A Fera na Névoa (Contos do Cavaleiro)

Parte dois da coletânea: "Contos do Cavaleiro" (a primeira parte sendo, "O Primeiro Sonho").

Era uma noite fria e chuvosa. Já era assim a algum tempo. O cavaleiro que havia sonhado com a Lua afiava a sua espada. A chama da lareira de seu quarto era a única coisa que o iluminava. Seu pequeno lobo, Lupe, dormia quieto perto da brasa.

Incessantemente, ele afiava a espada. Os movimentos repetitivos logo o trouxeram a pensamentos reflexivos. O que era tudo aquilo? Foi real o sonho? Se foi, onde ela está? Porque quer que eu a procure? Que mal é esse que faz até mesmo as estrelas fugirem do céu? Eram muitas perguntas sem resposta, mas ele tinha uma missão e, sem entender direito o que a Lua, uma deusa antiga, queria com ele, acabou por deixar pra lá o assunto.

Afinal de contas, ainda poderia ter sido apenas um sonho.

Após afiar a sua espada, pegou seu mapa e revisou a rota que tomaria, marcando possíveis pontos de descanso, de conflito e possíveis locais onde ele poderia cumprir sua missão.

O rei de Sihldaum estava oferecendo uma recompensa a quem encontrasse sua filha Hito, que havia desaparecido meses antes. A essa altura a recompensa estava maior do que nunca, já que a maioria das pessoas haviam parado de procurar tendo em mente que ela provavelmente já estaria morta. O cavaleiro certamente não acreditava nisso. Não podia acreditar.

Enquanto o cavaleiro guardava suas coisas, ele percebeu algo estranho: havia algo a mais em sua mochila. Uma estatueta muito pequena, que cabia em sua mão, de uma mulher esculpida em marfim. Ela usava um vestido cortado e tinha cabelos longos e encaracolados. O rosto lhe parecia muito familiar.

Era a Lua. Mas como isso foi parar ali? Dentro da sua mochila?

Sem saber o que fazer daquilo, deixou a estátua aonde estava e continuou organizando suas coisas. Ainda era madrugada, mas ele decidiu que quando mais cedo saísse, melhores as chances de encontrar a princesa.

Acordou seu fiel lobo e partiu rumo norte, em direção a um pequeno vilarejo nos arredores de Sihldaum. Já estava muito longe da capital e começava a perceber a água das enchentes que submergiam o seu calcanhar por completo. Desde o começo do ano, chovia cada vez mais e mais pessoas migravam para a Grande Capital. As cidades vizinhas de Sihldaum iam sumindo uma a uma por conta das chuvas. Uma coisa era certa: a princesa não conseguiria ir tão longe, pois a alguns quilômetros dali, a água já atingia o pescoço.

Andando mais um pouco pelo escuro da madrugada, uma névoa começava a engolfar o cavaleiro e Lupe, e logo sua lanterna a óleo não conseguia iluminar mais que 1 metro a sua frente. As casas abandonadas logo começaram a aparecer e portanto ele sabia que estava no lugar certo, mas sentia uma presença terrível à espreita.

Seu lobo parou e começou a rosnar, mudando de direção freneticamente. A coisa se movia rápido. O cavaleiro pegou sua espada e esperou em silêncio. A única coisa que ouvia era o rosnar de seu lobo, a chuva e os passos na água a sua volta. Parecia correr em círculos, rápido o bastante para que Lupe não conseguisse prevê-lo.

Percebendo o ritmo em que a criatura se movia, assim que seu lobo rosnou para trás, o cavaleiro deu um passo para a frente. Sentiu a criatura mais perto. O lobo se recusou a segui-lo adiante.

Esperou mais um pouco e deu mais um passo. Sentia o ar quente do bafo da criatura perto de seu rosto, mas não via nada. O lobo deu um passo a frente evitando ficar de fora da luz da lanterna, mas sempre atrás de seu companheiro.

Deu mais um passo, dessa vez menor. Ainda não conseguia ver nada, mas havia chegado a uma conclusão do que poderia estar lhe seguindo. Pegou seu pequeno lobo e o pôs debaixo do braço, apagou o fogo da lanterna e correu para a direita, em meio a escuridão.

Conseguiu ouvir passos rápidos logo atrás, seguindo-o incessantemente. Continuou a correr o mais rápido que podia até que deu de cara em uma parede de madeira. No chão inundado, atordoado ele tentava recuperar seus sentidos. Os passos rápidos se aproximavam. Ele se levantou.

Rapidamente, ele começou a tatear a parede, procurando por uma janela ou uma porta qualquer. Os passos acelerados da criatura chegavam cada vez mais perto e cada vez mais rápido. O lobo começava a rosnar novamente até que, enfim, o cavaleiro encontrou uma porta. Entrou correndo na casa junto de Lupe e fechou a porta atrás de si.

Se afastou lenta e silenciosamente da porta e esperou quieto no escuro. Ouviu a criatura arranhar as paredes e bater contra a porta, mas depois de tantas tentativas: silêncio total.

Antes de qualquer coisa, ele decidiu esperar mais um pouco em silêncio, pois não havia ouvido a criatura ir embora. Após alguns segundos, ouviu passos se afastando da casa e ligou a lanterna. Estava em uma cozinha pequena, com panelas sobre o fogão e uma pequena mesa de jantar. Pôs o lampião sob a mesa e se sentou com Lupe sobre seu colo. Enquanto respirava aliviado, pegou seu mapa. Tentou se localizar, sem sucesso. Olhando pelas gretas da persiana, lá fora só havia chuva e a grossa névoa. Começava a se perguntar se a criatura não teria algo a ver com tudo aquilo.

Decidiu então explorar a casa e começou a andar pelos pequenos corredores, até que ouviu algo. O chão de madeira rangeu, como se estivesse oco. O cavaleiro se abaixou e bateu com o pomo de sua espada. A tábua de madeira levantou sem muito esforço, ele então a removeu, dando de cara com uma espécie de porão.

Ao iluminar o escuro buraco, viu um corpo morto contra a parede. Estava muito magro, mas sem sinais de luta. Provavelmente havia morrido de fome. Estava acorrentado a parede, em seu colo estava uma mochila pequena. O cavaleiro se aproximou e se agachou para ver o que tinha dentro da bolsa.

Dentre as muitas tralhas que essa pessoa carregava, uma lhe chamou a atenção: era uma espécie de mapa, rabiscado a mão e com detalhes sobre certos pontos do vilarejo. Numa casa não muito longe dali, havia um ponto de encontro marcado. Sem muita esperança, o cavaleiro decidiu esperar amanhecer e ir até o local marcado. Ele se sentou na cadeira da mesa de jantar e ficou atento pela janela enquanto o sol não vinha. Lá fora, a névoa densa cegava a visão e a chuva forte ensurdecia os ouvidos. O cavaleiro fechou os olhos por detrás do capacete e logo cochilou, mas seu sono não veio sem perturbações.

"Eu sinto muito por isso." Uma voz doce sussurrou em seu ouvido.

"Mas não há outro jeito de me comunicar com você. Os sonhos são a melhor porta para o reino dos deuses e agora você está no meu."

Ao abrir os olhos, estava diante da mesma praia de antes. Dessa vez, olhou diretamente para o céu e viu a Lua, que vestia o mesmo vestido prateado.

"Vejo que você já se acostumou com esse plano astral. Não se preocupe, aqui você jamais sentirá dor. Eu abro essa linha e a fecho quando bem quiser, mesmo que ele apareça..."

"Eu sei que você tem uma missão, cavaleiro. Sei o quão digna ela é e porque realmente está atrás de Hito. Mas preciso de sua ajuda..."

O cavaleiro olha para baixo.

"Sei que não confia em mim e por isso lhe proponho um acordo..."

Ele permanece em silêncio.

"Eu lhe mostro onde Hito está e você entrega uma mensagem a um antigo e sábio amigo meu. Que tal?"

O cavaleiro levanta a cabeça, interessado.

"Pois bem, considerarei a sua mudez como um sim. Então, aqui vai: Hito está no vilarejo em que você está, não muito longe de você. Alguns bons metros talvez. Se está viva ou não, eu não sei, mas sinto sua marca próxima de você."

"Agora por favor se apresse, encontre-a e vá para o norte, em direção aos cânions de Éfira. Procure por Zeph e diga que veio a mando de Lunefér."

O cavaleiro acena com a cabeça.

"E só mais uma coisa antes de ir: se ela estiver viva, não deixe a pobre garota na capital. Não é seguro. Não como pensa. Leve ela com você, tenho certeza que ela ficará em boas mãos perto de Zeph."

Ela desce até a areia de pés descalços, fica cara a cara com o cavaleiro e sussurra.

"É hora de acordar..."

Num estalar de dedos seus olhos estavam abertos. O sol iluminava uma faixa em seu rosto, pela viseira do capacete. Ele se levantou, lá fora ainda havia uma névoa, mas a chuva havia parado. Assobiou então para seu lobo, que logo já estava acordado e lhe seguindo.

Abriu a porta da casa e pegou o mapa rabiscado. Ao ouvir sobre o paradeiro de Hito, decidiu ser cauteloso e andou devagar, seguindo o mapa. Pelo desenho, havia três casas na vila. Se ele estava mais à esquerda, seria só seguir em direção nordeste para chegar até a próxima casa, com sorte, Hito estaria lá. Mas essa não era a casa marcada como ponto de encontro e portanto talvez ela pudesse estar na terceira casa, mais ao leste.

Ao andar pela neblina, não sentia mais aquela presença e Lupe também estava mais calmo. Foi então que eles se depararam com a segunda casa.

A porta da frente estava completamente escancarada e caída no chão. Haviam marcas de garras por todas as paredes e sangue pelo chão, mas nenhum sinal de vida, ou daquela coisa...

O cavaleiro então, partiu para a única casa que restava no mapa, a que marcava o ponto de encontro.

Ele chegou até que rápido a terceira casa e ao tentar entrar percebeu que a porta estava trancada. Foi então até as janelas e olhou pelas persianas, enxergou cômodos vazios e escuros e uma porta fechada. Foi até a velha porta da frente e a derrubou com um só pontapé. Ao entrar, ouviu passos pela casa. Preparou sua espada e ordenou que Lupe ficasse na porta.

Se aproximou lentamente da porta fechada e a abriu em um só chute. O a porta acertou um rapaz que estava atrás dela, ele caiu no chão com os braços defendendo o rosto. O cavaleiro se manteve ameaçando com a espada.

"Não me machuca cara! Não me machuca!" O garoto dizia assustado.

O cavaleiro abaixou a espada devagar. Percebendo o gesto, o garoto continuou:

"Helen, você pode sair. Ele não é um deles."

Uma garota surge detrás de um pequeno armário de madeira com uma adaga na mão. Ela abaixa a lâmina e vai em direção ao garoto.

"Você tá bem?"

"Eu to legal. Mas tomei um baita susto." Ele ri.

O cavaleiro sai de frente da porta, ele vai até o corredor da casa em busca de outros cômodos.

"Ei! Amigo, quem é você?!" O rapaz grita, sem resposta.

Eles vão até o cavaleiro que segue abrindo porta por porta.

"Você não pode entrar assim e sair vasculhando as nossas coisas!" A garota exclama irritada.

"É cara, não pode!" O rapaz completa.

O cavaleiro chega até o fim do corredor. Não há nada lá.

"Quem é você e o que tá procurando cara? Talvez a gente possa te ajudar." O rapaz questiona procurando respostas.

O cavaleiro olha para os dois e se agacha. Ele pressiona o pomo de sua espada contra a madeira que range. O casal se olha assustado.

"Não mexe aí!" A garota diz.

"Deu trabalho prender essa coisa!" O rapaz completa.

O cavaleiro levanta a cabeça e olha pra baixo de novo, contemplando a sua escolha. Ele tira a tábua, esperando ver o monstro que lhe seguiu pela névoa.

Debaixo da casa, no porão secreto, uma garota estava presa a parede, desmaiada. Foi então que ao iluminar o rosto, percebeu horrorizado: era Hito. Ele desceu sem pestanejar e começou a lhe tirar das correntes. O casal se aproximou do buraco.

"Ei o que está fazendo! Você vai matar a todos nós!" A garota puxa a adaga, o ameaçando pelas costas.

Ele ignora e continua a desamarrar a garota desacordada. O casal pula no buraco e avança em direção ao cavaleiro. Ele solta a garota, mas não consegue reagir a tempo e recebe um chute antes que possa pegar sua espada. Hito permanece desacordada.

A garota pula com a adaga no cavaleiro, ele consegue puxar sua espada e se defender, dando um chute no estômago da garota. Ela cai para trás e o rapaz vai em direção ao cavaleiro, que aponta a espada para o mesmo.

"Ei cara! Você não viu o que eu vi." O rapaz tenta argumentar.

"Essa garota é uma fera demoníaca! Ela atacou nosso vilarejo e não sobrou ninguém..."

O cavaleiro encosta a ponta da espada no pescoço do rapaz. Ele se afasta, junto da garota com a adaga. Hito acorda.

"O que aconteceu?" Ela pergunta, confusa.

"Você matou todos! Demônio infernal!" O rapaz grita de longe.

"O que?!"

O cavaleiro põe a mão na frente de Hito, impedindo que ela prossiga.

"Hia, o que está fazendo aqui? O que está acontecendo?" A garota olha para o cavaleiro.

"Você conhece essa coisa?" O rapaz resmunga.

O cavaleiro olha fixo para o casal e anda para a frente, empurrando os dois pra trás com sua espada. Ele dá a mão com Hito e os dois caminham juntos.

"Vai ficar tudo bem." São as primeiras palavras que saem da boca do cavaleiro. Hito se aproxima do cavaleiro.

"Você vai se arrepender de libertar esse monstro! Vai se arrepender!"

"Quando a noite chegar, você vai se arrepender de ter liberto ela."

"Eu não entendo! O que isso significa?" Hito questiona assustada.

O cavaleiro empurra o casal contra a parede e faz Hito subir para a entrada da casa. Ele sobe logo em seguida. Os dois fogem e adentram a névoa. O casal não tenta os seguir.

Do lado de fora, o sol chega ao topo do céu: é meio-dia. Há ainda algumas horas até que a noite chegue.

(Fim da Parte 2)