Morador Ilustre

Vindo de ninguém sabe onde, surgiu num domingo pela tarde, um homem já passado dos sessenta anos, na pacata e pequena cidade fria do interior catarinense.

Num lugar onde todos se conhecem, a figura do homem não podia passar em brancas nuvens, sem ser notada.

Cidade pequena tem seus hábitos e mistérios. Por mais calma que seja, pulsa-lhe no interior um coração que parece indiferente, melhor dizendo, que seus moradores são apáticos, não se interessam muito pelos fatos da vida com o respeito e a necessidade que qualquer ser pensante tem.

Parece, só.

Examinando com um olhar e sentir mais apurado, vamos verificar que os hábitos podem ser diferentes, mas o homem é o mesmo. Em qualquer lugar, seja aqui ou na Conchinchina – hoje o Vietnã.

Geografia à parte, o tipo que chegou à cidade instalou-se numa pequena casa de vila, de um só quarto. Os que queriam saber de pronto todas as informações sobre ele ficaram frustrados. O dono da vila onde o homem havia alugado a casa era um velho ranzinza e tinha fama de não bater bem da cabeça. Certamente não iria dar nenhuma importância às perguntas dos moradores curiosos.

- Tem cara de marinheiro aposentado, olha a japona dele – foi o comentário do dono de um freqüentado bar, metido que nem ele só a desvendar segredos.

- Você tá cego, homem? Não tem físico para ser marinheiro. Muito baixo – a vez foi de Josenildo, um velho vendedor de livros, numa loja antiga e cheia de exemplares quase tão velhos quanto ela.

- Tá todo mundo errado. Aquele camarada tem cara de ter sido alguém nesta vida – falou um terceiro, o Ramos, policial aposentado. O que Ramos falava era levado em consideração, pelo fato de receber seus proventos na Caixa Econômica, depositados pelo estado ao antigo policial. Aposentado, voltara a morar na cidade onde nascera. Tinha muita encrenca na cabeça para continuar morando em cidade grande.

Enquanto discutiam na praça, alguns bebericando uns goles da garrafa que continha uma mistura estranha de cachaça, canela e catuaba, adocicada com duas colheres de sopa de mel – receita infalível para manter a longevidade e afastar a terrível impotência, segundo o Valfrido, dono da pequena farmácia do lugar, nosso homem examinava seus aposentos. Estava acostumado com o procedimento. Não era de sentar praça em algum lugar durante muito tempo. Assim como aparecia, como num passe de mágica, não era mais visto nos lugares onde passava.

Sentou na cama. O colchão de crina era duro, mas bem melhor que o de capim, ou esteira. A casa estava mobiliada com ares um tanto fantasmagóricos, objetos antigos e estranhos, a começar pela mesa grande da sala, que não combinava nada com a modesta casa de vila. Parecia coisa de fazenda rica, onde não faltava cabeça de gado. Jacarandá de primeiríssima qualidade. O banheiro era pequeno, e a cozinha também. Mas ambos estavam de bom tamanho para servirem a Olavo, o novo morador da casa e da cidade.

Ali não o conheciam. Ninguém sabia de absolutamente nada de sua vida estranha.

Tão logo estava instalado na casa, um sabiá fez ninho na árvore próxima ao seu quarto. Bicava a janela cedinho, antes mesmo da claridade do dia. Era o despertador de Olavo. Acordado pelo novo misterioso amigo, ele preparava o seu café e comia um pão comprado de véspera, durante a noite anterior. Este pão era requentado numa chapa de ferro, tão comum nas cidades do interior, e levava uma mistura de lascas de azeitona, queijo minas e duas rodelas grandes de banana. Coisa para ninguém botar defeito, em matéria de esquisito.

Feita a primeira refeição, Olavo tirava de um grande baú que carregava sempre, um livro e punha-se a escrever. Fazia isto durante pelo menos três horas. Ao final de tanto trabalho, descansava um pouco. Gostava, como todos do interior, de um trago. Ele mesmo preparava o licor de mel, que de licor não tinha nada, era uma cachaça ordinária e meia xícara de mel, este sim, de boa qualidade. Tinha sempre duas garrafas envelhecendo, na sua tralha de viajante. A outra era para o uso diário. Quando chegava ao fim, uma nova mistura era preparada, e serviria de adega ambulante do tipo nem alto nem baixo, magro, sempre com um paletó cinza escuro. Sapatos, ainda que não fossem novos, muito bem engraxados, hábito antigo.

Olavo precisava comprar algumas coisas para a dispensa da cozinha. E uma escova de dente nova, reparou que as cerdas estavam ficando tortas, um mal que muitos não observam. Ele não. Cuidadoso, obedecia ao que o seu dentista havia aconselhado, há muitos anos. Nada de escova ruim, que não se presta para manter limpa a boca. E o bochecho com malva, diário e noturno. Este produto ele comprava na farmácia mesmo.

O povo da praça não sossegava. Quem era aquele tipo que passava a manhã escrevendo, fazia sua própria comida, sempre com tomates e cenoura?

Resolveram que o encarregado de receber o homem na cidade era Josenildo. Afinal, era ele o dono da papelaria e livraria da cidade, tinha algo em comum com o tipo que eles todos achavam muito estranho.

Quando Olavo estava se dirigindo ao mercadinho para fazer a compra da semana, foi interceptado pelo colega.

- Bom dia, amigo. Queremos dar boas vindas, somos todos mais ou menos da mesma idade, e reparamos que o senhor deve ser escritor.

- Bom dia, é muita gentileza de vocês – disse dando um forte aperto de mão em Josenildo, que se espantou tanto com a maneira como foi recebido, quanto com a força do homem.

- Josenildo Paranhos. Sou o dono da livraria, e todos gostaríamos em tê-lo como amigo.

- Prazer, Josenildo. Já havia percebido que você é o porta-voz deste povo. Olavo Brás dos Guimarães Bilac, a honra é toda minha.

- Quem?

- Será que o dono da livraria da cidade desconhece o meu nome, Josenildo?

- Conheço de sobra! Mas o poeta já morreu faz tempo!

- É o que você pensa, Josenildo, é o que você pensa.

E foi às compras.