O sábio e a katana

Este é um conto de acontecimentos breves, pois fora escrito às pressas, mas meu objetivo não foi detalhá-lo muito, e sim transmitir minha própria moral a meus leitores... Espero que gostem.

O inverno nevado caía no Japão, ultrapassando suas fronteiras e mesclando o maior frio em Tóquio. Os habitantes trajavam-se com longos casacos e cachecóis espessos que ocultavam seus pescoços. No comércio era rara a freguesia, pois uma grande maioria preferia não sair de perto do fogo aconchegante de suas lareiras.

Quanto à Yin Shukima, fazia parte dos que não abandonavam suas residências por nada. No caso dele, bem, o tédio o levara até uma saleta depois de seu quarto e o fez contemplar, desanimado, um suporte triplo para bainhas de metal fino que comportavam katanas de tamanhos crescentes, alinhadas na horizontal. Seus olhos caídos eram como que forçados a reverem pela milésima vez suas melhores armas, herdadas pelo avô falecido há muitos anos.

A linha que dividia a lâmina em partes exatas lembrava o amor entre duas almas. Yin passou a ver isso depois da ida do avô, cujo relacionamento mostrou-se firme e inseparável enquanto durou. Não foi fácil vê-lo morrendo nos braços dos médicos sem nem mesmo poder se despedir devido à vidraça que os separava.

Uma lágrima nasceu em um de seus olhos, e sua descida pelas bochechas pálidas foi duradoura; só então alcançou os lábios, e mais gotas escorreram agora vindas dos dois olhos puxados. Foi quando a porta de madeira polida, encostada na parede de tábuas fora batida três vezes.

_ Yin... _ ele logo reconheceu a voz de sua irmã Hoki, fina como o canto dos pássaros. _ Está chorando?

Hoki tinha apenas dez anos de idade, o que tornava a resposta “sim” vinda de Yin um arraso forçado, mas profundo em seu interior.

_ N-não... Imagine Hoki. _ mentiu ele, enxugando o rosto de maneira discreta. _ Há quanto tempo está aí?

_ Acabei de chegar. O carteiro pediu que eu lhe entregasse isso _ e ergueu a mão revelando um pedaço de pergaminho surrado e amarelado, entrelaçado por uma fita carmesim.

Yin recebeu-o curioso e agradeceu Hoki, esperando ela deixar a saleta para ler o papel sossegado. Desde quando carteiros trabalham na neve? Os pneus de suas bicicletas encravariam no solo. Ele desamarrou a fita cuidadosamente e abriu o pergaminho:

Caro Yin,

Antes de nada, aceite minhas desculpas por interromper sua manhã com um pedaço de papel velho.

Eu me chamo Lin Hai, e creio que você precise me ver em seu próprio benefício relativo a seu avô e às suas antigas katanas que ele o deixou, nas quais, imagino eu, que no exato momento você esteja contemplando.

_ Como ele sabe disso? _ perguntou-se espantado, checando as janelas como que para olhar se alguém o espionava. Mas não viu mais do que árvores e uma rua deserta coberta pela neve.

Não, ninguém o espia às minhas ordens... É apenas uma suposição. Afinal, o que um jovem faria em tempos de neve nos asfaltos cobertos pela mesma? Era seu único recurso casual que me veio em mente.

Retomando o assunto, nenhuma revelação sobre minha pessoa você terá lendo esta carta, pois ela é mais preciosa do que imagina, mais pura do que a neve que cai por fora de suas janelas e mais importante do que os políticos corrompidos pelo dinheiro e corruptos pelo mesmo.

Caso queira me encontrar, se vista bem e encare o inverno até a primeira colina ao norte que aparecer em sua curta jornada, pois nela está construída minha humilde morada por trás de um emaranhado de vegetações variáveis, pois, aqui, recebo o abraço da primavera.

Não esqueça sua katana do topo do suporte. É a que seu avô mais usava em seus treinos.

Até mais ver, se esta for sua escolha.

Yin releu cada palavra. As letras eram belas, como que produzidas por pena e nanquim, e concluiu que aquela carta pudesse ter sido escrita por um dos amigos de seu avô que se via obrigado a explicar a morte dele. Afinal, o corpo ainda se encontrava sob análise do legista. Um médico, talvez.

Ele não hesitou em caminhar até o armário de seu quarto e retirar dele um casaco grande que alcançava seus joelhos, e, de uma gaveta bem a cima, um fino e único cachecol de lã verde-abacate. Sua bota de couro estava escorada no rodapé da parede, e ele achou que aquele era o momento certo para usá-la pela primeira vez.

Após aquecer-se com a roupa, Yin retornou à saleta de tábua, e, focando o suporte com entusiasmo, disse ao vão vazio:

_ Eu volto logo, vovô.

E pegou a maior katana e embainhou-a, deixando as outras duas em seus devidos lugares. Depois saiu às pressas corredor afora até alcançar a sala de televisão, onde Hoki se encontrava, penteando os cabelos de suas bonecas espalhadas pelo sofá.

_ Está vestido como um astronauta _ disse, se divertindo com a figura do irmão.

_ Sim... Geralmente as pessoas se vestem assim quando vão sair na neve. _ retrucou, impaciente. _ Olha, Hoki, vou deixá-la sozinha em casa por longas horas. Talvez eu não volte hoje, então eu gostaria de pedi-la para avisar papai e mamãe que fui dormir na casa de um amigo.

Ela balançou a cabeça.

_ Se você me deixar sozinha eu o entrego e digo que está mentindo.

Yin franziu o cenho por um tempo, mas seu semblante logo voltou ao normal quando pensou na fraqueza da irmã.

_ Lembra dos doces que a nutricionista cortou do seu regime por causa do excesso? Então... Eu deixarei você comê-los à vontade se me fizer este favor.

Ela logo concordou ansiosa, largando as bonecas e rumando a um pote de doces posto sobre a mesa. Yin aproveitou tal distração e saiu pela porta de entrada da residência, encostando-a sorrateiramente. Crianças... Tão fáceis de serem tapeadas.

Em alguns lugares, onde a neve era profunda, seus pés afundavam, originando um frio tão gelado que tomou seu tronco inteiro, mesmo coberto pelo casaco espesso. As mandíbulas impactavam com seus dentes superiores, mas a vontade de chegar à casa de Lin Hai prevalecia sobre todos os outros meios e obstáculos gerados pela natureza.

Yin era um pequeno ponto móvel no emaranhado de pinheiros. Sua katana havia acumulado sereno suficiente para que ficasse tão fria quanto uma pedra de gelo. Foi quando ele percebeu que havia esquecido as luvas. Mas aquele não era o momento propício para dar meia volta. A bainha metálica era envolta por seus dedos macios que a apertavam tão forte... Chegavam a marcá-la. Mas como diria seu avô, “Bainhas são como livros. O manuseio é uma essência para torná-las valorosas, afinal... de que seriam úteis senão para proteger uma lâmina imaculada?”.

A sorte de Yin era que as colinas não alcançavam quilômetros, e, onde ele perambulava agora o inverno sumia juntamente aos pinheiros. Surgiu uma vegetação implacável quando ele viu algo não muito diferido de uma maloca por entre os furos reverberantes das enormes moitas.

Impossível. Como a estação pode ter se auto-alterado numa simples colina? Ora, seus pés iam além da distância percorrida até ali, mas o frio inevitável fazia-o se sentir no interior de um freezer. Agora isso havia mudado, mas não era pelo sol que raiava a cima de seu crânio que ele largaria sua roupa invernal e retornaria como um jovem básico de camisa e calça, pois em breve veria a face da neve outra vez.

Mas sua percepção havia alertado que o entardecer se aproximava do crepúsculo, o que indicava que ele havia andado muito desde sua casa, pois lá presenteara a manhã. Yin só não entendia o motivo de as longas horas terem simplesmente sido reduzidas a minutos. Mas ele parou de se perguntar tantas coisas e seguiu a suposta selva de carvalhos e cedros, desembainhando finalmente sua katana para cortar os matos ou galhos que perigavam provocar sua alergia por vegetações desconhecidas.

Mas, antes mesmo de ele ascendê-la, algo rápido avultou o ar e foi parar em suas costas, como que um corpo humano acompanhando o vento mais forte jamais visto.

Era um homem velho, mas corpulento. O bigode duplo e grisalho como simples traços nítidos, os olhos amendoados tão claros quanto às águas de um oceano.

_ A vontade de alcançar um foco não lhe concede o direito de destruir os arredores dele. _ começou o homem, segurando a mão de Yin presa firmemente ao cabo ligado à lâmina reluzente _ Controle sua ansiedade, meu jovem. Às vezes ela pode levá-lo a fazer coisas indesejáveis.

Voltando a guardar a katana, Yin encarou-o por alguns segundos.

_ Quem é você, e... Onde pretende chegar? _ indagou, os braços trêmulos como conseqüência do susto repentino.

_ Sou aquele que lhe tornará um ser digno da katana que carregou durante sua longa viajem. Sou aquele que saberá o rumo de seu futuro após deixar a minha colina. E, por fim, sou aquele que, vulgo sábio, tenho como objetivo proteger meu lar começando pelas plantas que você quase arrancou dele. Pois cada folha arrancada das minhas árvores será uma vida a menos para habitar o mundo. A questão é... E se esta folha representar a sua própria existência? Você a arrancaria do mesmo modo ou hesitaria antes de fazê-lo? _ ele suspirou, fazendo uma pausa breve _ Sabe rapaz... Deus me concedeu autoridade sobre esta vegetação porque sabia dos riscos iminentes que ela correria nas mãos de um outro alguém.

_ Não preciso ter dúvidas de que você é Lin Hai. _ concluiu em voz alta. _ Mas suas palavras são misteriosas demais para serem ditas por essas bandas, e um tanto estranhas. Eu quase cortei sua vegetação apenas para prevenir que provocassem minha alergia.

_ É porque vivemos em mundos diferentes. Você não é puro de corpo e alma, muito menos de sabedoria. _ retrucou o sábio_ Minhas plantas e árvores são sagradas, meu caro. Sabe o quanto isso é pesaroso? Coisas sagradas não afetam a saúde, elas a melhoram se assim você quisesse; mas a ignorância falou mais alto e você quase as destruiu. Um exemplo vergonhoso da superficialidade humana dos dias atuais.

Yin, ouvindo as palavras profundas do sábio, sentiu que este recuou alguns passos até ficar menor do que seu verdadeiro tamanho.

_ Pronto meu jovem. _ disse o velho, abrindo um sorriso no rosto _ Agora, se for sua vontade devastar cidades, estados ou até mesmo países, acabe de vez com minha vegetação. Não haverá a massa para lhe nomear vilão, nem os desinformados para apenas lançarem a você olhares desgostosos.

_ Não, eu jamais farei isso, _ respondeu Yin rispidamente, largando de vez a bainha prateada, deixando-a cair pelo solo. E, no momento em que ela tocou as raras gramas, rosas vermelhas cresceram de imediato como que programadas para se mostrarem quando algo incomum caísse sobre sua matriz. _ pois meu coração indica que alguém muito especial está à minha frente. Alguém que como Deus confiaria seus cuidados apenas a quem é digno de sua confiança. Você é meu avô, Sr. Lin Hai. A outra metade de nossa katana enviada por Deus. Mas a katana é apenas um modo superficial e figurado de definir-mos nosso apego, e por isso eu a soltei.

O sábio abraçou o jovem que aparentava ser quatro anos mais novo que ele, e por um longo tempo, até a chegada da noite, eles conversaram sentados na pequena escada polida de bambu, naquele momento único que demoraria a se repetir, quando a reencarnação de seu avô voltasse para o paraíso.

GA Marinho
Enviado por GA Marinho em 11/01/2008
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