Preta Como a Noite
Em um reino muito distante, existia uma família com sete irmãos.
Todo o reino estava em festa, pois a mãe gestava mais uma vez. Os membros daquela numerosa família ansiavam por mais um menino, porém, para contrariedade de todos, ao dar à luz, nasceu uma robusta menina. Como se não bastasse nascer mulher, ainda nasceu com a pele mais escura que a dos seus irmãos. Essa sutil diferença em seu tom de pele gerou a ela diversos apelidos, mas o que permaneceu foi Preta, tornando esse seu nome, pois diziam que ela era preta como a noite.
Preta era uma menina com lindos e penetrantes olhos negros. Por mais que fosse desagradável ouvir palavras pejorativas sobre sua cor, ela sentia-se bem em ser como era. Ainda assim, precisou se adaptar a crescer em meio a um ambiente hostil, onde o preconceito por seu gênero e cor permeava todos os aspectos de sua vida. Sua mãe, que sonhava em ter apenas filhos homens para perpetuar o nome da família, tratava-a com indiferença e desprezo. Como se não bastasse, Preta ainda não se enquadrava ao comportamento desejado por ela.
Amada por seu pai, por mais contraditório que pudesse parecer, Preta vivia dias difíceis em sua ausência. Quando ainda criança, era uma menina de espírito livre, que não se moldava aos exigidos padrões sociais. Gostava de praticar todas as atividades que via seus irmãos fazendo, por mais que sua mãe a repreendesse. Não conseguia entender por que ela deveria ficar restrita as atividades da casa e ao redor de sua mãe, enquanto aos seus irmãos eram permitidos fazer qualquer coisa que eles quisessem.
Passados alguns dias, uma terrível tragédia tirou dela a única pessoa que a compreendia e a aceitava como era, seu amado pai. Com a ausência definitiva do pai, Preta viu-se desamparada. Seus irmãos, influenciados pela visão preconceituosa da mãe, se distanciavam cada vez mais dela e a ignoravam, alimentando ainda mais a solidão e a tristeza em seu coração. Assim, Preta vivia sufocada pela cultura de seu povo, que ensinava que uma mulher para ser completa e verdadeiramente feliz precisava encontrar um príncipe para amá-la e a quem ela deveria dedicar sua vida em real devoção.
Temendo a convivência familiar que tornava-se cada dia mais hostil, a moça decidiu se aventurar pelo mundo a fora, talvez encontrasse um lugar onde as mulheres pudessem viver sem tantas cobranças e imposições. Por mais que desejasse seguir os parâmetros estabelecidos pelas normas milenares do reino, Preta Como a Noite, ansiava ainda mais por uma vida em que pudesse ser valorizada por ser quem era, independentemente de seu gênero ou cor de pele, e sim, pela peculiaridade de sua personalidade.
A destemida princesa seguiu por bosques e florestas, campos e jardins, desconhecendo que assim que saiu do reino, toda aquela terra foi acometida por uma terrível maldição que fez com que todas as moças adormecessem. Aquele feitiço havia sido lançado pela mãe de Preta que não aceitava o comportamento impetuoso da filha. Numa tentativa de impedi-la de prosseguir com seu intento, conjurou a maldição que recaiu sobre todas as moças, como a filha já havia saído dos limites do reino, Preta safou-se por pouco.
Obstinada em sua jornada, a princesa deparou-se com diversos desafios e perigos, mas aquela aventura a ajudou a fazer novas amizades. Durante sua viagem, a doce princesa aprendeu a falar a linguagem dos animais da florestas ao livrá-los das armadilhas deixadas pelos caçadores, dessa forma ela estabeleceu amizades que permaneceriam por toda sua vida. A triste moça que fora desprezada por sua família encontrava nos animais acalento e afeto. Essa sincera amizade fazia expandir sua força interior e aumentar a coragem que pulsava em seu coração.
Certo dia, enquanto explorava uma densa floresta, Preta ouviu algo que chamou sua atenção, apesar de estar longe, ela tinha certeza que ouvira alguém falar. Seguindo a voz, a moça encontrou um jovem príncipe que conversava consigo mesmo:
— Eu não preciso ser truculento para ser um homem, me sinto um idiota fazendo isso. – O rosto do jovem contraía como se alguém lhe falasse algo. - Nada disso! Eu não preciso ser ríspido para ser forte. Se me ridicularizarem por eu ser quem sou, é porque não merecem minha amizade e consideração.
Enquanto discutia consigo mesmo, relutando em aceitar a imposição social em que homens devem ser dominadores e insensíveis, o jovem e distraído príncipe caiu em uma armadilha ficando pendurado em uma rede. Ao perceber que estava preso, ele começou a gritar por socorro.
— Por que estou gritando? - disse retomando o auto diálogo. – Se todos os homens partiram para a temporada de caça ao norte e todas as mulheres estão adormecidas.
Naquele momento Preta decidiu sair do esconderijo onde estava observando o príncipe falar consigo mesmo.
— Olha, o que temos aqui. – disse – Não se desespere que eu irei tirá-lo daí.
— Você? - questionou o príncipe. – Pelo visto ficarei aqui para sempre, uma moçoila frágil me tirar dessa armadilha? Até parece.
Com destreza e habilidade, Preta cortou a corda que o mantinha suspenso, deixando a rede cair ao chão. O rapaz deu um grito, tamanho o susto de ver a rede que o sustentava soltando-se.
Ao ver-se livre da rede que o prendia, agradeceu constrangido.
— Obrigado por me salvar! - exclamou o príncipe, surpreso e envergonhado. - Eu subestimei sua coragem e duvidei que fosse capaz de me resgatar. Peço desculpas por duvidar de você.
Preta sorriu e disse revirando os olhos:
— Não se preocupe, entendo que as pessoas impõem muitas expectativas e estereótipos sobre homens e mulheres. Mas a verdadeira força reside na capacidade de superar essas limitações e ser fiel a si mesmo. Acredite, nós, mulheres, somos tão capazes quanto vocês.
O príncipe olhou para ela com admiração e gratidão. Ele reconheceu a sabedoria nas palavras de Preta e percebeu que estava diante de uma mulher extraordinária, corajosa e determinada.
— Você está certa. Eu também quero desafiar essas expectativas e ser um príncipe que não precisa ser ríspido ou dominante para provar minha masculinidade. Porém, é tão difícil agir assim quando existem tantas cobranças.
— Você não precisa agir assim, o poder está em suas mãos.
O príncipe estava encantado com a força e segurança nas palavras daquela garota que demonstrava tanta fragilidade, mas que parecia ser a pessoa mais forte que ele havia conhecido.
— Se eu puder contar com sua ajuda creio que poderemos ir mais longe. – disse o príncipe olhando nos olhos da jovem valente.
— Conte com minha amizade! Podemos trabalhar juntos para superar as barreiras impostas pela sociedade e construir um reino onde todos sejam valorizados pelo que são.
Assim, Preta e o príncipe se tornaram aliados e começaram uma jornada para despertar as moças adormecidas e libertar o reino da maldição lançada por sua mãe. Com coragem, eles enfrentaram os terríveis desafios que surgiram à sua frente. A notícia de sua missão começou a se espalhar, e as pessoas do reino, que antes ignoravam Preta por causa de sua cor, agora admiravam sua força e coragem. Quando finalmente conseguiram quebrar a maldição, o reino foi transformado. As mulheres que estavam adormecidas despertaram e uniram-se à luta pela igualdade e liberdade.
Uma nova era começou, onde as mulheres eram valorizadas por suas habilidades e personalidades. Preta tornou-se uma inspiração, mostrando a todos que as barreiras do preconceito podem ser superadas quando acreditamos em nós mesmos e lutamos por nossos ideais.
Os sete irmãos dela continuaram vivendo suas vidas medíocres e preconceituosas, eram incapazes de reconhecer os benefícios conquistados pela bravura de sua irmã. Sua mãe foi banida do reino e condenada à solidão depois de haver lançado sua terrível maldição sobre as moças que desejavam ser livres.
Algum tempo depois, Preta e o príncipe se casaram, não para cumprir um protocolo social, mas por uma escolha mútua e amor verdadeiro. Preta provou que uma mulher pode ser livre para ser quem é, sem ser obrigada a se adequar aos padrões impostos pela sociedade. Ela mostrou que a verdadeira força vem da autenticidade e da busca incansável por aquilo em que se acredita.
Ao final de sua jornada, ela e o príncipe viveram felizes e realizados, construindo um reino onde a liberdade e a igualdade eram valorizadas. Sua história inspirou outras pessoas a desafiarem o preconceito e acreditarem em seu próprio potencial. E assim, Preta ensinou ao mundo que uma mulher pode vencer as barreiras do preconceito, simplesmente sendo ela mesma.
Obs. O conto faz parte do livro "Amores de Rosalinda e outras histórias".