Ainda existe redenção

Aurus sobrevoava as montanhas, solitário ao anoitecer.

Após, mais alguns minutos de voo, parou em frente a caverna que havia aprendido a chamar de lar, entrou com passos lentos e cansados, em nada parecia o mais valente elementar do fogo que havia sido um dia.

Aurus havia testemunhado por tanto tempo a crueldade e a falta de empatia de seus semelhantes, que seu coração encheu-se de descrença e tristeza. Decepcionado com sua espécie, ele desertara em meio à guerra e vagava pelos campos arrasados por centenas de anos de conflito, contemplando a destruição que os dragões haviam causado e se perguntando se a vitória sobre os Valentes realmente traria a paz que eles buscavam.

A guerra entre humanos e dragões havia causado inúmeras tragédias, deixando um rastro de dor e sofrimento. Enquanto os Valentes lutavam ferozmente para reivindicar o domínio sobre o mundo e eliminar a terrível ameaça, os Pacificadores buscavam uma solução amistosa para a coexistência entre as espécies. Essa guerra, no entanto, obscurecia a verdadeira ameaça que pairava sobre a humanidade, a intolerância.

Naquela noite escura e fria, quando Aurus repousava em sua solitária caverna nas montanhas, seu destino começou a mudar. Um jovem guerreiro chamado Handrik, ferido e exausto da batalha, buscou refúgio naquela caverna distante, desconhecendo completamente o perigo em que se encontrava. Ao perceber a presença do dragão, o valente guerreiro empunhando sua arma, preparou-se para lutar, mas o olhar triste e cansado do seu oponente o fez hesitar.

— Não sou mais um inimigo, humano - disse Aurus em um tom de voz grave e cheio de melancolia. - Perdi a confiança em minha própria espécie. Vi o que fomos capazes de fazer. O mal e a destruição que infligimos aos humanos por tanto tempo é algo imperdoável.

Handrik, intrigado pela sinceridade nas palavras do dragão, baixou a guarda e o observou com curiosidade.

— Mas nem todos os dragões pensam assim - ele respondeu. - Assim como nem todos os humanos. Eu lutei ao lado dos Valentes porque acreditava que deveríamos proteger nossa raça, até entender que daquela forma só aumentaria a destruição, mas sempre há espaço para a mudança, para a redenção.

Aurus ficou em silêncio ao contemplar as palavras do jovem guerreiro. Havia um brilho de esperança em seus olhos, uma chama que há muito havia se apagado em seu próprio coração.

— Você fala de lealdade e redenção, humano, mas o que vejo no mundo é apenas traição e ódio.

Handrik olhou nos olhos de Aurus, transmitindo em seu olhar sinceridade.

— Eu entendo sua descrença, mas é preciso manter a esperança, do contrário como encontraremos forças para defender nosso ideais? – respondeu Handrik caindo desfalecido em seguida, pois seu ferimento sangrava muito.

Aurus compadeceu-se do jovem que lhe falara com tanto ardor, levou-o para um local aquecido da caverna e tratou do seu ferimento utilizando seus poderes místicos. Enquanto o observava dormir estando fora de perigo de morte, o dragão refletia nas palavras do jovem guerreiro. Nunca antes havia encontrado alguém que compartilhasse da mesma visão que ele, alguém que enxergasse além das diferenças e estivesse disposto a defender uma causa maior.

Alguns dias depois, Handrik estava recuperado. Ficou surpreso ao acordar e ver a forma como um dragão havia cuidado dele. Enquanto esteve desacordado, conseguia ouvir as histórias que Aurus lhe contava, de como ele era feliz quando homens e dragões viviam em harmonia, agora tudo era fumaça e destruição.

— Você está disposto a enfrentar seus companheiros, Handrik? - perguntou Aurus, com pouca esperança em sua voz.

O jovem apertou o cabo de sua espada e, com uma determinação resignada, respondeu:

— Se for preciso, lutarei contra eles. Mas antes disso, podemos tentar uma abordagem pacífica. Vamos encontrar os Pacificadores e buscar uma solução para essa guerra. Não podemos permitir que o ódio e a intolerância nos dominem.

Aurus sentiu admiração pelo jovem valente. Pela primeira vez em muito tempo, ele encontrava esperança em um futuro onde humanos e dragões poderiam coexistir em harmonia novamente.

Juntos eles abraçaram uma arriscada missão. Incialmente tiveram que lidar com o preconceito daqueles que viam a amizade entre eles como obstáculo para qualquer diálogo. Até mesmo entre os Pacificadores houve resistência, mesmo defendendo a coexistência das espécies, consideravam amizade um vínculo íntimo demais para criaturas tão distintas.

Ainda assim, os dois não se intimidaram, pois estavam decididos a pôr um fim naquele conflito que durava quase dois séculos. Eles atravessaram terras devastadas pela guerra, chamando a atenção por onde passavam para o aspecto de terror que havia se espalhado em toda parte. Por fim, conseguiram encontrar refúgio entre um grupo dissidente que buscavam aliados improváveis em ambos os lados do conflito. Aquele grupo começava a crescer por mostrar que a paz era possível e que a união entre humanos e dragões poderia trazer benefícios para ambas as espécies.

Entretanto, em meio ao grupo havia um Valente infiltrado, homem vil e traiçoeiro que não aceitava ver Handrik sendo amigo de um dragão. Ele enxergava essa amizade como uma traição imperdoável e estava disposto a fazer qualquer coisa para impedir que a paz prevalecesse. Assim, em um momento em que os amigos estavam distraídos e vulneráveis, o traidor atirou uma flecha envenenada no coração de Aurus que descansava à sombra de um Carvalho, ao tentar proteger o amigo, Handrik lançou-se à frente do dragão sendo fatalmente ferido. O jovem caiu nos braços de Aurus, com um sorriso nos lábios.

— Valeu a pena, Aurus, nossa amizade, nossa luta por um mundo melhor... tudo valeu a pena.

As lágrimas escorreram pelos olhos de Aurus enquanto ele segurava Handrik em seus braços, sentindo a vida do jovem guerreiro escapar lentamente. O sacrifício dele foi um lembrete poderoso do quão valiosa era a amizade e que aquela guerra estava longe de acabar. Com um sopro fumegante Aurus eliminou o traidor que covardemente matara o mais honrado humano que ele tivera o prazer de conhecer.

Aurus continuou a lutar pela paz, honrando a memória do seu amigo e mostrando ao mundo que a amizade entre um dragão e um humano poderia ser o catalisador para a transformação, entretanto, atos desonrosos não seriam tolerados.

Mais resignado do que nunca, Aurus ainda marcado pelo sangue derramado de Handrik convocou um encontro entre líderes humanos, dragões renegados e os Valentes mais influentes. Diante de um público cético e temeroso, ele discorreu sobre a necessidade de superar a divisão e encontrar um caminho para a coexistência pacífica. Pois, o que os separava não era suas diferenças e sim, a resistência em aceitá-las, a amizade entre ele e Handrik seria uma prova eterna disso.

Suas palavras ecoaram nos corações daqueles que estavam cansados da guerra e ansiavam por um futuro melhor, dissipando a desconfiança. Gradualmente, os laços de amizade começaram a se formar entre dragões e humanos novamente mostrando ser possível uma convivência pacifica. O mundo começava a se curar.

Charlotte Alencar
Enviado por Charlotte Alencar em 23/05/2024
Reeditado em 23/05/2024
Código do texto: T8069534
Classificação de conteúdo: seguro
Copyright © 2024. Todos os direitos reservados.
Você não pode copiar, exibir, distribuir, executar, criar obras derivadas nem fazer uso comercial desta obra sem a devida permissão do autor.