Aqui e Agora

Hoje é o meu aniversário de 116 anos. Mas não me venha parabenizar. Não haverá festa. E talvez também por causa disso ninguém me cumprimentou ainda. Teresa costumava vir. Linda, fogosa, louca e radiante. Era como um animal indomável. Teresa. Ai Teresa, Teresa... Luís Carlos, Álvaro, Márcia, Matias... Todos já se foram. Para o céu ou para o inferno. Todos. Só eu estou aqui (e agora) nesse purgatório.

Cento e dezesseis anos... Posso afirmar que passaram rápido até os setenta. Nesse período, como num "longa metragem" triste, vi partir personalidades como Gandhi, Einsten e Martin Luther King (só para citar alguns semi-deuses). E ironicamente, eu, um simples operário de classe média, que não acrescentava qualquer coisa positiva ao meu restrito entorno, continuei a jornada rumo ao aqui e agora.

Quando alcancei os cinquenta e cinco, feliz, tentava fazer acordos de longevidade com Deus. "Não me leve antes dos oitenta, senhor!". Então os ultrapassei , e vieram os oitenta e cinco. E mesmo com os filhos, netos e bisnetos - já àquela altura viúvo - sentia as dores e delícias da solidão. E vieram os noventa e os noventa e cinco. E n'outro longa metragem vi irem embora Jô Soares, Marco Nanini, Rolando Boldrin, Gil, Caetano, Chico, Milton, Paul e Ringo. Ainda que desses últimos as amizades insistam reverberar nos vinis que manuseio precariamente.

Cento e dezesseis...

Aqui e agora especialistas advertem que "amigos virtuais" não deveria ser uma expressão para se grafar entre aspas. Virtual é só virtual, nada mais. De fato, pessoas das gerações mais velhas não têm (ou não deveriam ter) amigos virtuais. Simplesmente porque amigo é uma entidade real. Amigo é um ser palpável, consultável, compartilhável, abraçável e beijável. Como Tereza o era. Não instagramável. Por isso me fazem falta os amigos, não as festas. Estou olhando pela janela enquanto cai lá fora uma chuva mansa. A temperatura me é muito agradável: vinte graus. Ninguém vem, tenho certeza. Não saio bem nas fotos, nem nos vídeos. Fora a desconfortável sensação de falar sozinho o tempo todo. Deve estar na moda: não argumentam mais, não explicam, não dão margem ao diálogo. Viram as costas, simplesmente. O bloqueiam nos aplicativos. A foto do interlocutor se torna um borrão branco, em questão de segundos. O excluem. Deve dar menos trabalho.

Apenas o Gil está comigo aqui e agora, sussurra suas certezas num volume satisfatório (troquei as baterias do meu aparelho auditivo anteontem). Poeta e filósofo transcendental. Espero que um dia nos encontremos, amigo. Mas ouso discordar: o melhor lugar do mundo não é aqui nem agora.

GEORGES
Enviado por GEORGES em 09/06/2024
Reeditado em 12/06/2024
Código do texto: T8082101
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