Um conto de amor felino
Em um dos becos escuros da cidade de Las Vegas, numa madrugada quente e úmida, uma linda gatinha miava desesperadamente em busca de alimento. Com poucos meses de vida, acabara de perder a mãe atropelada por um carro em alta velocidade, provavelmente mais um bêbado irresponsável saindo de algum cassino.
Enquanto miava com fome, atraiu a atenção de um gato de rua, também filhote, porém, já demonstrava certa maturidade própria dos gatos moradores de rua. Ele se aproximou e deu um miado longo e firme, que silenciou instantaneamente nossa gatinha:
— Miaaaaau!
Para facilitar a compreensão do diálogo que se segue, utilizaremos a tradução livre do dicionário "gatolês":
— Calma, mocinha! Por que choras dessa forma?
— Eu tenho fome, estou com frio, estou com medo! Esses becos são assustadores. — Deu um miado trêmulo ao ver o gato aproximar-se.
Ele era um gato pequeno, magro, branco, com pequenas malhas acinzentadas. Mesmo sendo filhote, trazia nos olhos o sofrimento e a malícia das ruas. Chegou bem perto dela e deu um miado suave e acolhedor.
— Como é seu nome?
— Montiê. — respondeu a gatinha tentando manter a calma.
— Venha comigo, Montiê, não se preocupe porque eu irei te proteger, meu nome é Walter, mas pode me chamar de Walt. Conheço estes becos como a palma de minhas patas.
Montiê o acompanhou, e logo chegaram a uma cabana feita com papelão entre umas latas de lixo que estavam caídas em um canto. Ele serviu uma refeição fresca e ambos comeram, enquanto contavam suas histórias de vida. Em pouco tempo ela estava dormindo. Walt demorou a pegar no sono. Ficou admirado olhando para aquela gatinha que saiu do nada para alegrar sua vida solitária. Sentia que dali surgiria uma grande amizade.
O tempo foi passando e a amizade deles crescia a cada dia. Andavam juntos pelos telhados, pelos muros, passavam todo o tempo juntos. Ele estava cada vez mais encantado por Montiê. Seu andar elegante, seu pêlo tão alvo em contraste com suas malhas levemente amarronzadas davam a ela uma aparência encantadora, sofisticada.
Os dois andando juntos pelos becos da cidade apresentava um contraste curioso. Walter representava exatamente o extremo oposto de Montiê. Porém, ela parecia feliz, sentia-se conformada com a vida simples dos becos e a amizade sincera com Walt parecia ser tudo que lhe bastava para ser feliz.
Numa noite quente de verão, os dois andaram mais que de costume a procura de comida e acabaram subindo em um muro de uma casa amarela. Nossa! Que surpresa! Avistaram uma grande tigela de ração. Como não viram nenhum outro animal, resolveram descer do muro para se alimentarem.
Quando estavam distraídos, deliciando-se sobre a enorme tigela, foram surpreendidos por um gato preto, muito grande, que estava camuflado na sombra. Naquele momento, antes que tivessem qualquer reação, o gato avançou sobre Walt, atacando-lhe com suas unhas afiadas:
— Como ousa entrar em minha casa e comer minha comida? — Ao tentar se desvencilhar de suas unhas, Walt deu uma mordida arrancando um pedaço da orelha do gato valentão.
Montiê ao se recompor do susto, tentou acalmá-los:
— Parem com essa briga! Nós já estamos de saída. Desculpe-nos! Não vimos que você estava aí. — Vamos Walt, não precisamos passar por isso. Vamos voltar para casa.
Os dois cessaram a briga. Ocasião em que o gato olhou para Montiê e só então, percebeu o quanto ela era linda, meiga e educada. Não se conteve:
— Desculpe-me... Cof cof — tossiu. – Desculpem-me por ter sido tão rude. Aparecem gatos de rua o tempo todo e desrespeitam meu território, porém, você visivelmente não é um deles. O que faz acompanhando esse gato maltrapilho?
Ao perceber o interesse do estranho em Montiê, Walter deu um pulo de volta em cima do muro e chamou Montiê para que o acompanhasse:
— Vamos dar o fora daqui! Essa “almofadinha” já deixou claro que aqui não é nosso lugar.
Montiê o acompanhou e eles partiram rapidamente sem olhar para trás. Nem se deram conta que estavam sendo seguidos. Tampouco, imaginavam que aquele encontro fortuito mudaria suas vidas para sempre.
Passados alguns dias, numa bela tarde, enquanto Montiê andava despreocupadamente para encontrar-se com sua amiga Nina, foi surpreendida por um estranho que se aproximava:
— Olá! Uma voz a cumprimentou. Ela se assustou, pois, não o reconheceu e começou a apressar os passos tentando se afastar.
— Acalme-se Montiê, não se lembra de mim? Você e seu amigo maltrapilho estiveram em meu quintal há alguns dias. Resolvi retribuir a visita. Ah! Mas que indelicadeza a minha, não me apresentei, me chamo Jamal, Jamal Felino. Prazer em conhecê-la.
Montiê desculpou-se mais uma vez por terem invadido sua casa naquela noite. Jamal respondeu que a desculparia sim, desde que ela aceitasse um convite para jantar com ele naquela noite. A gatinha aceitou, contudo, ficou receosa. Não sabia se falava com seu amigo sobre a visita inesperada de Jamal, se preocupava em como ele poderia reagir. Mas afinal, porque ele se importaria, eles eram apenas bons amigos.
Jamal Felino, diferentemente de Walt, era um gato pomposo, de pêlo sedoso e espesso. Que exibia garbo e elegância ao andar. Quando estava perto de Montiê emitia um ronronar que a deixava encantada, tão diferente dos uivos e chilreado que acostumava ouvir nas ruas.
À noite encontram-se no local combinado. E assim, saíram juntos a passear pelas ruas largas do lado nobre da cidade. Encerraram o passeio em um dos restaurantes mais luxuosos da cidade. Montiê ficou deslumbrada com tanto glamour, parecia que já havia nascido para estar naquele ambiente requintado, limpo, perfumado. Sentia-se se bem entre os bichanos intelectuais, a verdadeira nata da sociedade felina.
Jamal a apresentou a alguns empresários com os quais havia realizado grandes negócios. Sem dúvida, eram os gatos mais influentes da cidade. Contou-lhe com detalhes sobre as viagens que havia feito, dos negócios milionários que já havia realizado. Enquanto ouvia suas histórias, os olhos felinos brilhavam de anseio por fazer parte daquela realidade encantadora.
Antes que terminasse a noite, um desses empresários apresentou-lhe uma proposta de emprego irrecusável. Gostariam de contratá-la para gerenciar uma de suas empresas, mesmo sem possuir experiência. Ela seria a gata perfeita. Dariam a ela a oportunidade de se qualificar e ainda poderia aprender dois novos idiomas. Sem dúvida, o que eles procuravam era exatamente uma felina com a postura e inteligência que ela havia demonstrado naquela noite.
Montiê saiu daquele restaurante perplexa, mal conseguia acreditar. Depois daquela noite nem se imaginava voltar a dormir em uma casa de papelão. Ou ainda pior, procurar restos de comida nas lixeiras deixadas em algum beco imundo da cidade, como costumava fazer. Sequer cogitou procurar Boanerges para contar as novidades de sua nova vida. Nem tampouco, convidá-lo para fazer parte dessa sua nova história em retribuição a sua amizade e acolhimento de todos aqueles anos. “Ah! Ele não vai se sentir bem nesse meio, pertence a outra realidade”. Pensou ronronando enquanto acompanhava seu novo parceiro Jamal.
Assim, partiu Montiê, rumo a sua nova vida, pensando que a felicidade e lealdade poderiam ser compradas com luxo e glamour. Mas os dias foram passando e mesmo diante de todo conforto que vivia, sentia falta das conversas bem-humoradas que tinha com Walt. Seu riso leve e despreocupado tornava leve toda a dificuldade que passavam nas ruas.
Jamal com toda sua elegância e sua conversa repetitiva sobre como alcançar mais lucro, fazer investimento, conhecer felinos poderosos, tornava seus dias cansativos. Logo a deixou numa filial da empresa, esquecida. Dia após dia foi se esquecendo dela. Conheceu outras gatas que apresentava a outros empresários. Logo ela percebeu que essa era sua principal ocupação, uma espécie de caçador de talentos do mundo felino corporativo.
Todo aquele charme e sedução, não passavam de estratégias para conquistar a confiança de gatinhas ingênuas e entregá-las friamente para os grandes empresários explorar suas habilidades, seja como secretárias, corretoras ou outras funções secundárias que envolvem os negócios felinos. As felinas certas, atraiam sempre mais investidores. Tudo bem que viveram um romance por um tempo, mas ela havia esperado algo mais.
Realmente sentiu saudade de Walt naquela noite. Percebeu até uma lágrima rolar e engoliu em seco. Ficou triste por sequer ter se despedido dele antes de partir com o galante Jamal. Ele não merecia ser ignorado daquela forma. Alguns meses haviam se passado. Como Walt estaria agora? Será que ainda vivia naquele papelão onde moravam?
Montiê parou de desejar saber como ele estava, decidiu ver com seus próprios olhos. Deixou seu uniforme ali em um canto caído e foi correndo para aquele antigo beco, onde por tanto tempo chamou de lar.
Ao vê-la chegar, Walt correu e ronronou com tanto afeto e tanto amor que fez o coração felino dela derreter.
— Pensei que tivesse morrido – falou com os olhos lacrimosos.
— Não, Walter, estou mais viva do que nunca. Seu amor me trouxe de volta.
Obs. O conto faz parte da coletânea 77 gatos e seus humanos da Editora Triumphus.