GRIMÓRIUM
O GRIMÓRIUM
POR ROOSEVELT VIEIRA LEITE
O dia amanheceu ensolarado. O astro rei ardia no céu com toda sua fúria. As plantas pareciam murchas e as pessoas enrugadas como folhas velhas de papel. Saí de casa as sete. Caminhei até o centro de Campos e vi a multidão de pessoas ofegantes pelo pão de cada dia. Cada um ocupado com seus afazeres. Todos na esperança de um dia melhor. Não parei, não conversei com ninguém. Estive no meio do povo como um observador. Vi uma senhora de meia idade em uma bicicleta. A mulher passou por mim com total indiferença a minha pessoa. Ela e a bicicleta montavam uma peça só. Aquela mulher, verdadeiramente, estava com pressa. Depois ainda na Avenida sete, em frente ao G Barbosa supermercado, uma criança pedia uns trocados. Sem nada dizer meti a mão no bolso e lhe dei algumas moedas. Ela, também, nem me agradeceu; seguiu seu rumo com um olhar opaco. Depois, subitamente, senti o desejo de ir ao cemitério. Resolvi passar alguns minutos na terra sagrada, andei pelos becos, caminhei entre os túmulos e covas. Vi o nome de tanta gente conhecida que se foi. “É todos estão indo”. Eu Pensei. Um túmulo me chamou muito a atenção. Era o túmulo de uma moça que fora abusada depois de enterrada. Lembrei-me da época deste crime horrendo. Senti a dor e indignação da família. “Nem os mortos têm direito a paz hoje em dia”. Na capela do cemitério estava tendo um velório. Era um rapaz que morrera afogado na madrugada passada. Ele fez uma aposta com um amigo para atravessar um lago. No meio do caminho ele não aguentou e se afogou. Fatalidade. Uma alma tão jovem. Os cemitérios nos anos da adolescência foram muito frequentados por mim. Sempre em momentos de tristeza eu ia para um deles. Depois do cemitério, decidi caminhar até a biblioteca municipal. Lá uma moça me recebeu. Ela vestia um vestido branco com um lenço, também, branco na cabeça. Andei pelas estantes, olhava um livro depois outro, mas, nada me chamou a atenção, exceto, um grimórium antigo do mestre Papus. Decidi sentar-se para folhear melhor a obra. Papus discorria sobre os segredos da magia elemental. Isso me chamou muito a atenção. Resolvi passar mais tempo e ler o livro enquanto tivesse tempo. Enquanto eu lia o livro as lágrimas caiam de meus olhos em ver com tanta clareza as obras do criador. Então, por volta das onze horas o livro ganhou vida e voou pela biblioteca e em seguida criou uma boca enorme e me engoliu. Quando cobrei a consciência eu estava em outro lugar cuja luz era lilás.
A luz lilás era intensa. Diante de mim uma estrada em linha reta se apresentava. Comecei a caminhar pela estrada pavimentada de paralelepípedos de ouro. Havia jardins de rosas e flores nas laterais. A sensação de caminhar era agradável. Caminhei até chegar defronte a uma igreja. Seu estilo era neogótico. As portas da igreja se abriram e eu entrei. O interior da igreja era muito bonito. Havia três filas de bancos na nave. O altar de mármore logo me chamou a atenção. No lado oriental do santuário havia um confessionário de madeira. Abri a porta e sentei-me. Não demorou muito para mim ouvir uma voz cansada dizer:
- Que fizestes na vida Paulo? A voz me assustou um pouco.
- Eu? Nem sei padre. Fiz de tudo um pouco.
- Conte-me um pedacinho de sua história. Parei um minuto para pensar. Na verdade, eu estava sem saber por onde começar. Decidi falar um pouco de tudo.
- Sou filho único. Meus pais me deram quase tudo. Tive uma boa educação e uma infância marcada pela angústia e pela alegria. Nos momentos de angústia eu chamava muito por Deus e na alegria, eu confesso que me esquecia Dele.
- Você já perdoou seus pais?
- Não sei se perdoei; tenho uma certa dúvida. Na verdade, não penso neles. Já faz muito tempo que faleceram. Hoje vejo que ambos estavam certos e errados. Cada um tinha uma visão pessoal da vida. O que eles queriam era ser feliz, mas, do jeito deles.
- O que mais te marcou na infância? Eu pensei um pouquinho e disse:
- Duas coisas me marcaram muito. A primeira foi boa. Foi quando eu ia brincar na casa de dona Francisca. Esta época foi sensacional. Não me esqueço de nada. Foram os melhores dias de minha vida. A segunda foi ruim. Foi quando meu pai deixou minha mãe. A solidão tomou conta da casa. Eu parei um pouco e fiquei a pensar. A voz do confessionário continuou:
- Por que você parou Paulo? No que pensas?
- Acho que este período de minha vida foi muito ruim. Envolvi-me com drogas e más companhias. Eu morria de vergonha em dizer para os amigos que meu pai tinha ido embora. É difícil viver sem pai, não é?
- É. Mas, você deu a volta por cima, não foi? Fiquei a pensar sobre a expressão volta por cima. Então perguntei a voz:
- O que você quer dizer com volta por cima?
- Você não se tornou um homem mal. Você é uma boa pessoa, sabia?
- Acho não. Deixei minha mulher depois de vinte anos de casado. Passei minha vida quase toda só.
- É lógico que você cometeu alguns erros, mas, no geral, sua vida foi marcada pelo bem. Uma mão entra no confessionário e escreve no ar a seguinte frase: “Viva a vida bem”. Em seguida a voz se cala e eu saiu do lugar me sentindo um tanto aliviado.
Acordei novamente na biblioteca. Eu estava suado e o livro aberto sobre a mesa. A moça de branco se aproxima e diz: “Moço, a gente vai fechar para o almoço”. Tomei o grimórium emprestado e segui passando pela praça da Bandeira rumo a avenida sete. Havia um rapaz que trabalha na caixa que estava do lado de fora. Quando ele me viu perguntou:
- Não te vi no terço ontem. Onde estava você rapaz. Temos que rezar o terço dos homens. Eu pensei no que ia responder. Na verdade, eu não queria rezar o terço. É muita repetição. Se torna cansativo.
- Ah, ontem... Eu dormi muito cedo mesmo, não vi nem o jornal. Eita que sono!
- Semana que vem não falte não!
- Certo. Como você está?
- Eu estou bem. Já, já eu me aposento aqui da caixa. Quando ele falou me aposento. Lembrei-me dos dias de ADEMA. Vida dura durante muitos anos trabalhando para o estado de Sergipe. Fiz muitas amizades, mas, as que mais eu gostei foram embora logo: O Marcio, morreu de enfarto, Rodriguinho da professora, acidente de carro, Feliciano, câncer. Meus melhores amigos já se foram. O rapaz da caixa continuou a conversa:
- Você já é aposentado, né? Timidamente respondi:
- Sim.
- Então melhor ainda. Por que você não entra para o grupo dos homens aposentados? Dizem que é uma benção, Padre Souto vai gostar.
- Está bem Mateus! Decidi voltar para a minha casa. Caminhei até o Agripino. “Lar doce lar” disse eu para mim mesmo. Coloquei o grimórium sobre a mesa da sala e fui fazer as coisas. Almocei às doze e meia. Carne assada, arroz, feijão e salada crua. Depois fui à sala ler novamente o grimórium.
A proporção em que eu lia o livro meus olhos se enchiam de lágrimas. Minha atenção foi tomada pela obra de Papus. O livro causava um efeito muito positivo em mim. Contudo, em um dado momento ele ganha vida e dá um voo pela sala e quando retorna novamente uma boca enorme aparece diante de mim e eu sou engolido. Quando percebo alguma coisa estou em um corredor enorme com uma luz branca, cristalina; caminho pelo corredor e vejo sete portas com nomes cabalísticos escritos nelas. Não hesitei em abrir as portas. A primeira dava acesso a um salão que parecia uma sala de aula. Nela estava um homem com a cabeça na forma de coruja e ele explicava sobre a fé: “Fé é a firme convicção das coisas que esperamos, e a certeza das coisas que não vemos. O mundo precisa de fé. Já pensou o mundo sem fé?” Seus alunos eram embriões que estavam dentro de frascos de vidro. Quando ele falava os embriões pulsavam. “A religiosidade é fundamental para uma sociedade saudável” Disse o professor coruja. Muito me emocionei com o ensinamento do homem coruja, então uma voz que transmitia paz me disse: Vá nas outras seis portas. Então, obedeci a voz feminina que me falou e fui de porta em porta. A segunda sala era, também, no formado de uma sala de aula. Nela estavam seres do tamanho de um palmo. Eles aplaudiam a professora que falava sobre o amor: “O amor é o ensinamento máximo do Mestre Jesus. O maior problema da sociedade é a falta de amor nas famílias. As pessoas se relacionam sem a base do amor ao próximo. O interesse, a vingança, a cobiça e sobretudo o egoísmo corrói a sociedade pós-moderna”. Os pequeninos aplaudiram a professora que tinha a forma de mulher, mas, a cabeça era de tamanduá. Na terceira sala encontrei anões que sentados ouviam atentamente o mestre. Este era um homem que usava óculos gigantes. As lentes grossas faziam com que seus olhos parecessem enormes. O homem falava do conhecimento: “Conhecer é inerente a pessoa humana. Estamos numa época em que a filosofia se cristalizou nos dogmas dos clássicos. Precisamos de uma filosofia da diferença. Ou seja, uma filosofia que não seja a cópia retrabalhada do que já foi dito”. Os anões começaram a pular de alegria e aplaudirem o professor. Na quarta sala encontrei uma professora cega que ministrava a aula para pessoas cegas. Ela falava da justiça. Ela dizia: “A justiça é um dos atributos de Deus. Para que haja justiça se faz necessário uma postura imparcial do magistrado. Ele não pode olhar lados ou cores. Mas enquanto a justiça não perceber os milhões que ficam fora do mercado jurídico por não ter meios, ela, aqui neste país terá sempre o lado do mais forte”. Seus alunos eram homens brancos e bem-vestidos. Ele estavam em silêncio e permaneceram assim. A quinta sala tinha a cor vermelha. Nela estava um homem alto e forte, com a cabeça na forma de uma bola de aço. Ele segurava uma espada na mão direita. O homem falava sobre a lei: “A lei de um povo está diretamente relacionada a sua história, modos de produção e crenças. Para que as leis sejam mais justas se faz necessário ouvir todas as vozes e clamores. Mas existe uma lei que é justa e boa. A lei do criador”. Seus alunos eram fetos adormecidos que se portavam com muita indiferença ao que o professor falava. A sexta sala era escura, as paredes eram de cor preta. O professor assumia diferentes formas. ora era um homem, ora era um macaco, ora era uma águia e assim assumia a forma de diferentes seres da natureza. Ele dizia: “A evolução é uma lei fundamental da natureza. Tudo se renova, tudo se modifica. É necessário o humano evoluir, romper paradigmas retrógrados e idiossincráticos. Para evoluir foi que o criador nos criou”. Quando o moço multiforme termina de falar seus alunos que eram pequenos fetos se transformam em borboletas e voam por toda a sala. A sétima e última sala era de cor azul clara. Nela estava uma sereia. Os fetos tinham a forma de peixes e ela falava muito mansamente: “Criar, eis o que importa. Criar algo novo é um imperativo social. Estamos repetindo o tempo inteiro. Este país repete os modelos de uma sociedade latifundiária e escravocrata. Somos a cópia do passado numa versão moderna. Precisamos criar, gerar novos filhos, novos brasileiros”. Andei pelas salas, vi e ouvi o que foi dito. Quando dei por mim, estava eu chorando com o livro aberto. Terminei de ler o grimórium por volta das sete horas. Tomei café, assisti um pouco de televisão depois fui dormir. No outro dia fui a biblioteca devolver o livro...