A Viagem de Owain (conto em estilo medieval)

Da autoria de um anônimo autor irlandês do século XIII

Véspera de Pentecostes. Muitos homens e mulheres estavam reunidos na cidade, tanto valentes cavaleiros como mulheres, damas e donzelas, de bastante boa linhagem. Isso deixava feliz o rei, que os honrou e mandou servi-los da melhor maneira, tardando a se dar conta da ausência de dois entre seus melhores cavaleiros: Owain e Morholt.

Mandou chamar seu senescal, isto que era hora de noa, e perguntou-lhe se sabia por onde andavam.

– Não sei, senhor – disse ele. – Há muito tempo que não os vejo.

O rei sabia que eram grandes amigos, que nunca se separavam. Decidiu enviar para procurá-los seu condestável, que muito cavalgou até alcançar, na hora de prima do dia seguinte, após passar a noite sob o amparo dos caridosos monges brancos de uma ermida, uma torre na floresta. Parecia abandonada, mas ao se aproximar dela notou armadas três tendas coloridas e muito ricas, à frente de cada qual havia um par de escudos e um par de lanças. Por fim, reconheceu o estandarte de Morholt.

– Deve estar por aqui ao menos um de nossos cavaleiros – disse ele.

Havia uma mulher em uma das tendas, que estava dormindo, mas que despertou ao ouvir o relinchar do cavalo do condestável do rei.

Então saiu, pensando que fosse um dos homens de Morholt.

Ele, assim que a viu, desmontou e pôs em terra sua lança e seu escudo, para depois amarrar o cavalo a uma estaca. Se abaixara as armas, era porque não possuía más intenções, e por isso pôde ela, que era muito cortês, perguntar-lhe sem medo:

– Quem sois, cavaleiro, e o que desejais?

– Sou o condestável do reino e desejo, senhora, saber onde se encontra o senhor Morholt. E vós quem sois?

– Senhor, sou sua prima e esposa de um de seus cavaleiros, com os quais ele saiu em busca do cavaleiro Owain.

– E por qual razão?

– Porque sucedeu, senhor, algo terrível.

– O que exatamente, senhora?

– O senhor Morholt descobriu, para grande vergonha de sua casa, que sua esposa se deu a conhecer ao cavaleiro Owain, que ele sempre tanto prezou.

– Ai, Deus! E o que mais foi feito?

– O senhor Morholt decapitou a mulher e teria feito o mesmo com o cavaleiro Owain se este não tivesse fugido.

– Mas que grande desgraça!

– Deveras, senhor, a maior das desgraças que alguma vez se abateu sobre este reino.

– Muito obrigado, senhora, por me informáreis.

– Direi depois a meu marido e ao senhor Morholt que aqui estivestes.

Nisto, o condestável deixou o local para falar ao rei sobre a grande desgraça que se abatera sobre o reino.

***

Passa agora o conto a falar de Owain, que embora bravo cavaleiro era também muito cheio de vícios. Tanto que, ao crer despistados Morholt e seus homens, que pretendiam puni-lo por seu adultério, e Owain bastante temia especialmente seu amigo de outrora, pois melhor cavaleiro não havia em toda a Irlanda, deteve-se, na aldeia a que chegou, em uma taverna. Desejava beber, convencido de que necessitava de vinho para recuperar as forças.

Não eram, porém, as forças do corpo que lhe faltavam, e sim as da alma, tanto que permaneceu na taverna, entre os bêbedos e os vagabundos, da hora sexta à de vésperas, até que, quando enfim saiu, um homem bom, vestido com uma garnacha, apareceu para adverti-lo:

– Montareis assim vosso cavalo, trôpego como estais? Temo que não será necessário o inimigo, que outrora foi vosso amigo, para dar um fim à vossa vida.

– Quem sois e o que sabeis a meu respeito? – indagou o cavaleiro, voltando-se com surpresa ante semelhante maravilha.

– Sei o que me foi dito pelos anjos, que mo disseram para vos advertir e vos guiar.

– Guiar-me de que maneira?

– Para longe da morte, senhor. E não falo apenas da morte do corpo, que cedo ou tarde apodrece, mas da morte da alma.

– Isto para alguns pode parecer loucura, mas a mim assusta.

– Senhor, não sou dotado de clerezia nem tenho o donaire dos cavaleiros, mas confio na estima que tem por mim Jesus Cristo.

Então, ignorando os risos dos bêbedos que os observavam, deixaram a aldeia cavaleiro e ermitão, dirigindo-se à floresta onde o homem bom afirmava ter residência. Não iriam porém para sua morada, e sim para uma gruta da qual Owain notou que provinham gritos horrendos.

– Que maravilha é esta, senhor? – perguntou o cavaleiro.

– Senhor, cá se encontram as portas do Purgatório.

Owain avançou, impelido por superior vontade. Ficou para trás o homem bom. O cavaleiro andou até parar diante de um poço. Hesitou diante deste, vendo abaixo coisas terríveis. Até que escutou a voz:

– O que fazeis aqui?

Era um demônio. Owain não conseguiu persignar-se. Apenas pensava em seus pecados. De maneira que o demônio, sem receio, derrubou-o e arrastou-o consigo ao fundo do poço.

***

Fala agora o conto sobre o que houve a Owain depois que foi levado ao Purgatório, atirado perto de um rio que era o mais espantoso e o mais horrendo que já fora visto por seus olhos. Parecia certo que quem tocasse suas águas morreria, pois nadavam por ele criaturas peçonhentas.

O demônio usou um açoite para golpear as costas de Owain, que foi ao chão, sem forças para se voltar para trás e se levantar. O demônio o pisoteou dizendo:

– Eis o destino dos cavaleiros desleais e vis, que não respeitam seus irmãos de armas: descem à pousada das trevas!

Foi o espírito imundo que ergueu a cabeça de Owain para que fosse visto por seus olhos o que havia em outras partes do Purgatório, como em um mau sonho.

Avistou então um maltrapilho, que, embora coroado, era assaz magro e infeliz. Fora assentado sobre uma pedra áspera e pelos sulcos de seu rosto fluía o sangue que os demônios faziam escorrer de uma elevação espinhosa. Sangue de pecadores. A coroa repleta de ferrugem, causada talvez pela presença do mal.

– Irmãos, onde estais? – O homem gritou. – Rogo que oreis por mim! Se estiverdes na Terra, orai sem cessar nas igrejas! Se estiverdes no Céu, lembrai-vos de mim na casa da alegria, rogando ao alto Mestre!

Foi captada pelos ouvidos de Owain uma resposta em voz severa:

– Tu te fizeste esquecer por teus irmãos. Agora, restam-te a fé e a esperança, que deves recobrar, ou não merecerás galardão.

O coração de Owain foi invadido pelo terror. Mas muito mais havia para ser visto e ouvido.

***

Havia mulheres com línguas presas às rochas, marteladas por demônios de corpos diminutos mas membros imensos. Eles riam, enquanto para elas gritar era impossível.

Com o peito tomado por lancinante agonia, os olhos do cavaleiro foram mantidos abertos pelos dedos afiados do demônio, parecendo-lhe ter diante de si uma velha muito feia e espantosa, que os demônios faziam berrar. Vestimenta nenhuma do mundo a cobria, picada por espadas, garras e insetos.

Logo havia mais de mil diabos colocando nela suas mãos imundas. Esfregavam-se nela e diziam:

– Foste em vida licenciosa! Não respeitaste teu pai nem teu marido! Agora eles rezarão para livrar-te de nosso eterno deleite e teu eterno sofrimento?

O demônio que se impunha sobre Owain lhe falou:

– Não será ela a tua amada?

Acabara de introduzir no coração do cavaleiro a dúvida.

Levantou-o com suas patas, sobrevoaram o rio horrendo e desceram em um vale muito negro e muito escuro, além de fundo, onde a luz fora esquecida.

Ali havia choro e tristeza, mas não se entendia nada do que diziam as sombras, que pertenciam a grandes pecadores.

– Ai, infelizes! – disse o demônio. – Não há companheiros meus ao redor destes mesquinhos, mas ainda assim eles se veem atormentados e chicoteados. São fracos e tolos!

Introduzia em Owain ainda maior medo, que se tornou desesperador quando outros braços o agarraram, de outros demônios, e eram dezenas, carregando-o, para seu espanto, até uma cova incandescente.

Esta cheirava mal, emitia um forte fedor de enxofre, e aos olhos do cavaleiro, quando sobre ela, era como se tivesse sido aceso ali todo o fogo do mundo.

– Queimem! Ele deve queimar! – gritou o primeiro demônio, enquanto fazia com que Owain visse, em meio àquele fogo, sua amante, a esposa de Morholt, nua e descabelada, com as mãos cobrindo os seios mutilados, sentada em uma cadeira com a língua puxada para fora, seu corpo de pele muito branca queimando tal qual vela grossa.

Lágrimas cortantes desceram dos olhos do cavaleiro ante tal visão.

***

Owain decidiu invocar, não só para si como para evitar a eterna danação de sua amada, o santo e terrível nome de Jesus Cristo, diante do qual tremem os infernos e se dobram os joelhos de todas as criaturas que os possuem.

Os demônios contorceram seus rostos de desespero e ira, tendo de se afastar da luz em meio à qual descia um rei muito formoso cercado por uma companhia de anjos. Estes traziam consigo uma coroa de ouro e faziam em volta dele grande alegria com seus cantos e sorrisos. Alguns tocavam harpas, enquanto outros brandiam espadas das quais emanavam feixes de luz perfeita.

O cavaleiro compreendeu que aquele não era outro senão o filho de Deus. E, uma vez recobrado seu arbítrio, reapareceu diante do poço para o qual o demônio o tragara. O eremita estava ao seu lado. Perguntou:

– Vistes? Estais arrependido?

– Não podeis imaginar o quanto, senhor – respondeu Owain, que daquele dia em diante não deixaria nunca de orar por sua amada, a esposa de Morholt.

***

Conta a história que, quando Owain e Morholt tornaram a ficar frente a frente, o segundo colocou o escudo adiante do corpo, preparou sua lança e pronunciou palavras injuriosas. Estava pronto para disparar em direção ao outro cavaleiro e despedaçá-lo:

– Senhor, vos mostrastes indigno de vossa posição e linhagem – disse. – Cavaleiros não devem tomar um a esposa do outro, e sim socorrer as damas e donzelas do perigo. Vós, ao contrário, colocastes em perigo tanto vossa vida como a de minha esposa. E primeiro ela sucumbiu, agora será vossa vez, sob esta lança que sempre foi perigo para outros homens e dragões.

Só que para a surpresa de Morholt, Owain desceu de seu cavalo e se ajoelhou, inclinando a cabeça. Disse então:

– Senhor, eu me nego a lutar convosco.

– Como podeis dizer isso? Não possuís honra? – perguntou-lhe, perplexo, Morholt, ficando ainda mais furioso.

– Confessei meus pecados a um bom eremita e agora estou limpo de mácula. Entrego-me à morte sob vossa espada, pois não sou digno de derramar vosso sangue.

– Pois ainda que não reajais, eu o derramarei! Não terei piedade de um cavaleiro perjuro!

Morholt estava então pronto para decapitar Owain, mas antes que descesse a espada, ouviu o estrépito de outros cavaleiros se aproximando. Quando olhou para trás, viu que era o rei, acompanhado por seu condestável e por toda sua comitiva:

– Ordeno que vos detenhais de imediato! Em nome de Jesus Cristo!

– Nem mesmo vós podeis deter-me, senhor – disse Morholt. – É imperioso que eu mate o homem que manchou minha honra.

– Já sei o que se sucedeu – disse o rei. E perguntou: – Não sois cristão, senhor Morholt?

– Evidente que o sou!

– Assim sendo, por que não perdoais vosso irmão? A esposa infiel já está entre os mortos. E bem conhecemos os ardis de Eva, e como são capazes de desviar os homens. Não credes que seja melhor perdoar um homem que se humilha, que se mostra sincero em seu arrependimento, disposto a entregar sua própria vida?

Morholt passou a ora olhar para o rei, ora para Owain, que permanecia no chão e com a cabeça baixa. Até que, por fim, largou a espada, subiu novamente em seu cavalo e partiu. Seguiram-no os seus.

Só então Owain reergueu o olhar, agradecendo ao rei:

– Não tenho palavras para agradecer-vos, senhor, ainda que minha gratidão maior seja para com o Senhor do Céu, que muitas maravilhas me revelou nestes tempos e me deu nova oportunidade a fim de que não caísse em maior tormento.

– O que pretendeis agora fazer, cavaleiro?

– Retirar-me-ei do mundo, senhor.

Owain ficou de pé. Mas muitas vezes mais se ajoelharia até o final de sua vida, que levaria como monge branco. Dessa maneira, ficou certamente livre não apenas do Inferno como também do Purgatório, ascendendo ao Paraíso ao término de seus dias.

Morholt também se tornou monge, pois nada mais no século era de seu interesse. E o rei não lamentou ter perdido os dois cavaleiros:

– Se os perdi para Deus, não poderei jamais me queixar – disse ao seu senescal.

Assim terminamos este conto, tão repleto de maravilhas e mistérios. Chegou o momento de render graças e repousar.

Não busco louvores, por isso permaneço sem nome, como irmão e amigo.

Que Deus seja louvado em sua eterna glória.

Ámen.

Marcello Salvaggio
Enviado por Marcello Salvaggio em 04/06/2024
Código do texto: T8078504
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