Clemência (um conto viking)

Dos dois exércitos em confronto, apenas um parecia humano. O outro, não só devido ao fato de seus membros se revestirem com peles de lobos, dava a impressão de ser constituído por terríveis feras bípedes: eram berserkers, que, além de ferirem com machados e espadas, também faziam uso de suas unhas e dentes e demonstravam uma força prodigiosa.

Jarl Hakon, o líder do exército humano, viu diante de seus olhos um pedaço do braço direito de um de seus soldados, pele, carne e ossos, ser arrancado com uma única mordida. Isso que seus guerreiros estavam muito melhor protegidos, com elmos, escudos e cotas de malha, enquanto os berserkers se limitavam a ficar cobertos de lobos e havia entre eles, por incrível que pudesse parecer, com toda a aparente ausência de razão e sensibilidade, uma mulher.

Ela lutava ao lado do mais alto entre os homens ali presentes, seu marido Hrolf, peludo e muito magro se comparado a jarl Hakon, mas cuja potência dos golpes partia com facilidade qualquer escudo de madeira. Sua arma um longo machado.

Todavia, a despeito de toda a ferocidade, os berserkers estavam em menor número. E não pareciam sentir dor, seguiam lutando depois de terem orelhas ou dedos cortados, olhos perfurados ou de estarem produzindo rios de sangue a seus pés, porém não eram imunes à morte. De modo que começaram a cair, também perfurados por flechas. O próprio Hrolf ficou muito ferido enquanto se esforçava para se aproximar do comandante do outro exército.

Houve um momento em que tudo pareceu se tornar névoa. Não via mais por perto sequer sua esposa Bodil. Foi quando um guerreiro portando uma maça pesada se aproximou. Tentou golpeá-lo, com a intenção de esmagar-lhe o crânio:

– Chegou a hora de sua morte, lobo!

No entanto, algo se interpôs entre ambos, como um relâmpago: e era na verdade uma luminosa donzela armada, que deteve com seu escudo o ataque do inimigo.

Ela desapareceu em um instante, sem que nenhum dos dois a visse.

O guerreiro recuou, perguntando-se enquanto a surpresa o dominava: O que foi isso?! Alguma coisa me repeliu! Ao passo que Hrolf recobrara a claridade da visão e a força, avançando para decapitá-lo com seu machado.

Lúcido, ouviu então de um de seus lobos, que, logo atrás, deixara de rosnar para dizer:

– Temos que recuar, jarl Hrolf!

O líder dos berserkers pareceu visivelmente cansado e abatido, mas sua vista seguia clara, assim como ergueu sua voz para ordenar a retirada.

A batalha fora perdida. Restava aos fugitivos, horas depois em seu acampamento, agradecer pela sobrevivência e cuidar das feridas. Para isso, Hrolf contava com as habilidades de sua mulher, sua valente escudeira, que, assim como não temia dragões, não se intimidava com sangue e pus.

– Maldito seja jarl Hakon por nove gerações! Esconde-se atrás de seus homens e foge do confronto comigo – bradou Hrolf, ignorando a dor.

– Eu já o amaldiçoei por dezoito gerações. Que as terras que nos tomou não deem nenhum fruto, pois nelas ainda está o sangue de nossos filhos – replicou Bodil.

– Ainda não vi nenhuma lágrima escorrer dos seus olhos pelo assassinato de nossas crianças, mulher.

– As lágrimas talvez não passem de um hábito que dá aos olhos um prazer mesquinho, enquanto a alma se contorce e o restante do corpo se encolhe.

– As lágrimas de Freya fertilizam o solo!

– Freya chorará por nós e eu lhe darei novos herdeiros, Hrolf. Mas o que ficou no passado permanecerá seco.

– Suas palavras não parecem conter esperança.

– Diante do que temos vivido, só me restar esperar pelo Folkvangr.

– Eu decidi. Vou consultar a volva!

– Nada lhe garante que ela lhe trará esperança.

– No campo de batalha, eu estava próximo do fim. Tão prejudicado que quase não enxergava. Mas o guerreiro que ia me matar estranhamente recuou, como se algo o tivesse repelido, enquanto eu recuperei minha visão e minhas forças para conseguir enviá-lo ao Valhala. Tenho a sensação de que ainda podemos confiar que os deuses nos darão a vitória neste mundo.

– Se acredita que a volva poderá esclarecê-lo a respeito disso, então vá. Embora eu creia que seja mais provável que uma flecha tenha atingido esse guerreiro antes dele ser abatido por você. Foi isso: uma flecha deve tê-lo feito cambalear, enquanto você se recuperou de um mal-estar temporário.

– Não havia nenhuma flecha e as feridas de que você agora está cuidando ainda sangravam. Eram muito mais graves do que parecem ser agora. Talvez até estivessem em maior número, mas algumas desapareceram.

– Você não tem olhos para ver tudo.

– Não adianta discutir com você, que perdeu a fé nos deuses!

– Não perdi a fé. Apenas sinto que os deuses nos chamam… para longe de Midgard.

– Não, ainda é cedo! – E, logo após receber o tratamento, jarl Hrolf se dirigiu à tenda da volva, a vidente do acampamento. Sentou-se diante dela, uma mulher de olhar muito antigo, ainda que não aparentasse velhice, e requisitou: – Desejo saber o que as nornas me reservam.

A volva jogou as runas e permaneceu observando-as. Deixou o jarl impaciente. Tanto que ele resolveu perguntar:

– O que vê? Por que esse silêncio? – Ao que ela enfim respondeu:

– Vejo que o senhor, jarl Hrolf, tem contado com uma forte proteção.

– Eu sabia que os deuses não me abandonariam, após todas as injustiças cometidas contra mim e a minha família!

– Atenção, senhor. Há uma proteção, mas cujo fio logo será cortado pelas nornas. – Hrolf então mudou de semblante, parecendo preocupado. A vidente prosseguiu: – Terá de sobreviver à próxima batalha com suas próprias forças.

– Então ao menos eu não estava errado! Alguém impediu minha morte na última batalha! – Queria mais detalhes: – Foi um deus ou uma deusa? Foi o próprio Odin?

– Não foi o senhor das batalhas. Sinto uma presença clemente.

– Isso nada esclarece.

– Não seja ingrato, senhor. Seus olhos já receberam uma nova luz.

O jarl encarou a volva, ao passo que, perto dali, crianças brincavam, parecendo desafiar o céu vermelho. O Sol ainda estava presente, mas a Lua já surgia e, invisível, porém vigilante, a mesma donzela armada que salvara Hrolf as observava com uma expressão serena. Um semblante que desapareceria na batalha seguinte, quando, em pleno ocaso, desferiu golpes junto com seu protegido, triplicando sua força. Só parou, e seu rosto foi tomado pelo temor, porque Odin, caolho, se materializou à sua frente, empunhando a lança Gungnir.

– Não cabe a uma valquíria decidir o destino de uma batalha ou de uma vida. Sua função é apenas recolher os caídos, Eir – disse o rei dos deuses, inquirindo a seguir: – Deixou-se fascinar por um lobo?

Eir não conseguiu responder e o senhor das batalhas, sem ser visto por nenhum guerreiro, a envolveu com seu manto. Desapareceram.

Em Midgard o combate prosseguia: Hrolf ainda parecia imbatível, conduzindo uma perseguição a Hakon e seus homens, que fugiram para uma floresta.

Entre as árvores, onde se poderia pensar que os lobos encontrariam seu lar, os que escapavam pareceram desistir de correr e se voltaram para lutar.

Na violência do embate, quase todos os homens de Hakon foram mortos e o próprio perdeu sua mão direita, no confronto entre os líderes, arrancada pelos dentes de Hrolf.

Contudo, os arqueiros chegaram, disparando contra os berserkers.

Hrolf foi atingido primeiro, no ombro, por uma flecha.

Ainda ignorava a dor, mas um homem com uma lança o transpassou pelas costas. Sua queda significou a ruína de todo seu exército.

Bodil, ensanguentada, não deixou de pronunciar suas últimas palavras:

– Meu sangue secará estas terras para sempre. – E caiu.

– Senhor! – Hakon foi rodeado por seus homens.

O sangue escorria pelo braço que perdera a mão. Firmou-se para dizer:

– Não se preocupem comigo. O que importa é que jarl Hrolf foi abatido. Seus selvagens não mais saquearão nossas casas! Tomamos suas terras e suas vidas. – Lançou o olhar para o céu. O Sol estava ali, presente ao lado da Lua. Complementou então: – Parece que a Sol (1) hoje se recusa a partir. Creio que deseja testemunhar nossa vitória. – E se voltou bravamente para os seus homens: – Acorrentem o corpo de jarl Hrolf. Peçam às volvas para que consagrem a Odin as correntes com as quais o prenderão e assim irão enterrá-lo. Dessa maneira, não correremos o risco de um draugr que vagará à noite transfigurado em lobo.

Assim, o corpo de jarl Hrolf, líder de berserkers, seria enterrado entre correntes.

A valquíria Eir, por sua vez, também seria acorrentada, mas viva, a uma rocha obscura.

Odin se aproximou para inquirir:

– Se não foi o lobo que a fascinou, diga-me o que houve.

– Foram seus filhotes. – Eir deu sua resposta, erguendo a cabeça: – Não poderia permitir que um assassino de crianças saísse vitorioso.

– Não é sua função decidir o que é justo. Antes de invadir as terras de jarl Hrolf, jarl Hakon teve por diversas vezes suas terras saqueadas por jarl Hrolf e sua gente – replicou o rei dos deuses. E logo complementou, enquanto Eir parecia sem forças: – Velhos morrem. Homens morrem. Mulheres morrem. Crianças morrem. As nornas são impiedosas ao cortarem qualquer espécie de fio. Você ainda é uma valquíria jovem: tem muito o que aprender. E a punição fará parte de seu aprendizado, pois valquírias não são lobas.

Odin desapareceu. Eir voltou a baixar a cabeça. Lobos apareceram ao seu redor, como filhos das trevas. Rosnaram e começaram a mordê-la.

O tormento persistiu por horas, até se retirarem.

Na noite seguinte, pois ali não havia dia, depois do corpo da valquíria ter se reconstituído, os lobos regressaram.

Um se aproximou mais.

O tormento recomeçaria?

Limitou-se, no entanto, a lambê-la; e assim também fariam os demais.

(1) Na antiga religião nórdica, o Sol era uma divindade feminina.

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Marcello Salvaggio
Enviado por Marcello Salvaggio em 09/08/2024
Reeditado em 15/08/2024
Código do texto: T8125347
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