolver do botão.
Penso na criação. E penso no menino. Por que as lembranças me chegam tão fortes depois de tantos anos?
Havia amor ali? Havia cumplicidade. Genuína amizade.
E nos perdemos. Pela vida afora nos perdemos.
Aspiro o perfume da rosa. Aspiro. Caminho. Fecho os olhos e penetro em outro jardim.
Vou caminhando leve por entre os canteiros. E o vejo.
É ele. E eu.
Temos quatro, cinco anos. E sorrimos.
...
Corro ao seu encontro e ele me enlaça. Ele me abraça e eu me agarro ao seu peito. Temo que se vá. Quero segurá-lo. Então ele me diz:
-- Sempre estive aqui lhe esperando.
Minha cabeça está rodando.
De repente tenho de novo cinco anos e estou ao lado de alguém que tanto significou em minha vida. E ele está me abraçando.
Fecho os olhos e me recuso a abri-los. Se eu abrir os olhos e constatar que foi tudo uma ilusão começarei a chorar.
Arrisco uma pergunta e ela fica sem resposta. Sinto que ele já não me abraça.
Então abro os olhos.
Ele está me olhando e se afastando de mim.
Lentamente.
Anda de costas me olhando.
Vai sumindo e meus braços caídos ao redor do corpo me abraçam. Eles me enlaçam e eu aperto os olhos que ficam ensopados de lágrimas.
Eu nunca havia chorado por ele. Eu apenas o guardava.
Por que agora estou chorando? Não faz sentido.
Tantos anos. Uma vida.
E o que é uma vida?
Nunca mais o verei nesta vida material. Mas ele é mais que isso. Ele é das minhas lembranças a mais sensacional. Ele faz parte de mim, como o jardim, como o jardim...
...
Janelas d’alma.
Abertos meus olhos olham tudo... o que existe, o que inexiste.
Não estou triste.
E choro.
Meus olhos são cachoeiras e despencam pelo meu rosto.
Não estou triste, digo pra mim.
E continuo olhando o jardim.
Vejo um banco onde nos sentávamos.
Vejo a árvore preferida.
Vejo a bica, a cerca, a trepadeira.
Vejo uma escada.
E começo a escalá-la. Ela me leva até um sótão.
É uma escada e está em cima de nada.
Entro.
Abro a janelinha e espio.
Vejo o menino correndo, acenando.
Passo a mão no rosto. Enxugo.
Passo a mão em minha boca.
Está tão quente.
Todo meu rosto está quente.
Estou em febre.
Altíssima.
Estou delirando.
E ele continua acenando.
Penso.
É um adeus para sempre.
Mas se nunca vou arrancá-lo do meu peito.
Se ele vai morar em mim até quando eu deixar o planeta.
Ele continua acenando.
E eu desço a escada que não existe.
Desço lentamente.
Não encontro mais o jardim do passado.
Encontro uma avenida larga e começo a caminhar por ela.
Vejo uma casa e espio através da grade. Há uma roseira. E nela há uma única rosa aberta.
É amarela. É amarela.
Fecho as janelas dos meus olhos físicos e começo a viajar de novo.
As pétalas de rosa caindo sobre meu corpo... uma a uma.
São macias como é macia minha pele.
...
Ouço-o dizendo:
-- Quando você morrer vou cobrir seu corpo de pétalas de rosas amarelas. Você gosta?
Respondo com a voz que tenho hoje:
-- Não poderiam ser vermelhas? Eu gosto tanto.
Descubro que estamos eternamente enlaçados. O menino do passado não cresceu longe de mim. Ficou lá... eternamente guardado no jardim.
...
Caminho.
Chuto uma pedra. Admiro o sol se pondo.
Ainda ficarei por aqui sabe Deus quanto tempo... e conviverei com todas as minhas lembranças.
As janelas estão escancaradas. As janelas d’alma estão abertas. Eternamente abertas.
Que venham as lembranças. Que venham.
Eu aguento. Tudo eu aguento.
Até o olhar do menino indo... até o seu aceno.