Confissões

“Amigo, como está passando? O que anda acontecendo em sua vida? Quem você está sendo ultimamente? Adoro conversar com atores , você, me parece o melhor ator com quem já conversei. Tenho saudade daquelas noites longas, regadas com muito vinho e charutos. Tenho saudade de nossas viagens por lugares tenebrosos e desconhecidos da psique humana. Devaneios e confabulações, nas quais não se vai a lugar algum, porém, se vai a todos os lugares importantes.

As conclusões que chegamos de tais debates me ajudaram muito a entender e assimilar vários conceitos humanos, muitas das peculariedades de nosso ser. Cada dia mais, chego a conclusão de que nós somos um imenso problema para este mundo, este organismo vivo que chamamos de Terra. Cada minuto que passo neste globo me convence de que nós somos os cânceres, a doença que aflige este paraíso. Mas isto irá mudar, a terra está se movendo e lançando suas defesas sobre nós. A Terra finalmente criou juízo, ela agora age com bom-senso, está no começo de sua quimioterapia, destruindo aqueles que lhe fazem mal. E, quanto a nós, devemos rezar, ou não.

Não sei como anda sua relação com o grande senhor dos céus, o velho barbudo que escolhe quem é bom ou mal e que nos ama muito, mas não suporta quando transgredimos algumas de suas leis infantis. Minha relação com ele é boa, ele não me aniquila completamente e eu não blasfemo mais, ou apenas um pouquinho, escondido no banheiro. Agora o vejo como uma alegoria. Não é mais verdadeiro ou falso, para mim, do que Buda, Zeus, Apolo, Dionísio, Zaratustra, Vishinu, Papai-noel, Coelho da Páscoa, mula-sem-cabeça ou Sacis. Eu suma, não acredito mais nele e ele não acredita mais em mim, chegamos a este acordo.

Cada dia penso mais que os cristãos são um bando de suicidas em massa, que não tem coragem de se matar, por isso destroem esse mundo e, em seus discursos, dizem que isto é tudo sinal do final dos tempos. È, meu amigo, Jesus Cristo vai voltar, e o melhor, vai ficar na minha casa, um anjo me falou. Ele vai queimar todo este inferno! Aleluia. Amem.

Não entendo como a moral cristã, que dominou este mundo por tantos anos, ainda continua a arrebanhar tantos fieis, como as pessoas gostam de serem castradas, de não ter liberdade. É um jogo delicado este de “vigia seu vizinho e esconde o seu rabo”. Eu não os entendo, mas ainda assim os julgo e observo, de acordo com seus próprios pré-requisitos.

Tenho para comigo que, crescer é libertar-se de ídolos. Primeiro me libertei do Papai Noel, que nunca vinha na minha porta. Depois do coelhinho da páscoa, que nunca me dava chocolates, e assim, todos meus ídolos foram caindo, um a um. O ultimo foi a virgem que conseguiu engravidar, ou este foi o primeiro caso de inseminação artificial da história, o maior caso de propaganda enganosa do mundo, ou o corno mais famoso, ainda não me decidi quanto a isso. Apenas sinto que, os cristãos deveriam crescer não em idade biológica, mas sim em psicológica, e deixar seus ídolos morrerem e descansarem em paz. Uma pessoa que carrega prisões e prega a liberdade, julgando outras erradas, não me parece muito sadia.

Mas ainda assim, a moral me parece um bom mecanismo de controle. Nós humanos, principalmente os mais brutos, adoramos sentir o gosto de sangue. Se não for o nosso então, melhor ainda. Se não formos culpados de maneira nenhuma, estamos no paraíso. A boa e velha selvageria que carregamos dentro de nós ainda clama por atrocidades, disfarçada com nomes bonitos, na maioria das vezes.

Devo lhe por que a mente humana e contemporânea adora julgar pela superfície. Acontece um verdadeiro fast food de julgamentos a todo instante. Primeiro vemos. Meio segundo depois já temos uma opinião formada sobre o que vemos, e um preconceito, de acordo com nossos condicionamentos. Não existe mais tempo para pensar e, não existe mais tempo para reflexão. Mas existe muito tempo para punir os desgraçados e infelizes. Digo isso, mas na verdade preciso ser muito vigilante para não cair nos mesmo erros aos quais estou apontando. Afinal sou humano e uma parte desse câncer.

Mas devo lhe contar um episodio que ocorreu aqui em minha cidade, a fim de tentar ilustrar o pensamento que tive a cerca dos pensamentos humanos.

É simples, acontece que, um homem, não se sabe de onde ele é, achou por certo investir sexualmente sobre uma mulher. Ele achou que ela devia fazer sexo com ele, mesmo ela não sendo muito adepta dessa idéia. É o caso do bom e velho estupro, tão presente em nossa cultura ocidental quanto não queríamos imaginar ser. Não quero defender este homem, você sabe que preso à liberdade acima de tudo e, uma pessoa que não respeita a liberdade de uma pessoa, obrigando-a a fazer algo que não quer, tem que ser de alguma forma punida, quando digo punição não penso em cadeias, esses depósitos de gente que conseguem desumanizar ainda mais o ser humano, penso em alguma coisa mais sutil e sublime que ainda não sei conceituar.

Mas, o caso é que, a população com o argumento de estar cansada da demora da justiça para resolver esse caso, achou por bem que seria uma boa lição para esse estuprador, ser espancado até a morte, bem, neste caso até a quase morte, pois, eles tentaram e não conseguiram obter êxito total nessa ocasião.

É um caso difícil, você bem sabe, mas consegui enxergar varias nuances da psique humana nele.

Em primeiro lugar, a lei do olho-por-olho dente-por-dente ainda vigora em nossa sociedade, a boa e velha selvageria. Essas pessoas contentaram-se em julgá-lo culpado e foram júri e juiz deste réu. O espancaram até a quase morte, mutilando-o e rindo enquanto o seu sangue manchava a calçada, mãos e rostos ao seu redor. Nós ainda gostamos de execuções publicas. Pergunto-me, estes bons cristãos, com todo este instinto assassino, não estariam indo contra sua própria moral? Ou ainda, estes bons e respeitáveis cristãos, unidos em uma boa causa comum, já que, alguns nem ao menos conheciam a moça que fora estuprada, não estão sendo mais desumanas para com este estuprador do que ele próprio foi com a mulher que ele estuprou? Ainda não sei. Penso e minha cabeça dá voltas em mais voltas, a violência é mesmo fascinante e nossas vidas são tão normais, disse uma vez uma pessoa mais inteligente do que eu.

Mas, já que estão aplicando uma justiça tão ferrenha para com alguém mais fraco do que elas, que a apliquem também no caso dos grandes criminosos da humanidade. Ah, estes não! Para estes é dado nome de praça e ruas, são homenageados em praça publica e tudo o mais, são os grandes homens que conduzem à história. Sim, isso mesmo, falo dos grandes criminosos da humanidade, aqueles aos quais não conseguimos, nem com um milhão de palavras, expor para essa gente selvagem e inocente. Falo dos políticos.

Estes políticos, que nos privam de nossas necessidades básicas para sobreviver. Será que algum dia já se contabilizou quantas pessoas um político consegue matar por não pagar os funcionários de um hospital, ou por não fazer a manutenção dos aparelhos básicos que um medico precisa para trabalhar? Será que já se contabilizou, quantas crianças entram para a marginalidade apenas por que não tiveram em suas escolas uma educação de qualidade, que os ensinasse a pensar e refletir e seguir suas próprias vidas? Mas, não. É preferível deixar pessoas loucas à solta para que cometam crimes assim, para depois prende-las e gastar dinheiro com a segurança da população, gastar dinheiro em órgãos de repressão, como a policia, por que isso os garante mais votos e mais anos no poder.

É sempre mais fácil prender do que ensinar a ser livre e conviver com sua própria liberdade, e de outros, também. É sempre mais fácil matar e exterminar, do que curar uma alma. É mais fácil tirar uma pessoa do convívio social com outras do que lhe dar oportunidades e garantias de vida. E, assim caminha a humanidade: ovacionando assassinos públicos e exterminando assassinos anônimos.

Falo de políticos, mas também podem se enquadrar nessa classe suja, toda e qualquer pessoa que acumula riquezas, às quais não poderá gastar nem em uma vida, enquanto torna outras pessoas miseráveis.

Creio que se fizer um relatório de quem são essas pessoas para você, amigo, não conseguirei jamais terminar esta carta, mas sei que você sabe de quem estou falando e, com certeza, se não souber, refletirá e descobrirá com suas próprias pernas.

O que este homem fez pode ser condenado em qualquer cultura, isso é uma certeza. Mas os bons cristãos, não se perguntaram em um só momento, o que o levou a praticar este ato? É uma curiosidade que sempre tenho comigo, por que eles condenam os atos sem nem se perguntar quais foram as intenções de tal ato? Talvez aquele homem estivesse mentalmente doente, talvez não. Mas a grande questão é: eles se perguntaram antes de julgá-lo? Creio que não. A sede de sangue falou mais alto, eles tiveram de satisfazê-la. Isto era, no âmago de seus seres, o objetivo daquela massa ensandecida. Ainda gostamos de boas e velhas atrocidades praticadas com as próprias mãos, como nos tempos antigos, do qual nos orgulhamos de estarmos tão longe.

Eu me pergunto, se a evolução é uma condição de melhora e adaptabilidade ao meio em que vivemos, qual é nossa real evolução enquanto raça? Está mesmo na hora de sermos aniquilados enquanto espécie, disso não tenho duvidas. Temos todos os meios para que se crie um paraíso na terra, mas não conseguimos. Não precisamos de nenhum paraíso alem deste aqui, mas, no entanto, ficamos o esperando. Por quê? Uma única coisa basta, livrar-se de todos estes ídolos, lutar pela liberdade mental e física, política, econômica, e, o mais importante, ter peito para agüentar tal liberdade, acredito que seja isso que nos falta: força para agüentar a insustentável leveza de sermos totalmente livres. Proclamou-se uma doutrina e com ela circulou uma crença: Tudo é oco, tudo é igual, tudo passou.

Mas mudando de assunto, meu amigo. Escrevo-lhe, não para reclamar de nossa lastimável situação, enquanto raça, mas para lhe dar boas novas.

Há algum tempo estou me encontrando com uma mulher. Realmente, esta mulher parece ser diferente de todas aquelas que já encontramos por essa vida, ela parece ser especial. Ela tem certo brilho no olhar que me atrai, que me chama. Não preciso dizer que estou amando, certo? A grande Afrodite acertou sua flecha sobre meu coração. Estou feliz e ponto.

Você devia a conhecer quanto vier nos visitar. Você precisa conversar com esta menina, ela tem idéias diferentes, e parece não estar centrada nos paradigmas que a maioria da sociedade ocidental esta calcada. Ela tem uma luz própria, não aceita o que outros querem que aceite. Aceita apenas o seu coração. Às vezes acredito que ela é um anjo que veio para cuidar de mim.

Mas, chega de falatórios e voltemos à historia, você com certeza já deve ter percebido o quanto esta mulher é importante em minha vida, e o quanto seu julgamento parece ser importante para minha visão. Sabes o quanto sou critico quanto à minha obra e não confio minhas idéias para qualquer pessoa, não é mesmo?

Pois então, certo dia, chamei-a para tomar um vinho em minha casa, e, no meio da noite, enquanto ainda estávamos conversando sobre todas as coisas que podíamos conversar no universo, jogando teorias fora e nos conhecendo melhor. Resolvi lhe contar o enredo de meu primeiro livro em prosa, contei para ela tudo que ainda está no rascunho em minha cabeça. Enredo, personagens, atmosfera. Tudo o que venho pensando há anos.

Ela apenas me disse três palavras: Você é doente!

Você acredita nisso? Será que finalmente consegui meu objetivo? Finalmente consegui, após tantos anos e experiências guardadas, juntar um elenco de personagens que denunciem a mediocridade da condição humana? Personagens dignos de um épico? Estou finalmente pronto para contar em palavras uma historia digna de ficar guardada no tempo, ao lado dos grandes mestres da humanidade?

Talvez não chegue a tanto, e você talvez não entenda minha empolgação inicial, mas esta mulher também viveu muito e tem muitas histórias, e ao me chamar de doente, ela realmente me instigou. Ela que também enxerga as peculiaridades desta sociedade, nunca conseguiu enxergar as nuances às quais enxergo à minha volta. Ela também estava um tanto quanto cega.

Isso pode estar querendo dizer que estou pronto, já vi demais e agora posso contar o que vi neste mundo. Usar a ficção para falar da realidade e a realidade para falar da ficção.

Será uma brincadeira arriscada e, por isso peço sua ajuda. Sei que posso lhe mandar meus esboços dos primeiros traços, e sei que me dará sua critica pessoal sempre acida como sempre fez, para que eu melhore minha escrita sempre mais. Espere que compreenda o que quero dizer quando falo sobre este livro que ainda escrevei e, ataque os pontos certos e falhos de minha fala.

Seguirão anexos alguns esboços, e palavras truncadas, por enquanto, mas espero que olhe e me de sua sincera opinião sobre o que lê. O resto, vou mandando conforme escrevo os rascunhos.

Aguardo sua resposta, ansiosamente.

Sem mais meias palavras, meu amigo, despeço-me por aqui. Mande um grande abraço a sua mulher e aos seus filhos. Que de seu ventre artístico continue surgindo muitos outros artistas, tão talentosos quanto você.

Até breve.

De seu eterno e grato amigo escritor.”

Mais uma vez ele leu aquela carta e refletiu sobre a trágica história de seu autor que acometido por uma loucura subida nunca chegou a escrever mais do que esboços do que acreditava ser sua obra prima.

Quais eram os padrões que ele havia enxergado? Quais histórias ele havia imaginado para denunciar os padrões imundos da sociedade em questão? Quem era esse seu amigo tão especial? Quem era está musa? Qual seria a máxima dessa sua ficção que imitava a realidade que imita a ficção?

São perguntas que ele nunca poderá responder. Nunca. Apenas sabe que um dia leu esse textos e se apaixonou pela figura deste escritor. Uma mente tão sagaz não poderia morrer de loucura assim, do nada. Não podia ter desaparecido como desapareceu. Mistérios que cercam uma figura deveras misteriosa.

Por que ele gostou tanto de ser chamado doente por sua musa? Será por que as pessoas consideradas doentes, ou insanas, ou idiotas, cômicas, são as únicas pessoas que parecem ter um senso de realidade mais apurado que a maioria das pessoas? Às vezes, ele media a sabedoria de uma pessoa apenas pelo tanto que suas frases pareciam idiota e sem sentido para a maioria da massa, tais pessoas assim, são aquelas que sempre enxergam mais que a maioria. Era uma verdade quase que universal, que um louco na verdade nunca está louco, apenas se cansou de ficar calado no meio da multidão.

Para ele apenas a leitura desta carta já foi muito instigadora, desde então sai pela noite, procurando os padrões, procurando enxergar nuances. Adquirindo sabedoria para um dia, talvez, ele mesmo começar a escrever tal livro. Com tamanho peso e tamanha leveza.

Desde então, deixou sua antiga vida, seu antigo nome, seus antigos hábitos. Já nem lembra a quanto tempo tomou tal atitude, para viver as noites da cidade. Para compreender o que leva os seres humanos a serem humanos de fato. Anjos e demônios, sonhadores e despertos, criaturas e criadores, vitimas e carrascos deste mundo que os cerca.

Ele tornou-se um estudante. Ele tornou-se um forasteiro.