PERAMBULUCINAÇÃO

São tantas horas de um dia qualquer. Talvez da noite. Sol, lua e estrelas aparecem ao sabor das sensações.

O tipo vive a perambular, mas não só fisicamente. Sua mente perambula mais do que o próprio corpo.

Faz bem caminhar e pensar ao léu, ainda que os cientistas e estudiosos não hajam chegado à conclusão uníssona a esse respeito. Ciência e estudos foram feitos para divergir, tais quais os seres humanos. A bem da verdade, os desumanos divergem igualmente.

Convergir restringe-se aos rios, rumo aos oceanos. Ou será que os oceanos podem convergir em direção aos rios? Se uns e outros convergem, mais um caso para divergência no suposto ponto de encontro entre ambos.

No fundo, que interesse tem isso? Mares e rios destinam-se aos navegadores e pescadores. O tipo entende-se ligado aos dois. Gosta de pescar. Quando não vente muito ou, ao contrário, esteja quente demais, nem haja mosquitos para atrapalhar. Vida difícil, a de pescador. Encontrar as condições ideais constitui-se em tarefa hercúlea.

Seu passatempo preferido é mesmo navegar. De preferência, sem rumo certo. Para não se apressar, sentir ansiedade capaz de estragar o trajeto.

Enquanto anda sem saber aonde vai, saboreia a enganosa sensação de liberdade. Não é dia de trabalho, a companheira nada pediu do mercado, ele tampouco necessita dos corriqueiros bens de consumo no momento.

Um livro, quem sabe? Livros permanecem artigos de primeira necessidade, apesar de tantos incrédulos apegados à escravidão da informática.

Não! Hoje, nem as livrarias o tiram de sua rota onírica. Quer manter-se pronto para o que der e vier.

Opa! Cuidado! Acredita estar sendo observado. Os seres livres vivem assim, constantemente ameaçados pela repressão coletiva de governos, de seus congêneres desumanos, de convenções, de preconceitos, do diabo a quatro.

Triste hora para divagar sobre política. Homens públicos insensatos dizem e cometem asneiras sem fim, de modo tresloucado. Que país será esse de tamanha irresponsabilidade?

País? Talvez se trate de mera província. Condizente com a decantada mentalidade provinciana, tacanha, medíocre. Certa vez, o tipo ouviu dizer “petit pays, petit esprit”. Partindo desse princípio, quanto maior for, maior a ignorância. À beira da insanidade. Conclusão das mais lógicas.

Lógica para quê? Em terra de ilógicos, quase só de lojas vive o homem.

As divagações não têm limite. Ao divagar, vai-se longe. Exatamente o que ele quer. Ir bem longe, no tempo e no espaço.

Eis que pousa, a seu lado, um pássaro azul celeste metálico. Qual será seu cantar? Lembrança fugidia da infância vem-lhe súbito. Outro pássaro ou outro canto ou...

Canto de sereia! Isso mesmo. Não tem dúvida. Paixão soterrada nos confins da memória adormecida. A cor azul celeste provém do vestido que ela usava no baile do colégio. Metálico era seu coração, que ignorou os versos de amor do aprendiz de poeta.

Tolice, porém, rememorar tal desfeita. Vieram mais festas, brotaram novas paixões e amores correspondidos. Retomando o passo, o caminhante segue firme em sua perambulação. Pronto pro que der e vier. Sempre!

Sol e lua revezam-se, a trazer luz nessa caminhada. De vez em quando a mente embota, mas por fenômeno natural. Existem manchas solares, bem assim na superfície lunar. Basta ler para saber, embora nem toda leitura assegure a devida compreensão.

A vida é um desafio. Acabou-se o fim-de-semana. Ou foi o feriado?

De volta à cadeira e à mesa no escritório. De volta à poltrona no lar. De volta ao bar, ao cinema, à televisão e a todas as vozes que o circundam,

De volta à alucinação cotidiana de poder perambular.

Brasília, setembro 2021.

Revista Literária da Lusofonia n. 50, dezembro 2021.